Como ocidentais, o que sabemos do Irã pode ser resumido em alguns palavras: petróleo, islamismo, energia nuclear, disputas com os Estados Unidos. O senso comum somado ao preconceito e a uma cobertura questionável da mídia acabam por formar essa “única história” do Irã – termo da escritora nigeriana Chimamanda Adichie. Segundo a escritora, para criar uma história única é preciso “mostrar um povo como uma única coisa de novo e de novo e é isso que eles vão se tornar”. E é isso que acontece conosco quando imaginamos vários lugares, principalmente os mais distantes da nossa cultura ocidental, como o Irã.
Abre-se então o livro de Marjane Satrapi, iraniana, “Persépolis”. O primeiro volume da série é contado por uma pequena Marjane que, com apenas dez anos, tenta compreender uma revolução, que levou a queda do regime autoritário do xá Reza Pahlevi e instaurou a República Islâmica, também autoritária. No livro, nos deparamos com uma menina curiosa e cheia de personalidade que vai à escola, tem amigos, vive em uma família de classe média, adora a avó e idolatra o tio comunista, gosta de ler livros e que é cheia de aspirações políticas; tudo que nos é também extremamente comum. A cada página do livro, a “única história” do Irã vai se descontruindo devagarzinho e se tem contato com um outro ponto de vista.
Para a autora, por mais pessoal e subjetivo que esse ponto de vista seja, pelo menos ele difere do que é mostrado na televisão. “Não estou dizendo que esta realidade [a mostrada pela televisão] não seja verdade, mas há muitas outras realidades que nós nunca vimos”, diz ela em um vídeo-entrevista do canal “Movieweb”. A motivação e inspiração por trás do livro seriam justamente dar uma outra resposta ao mundo, o que Satrapi faz com maestria tanto no livro quanto no filme, também chamado Persépolis.
O filme é uma animação baseada nos livros, dirigida e escrita por Satrapi e por Vicent Paronnaud. Segundo a autora, o formato de animação escolhido para o filme se deve ao fato de que o desenho é algo abstrato, com o qual todos podem se identificar e que podem compreender. Sua paixão pela arte popular fez com que ela optasse pelos quadrinhos, antes de começar a trabalhar com cinema. Em outro vídeo entrevista para o canal “I Am Film”, Satrapi conta como desejava fazer uma arte popular que todos pudessem ler e compreender, mas que fosse bem feita e inteligente; “e isso foi para mim uma convicção, eu queria fazer isso”, diz ela.
O caráter universal do desenho, o humor que permeia as páginas dos livros e a sensibilidade da autora ao descrever a complexidade do mundo fazem com que o leitor se identifique com a personagem, por mais que o ponto de vista expressado na obra seja totalmente pessoal. Para Satrapi, a necessidade de contar a história usando seu próprio nome e sua família se deve justamente ao seu desejo de evitar que o livro se tornasse uma declaração política, histórica ou sociológica.
Outro grande desejo da autora é mostrar os vários lados das situações. “O mundo é complexo”, afirmou em entrevista ao site “Bookslut” e isso aparece no livro em diversas situações de conflito de ideais e posições com as quais Marjane se depara.
No primeiro volume, a pequena Marjane assiste aos revolucionários de ontem se tornarem os maiores inimigos do novo governo, descobre os paradoxos da política e da religião, e a dificuldade de saber quando e a quem perdoar. Já nos próximos volumes, a jovem Marjane, com apenas 14 anos, sai do Irã para ir viver na Áustria, por conta da guerra entre seu país e o Iraque; e precisa se adaptar a uma nova cultura, tentando, ao mesmo tempo, manter-se verdadeira consigo mesma. Depois, ao voltar para casa já adulta, descobre-se eternamente na condição de estrangeira.
De acordo com a autora, a dificuldade de ser estrangeira e se integrar a um novo ambiente se deve ao fato de a “cultura tomar todo o espaço dentro de você”. Para ela, seria preciso primeiro esquecer da sua própria cultura para poder se abrir para a outra e só depois “escolher com o que você vai ficar das duas e engolir tudo de volta”, diz Satrapi na entrevista ao “Bookslut”. Mas nada disso é fácil: na animação, a personagem diz perceber que nunca compreenderia certas coisas da cultura ocidental.
Como ocidentais é bem provável que nós também não sejamos capazes de entender diversos aspectos da cultura iraniana, mas Satrapi mostra que o lado humano é sempre compreensível. Vale a pena ler e ver Persépolis, não só pelo seu valor estético, mas também para transformar a “única história” do Irã em várias outras, mais humanas.
Por Isabel Seta
isaseta@gmail.com