Perdi meu Corpo (J’ai Perdu Mon Corps, 2019) seria só mais um filme sobre destino e questionamentos existenciais se não fosse pela originalidade: uma mão decepada em uma jornada tortuosa em busca de seu corpo. Essa é a premissa inusitada da animação francesa dirigida por Jérémy Clapin, cuja história é baseada no livro Happy Hand (2006) de Guillaume Laurant, roteirista de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2002). Junto a Clapin, ele co-escreveu este longa, um quebra-cabeça que mantém os espectadores curiosos a todo o tempo.
Essa animação não é simplesmente uma história sobre uma mão cortada. É mais sobre o resto do corpo e toda a vida que ele carrega. Entra aí a figura de Naoufel, um jovem entregador de pizzas que se vê em duas realidades discrepantes: uma incômoda e violenta, marcada por um ambiente não familiar — a princípio inescapável —, e outra, feita de lembranças de um passado vivo, cheio de sons e sensações daquilo que poderia ter sido sua vida, mas não foi.
O corpo dele é marcado pelas perdas, e a mão é uma delas. Só que nada disso é entregue de cara ao espectador. Enquanto a mão decepada crava suas tentativas de retornar ao corpo de Naoufel, as peças do mosaico vão aos poucos se juntando em uma sequência de flashbacks sensíveis que rememoram sua infância e as experiências sensoriais da mão.
Pequena em relação ao mundo, mas ágil (e por vezes cruel) nas respostas, a mão que foi dilacerada luta por sua sobrevivência. É de sua perspectiva que somos convidados a ver. Em uma cidade hostil — Paris crua, sem Torre Eiffel e sem romances que dão certo logo de primeira — a mão perambula entre metrôs, arranha-céus e a vida privada nos apartamentos para voltar ao seu corpo.
Isso faz Perdi o Meu Corpo ser uma experiência diferenciada, já que a maioria das aflições e simpatias podem despender da defesa desse personagem munido apenas de cinco dedos extremamente ativos. É na coragem dos saltos e na determinação em se arriscar a todo instante que a mão deixa qualquer um muito instigado: por que essa vontade de voltar ao corpo? Ou como aconteceu essa separação dramática?
Ao acompanhar a vida de Naoufel, definitivamente menos cativante do que a saga da mão solitária, essas questões vão sendo pinceladas nos poucos, porém densos, diálogos que contrastam a mudez do membro decepado. Em uma dessas conversas despretensiosas desenrola-se um romance com a intrigante bibliotecária Gabrielle — premissa dessa vez não tanto inusitada — que muda os rumos da vida do entregador.
Os pequenos detalhes das palavras vão mostrando os conflitos existenciais de Naoufel e Gabrielle, permitindo ao espectador montar o quebra-cabeça do filme. Mas muito além das palavras, a obra se destaca pelos sons aos quais dá atenção. O campo dos pequenos barulhos, como a sutileza do esfregar das mãos nos ouvidos, é tão bem explorado quanto sua trilha sonora.
Com essas nuances e narrativas intercaladas, a trajetória conturbada da mão, os flashbacks do passado, e a vida de Naoufel, o longa dispensa classificação em algum gênero. São todos e ao mesmo tempo nenhum. É um filme sobre a vida com uma perspectiva surreal e filosófica proporcionada só mesmo pela liberdade de uma animação.
As expectativas do reencontro da mão foram cumpridas? Existe o acaso? É possível driblá-lo? O ápice desses questionamentos chega na cena final, quando Perdi Meu Corpo deixa sua marca como uma bonita metáfora do destino. Em uma hora e vinte de filme, quem se dedica a assistir à obra ficará surpreso com o quanto uma mão pode dizer. Ou com o quanto de perguntas ela pode evocar.
O longa já está disponível para todos os assinantes da Netflix. Confira o trailer:
*Imagem de capa: Divulgação/Netflix
Adorei a crítica, você escreve muito bem! Continue assim, Sarah!