Por Fernanda Franco (fernanda.francoxavier@usp.br)
Enquanto o mundo se afoga em resíduos plásticos, 175 países membros da ONU estão em uma corrida contra o tempo para finalizar um tratado internacional que possa, enfim, acabar com a poluição plástica no mundo. Porém, interesses internos e dinâmicas de poder estão influenciando as posições desses países nas negociações. Tal constatação está apresentada em artigo publicado em 18 de outubro pela revista científica Cambridge Prisms: Plastics.
A pesquisa foi liderada pelo Instituto do Mar da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) com a colaboração de cientistas da Universidade de São Paulo, do Dartmouth College, nos Estados Unidos, e da Universidade da Tasmânia, na Austrália. Essas instituições participaram das duas primeiras de cinco reuniões intergovernamentais do acordo, iniciadas em 2022 e previstas para conclusão até o final deste ano na Coreia do Sul.
O que está em discussão no Tratado Global de Plásticos são formas de melhorar a gestão e o manejo do plástico no meio ambiente, visando garantir uma menor entrada do plástico na natureza bem como sua retirada de forma rápida.
Foi a partir de análises do discurso dos países nessas negociações que os pesquisadores identificaram dez pontos críticos ainda não resolvidos e que podem comprometer a implementação do tratado.
Em entrevista à Jornalismo Júnior, a professora da Unifesp e primeira autora da pesquisa, Leandra Gonçalves, conta que o artigo traz muito claro a influência do cenário doméstico nas negociações internacionais e a necessidade de uma cooperação global.
“O mais desafiador é que os países entendam que no sistema internacional não há uma igualdade. Pelo contrário, existem países que têm mais poder e outros que têm menos, e isso influencia o resultado do tratado”
Leandra Gonçalves
Leandra explica que “normalmente os países que acabam influenciando e definindo os principais componentes de um tratado são aqueles que não sofrem tanto com o impacto de determinado problema ambiental”. Quanto à poluição plástica, há os países que querem resolver esse problema, mas não possuem tanto poder e há aqueles que têm poder para isso, mas não sofrem tanto o impacto. Por isso, o uso da teoria “desconexões de poder” é parte central do estudo.
Posição dos países membros
Estados Unidos e Arábia Saudita são os principais produtores de petróleo do mundo, enquanto China e Estados Unidos são os maiores produtores de plástico. Juntos, estes países compõem o grupo de maior influência no acordo, ao passo que também é o mais resistente em produzir ou aprovar metas que possam prejudicar a sua economia interna.
Para Leandra, estes países estão apenas cumprindo o papel de participar de um acordo multilateral — aqueles que envolvem diversos países —, mas querendo que o documento seja o menos ambicioso possível.
Por outro lado, há o grupo de afetados pela poluição plástica, mas que apresentam certa resistência no acordo. É o caso dos países da América Latina, da África e do Caribe, que precisam participar deste acordo e melhorar o quadro ambiental, mas, ao mesmo tempo, entendem que estão em uma situação de desvantagem.
“Estes países querem construir um tratado que ajude a reduzir a desigualdade, mas sem que seja muito regulado, porque eles sabem que não vão conseguir dar conta diante de todo o desafio já presente no cenário doméstico”, explica Leandra. Ela acrescenta que alguns países ao internalizar métricas ambiciosas de reciclagem e redução de plástico podem não conseguir cumpri-las e, assim, ficar mal vistos no cenário internacional.
Já o bloco das pequenas ilhas e países escandinavos, muito afetado pela poluição de plásticos, quer um tratado ambicioso, mas possui pouco poder. A pesquisadora aponta o grupo dos países desenvolvidos com uma mentalidade mais ambiental, formado pelos países do norte global europeu (Suécia, Dinamarca e Holanda). Para estes, o tratado ser ambicioso é interessante, pois eles possuem uma estrutura regulatória avançada nesse sentido, com altas taxas positivas de reciclagem e economia circular.
Os dez pontos críticos
Os dez pontos críticos identificados pelos cientistas são: (1) escopo, (2) equidade e diferenciação, (3) envolvimento de atores não estatais, (4) integração com acordos, (5) padrões e especificações existentes, (6) implicações comerciais, (7) monitoramento e relatórios, (8) responsabilidade e contribuições históricas, (9) compromissos vinculativos vs. não vinculativos e (10) financiamento e transferência de tecnologia.
Para Leandra, o escopo e a parte regulatória são os pontos mais desafiadores para se chegar a um consenso global. O escopo determina a abrangência sistêmica: se será sobre todo o ciclo de vida dos plásticos, acarretando a redução da produção, ou se terá foco limitado apenas na gestão de resíduos. Nesse sentido, a pesquisadora pontua que nenhum país quer abrir mão do seu desenvolvimento econômico.
Já a parte regulatória aborda o caráter voluntário ou obrigatório das exigências e a responsabilização de poluição plástica atribuída a cada país. Esses são baseados no monitoramento de políticas internas e no reporte de medidas internacionalmente. Segundo a pesquisadora, os países têm uma imensa dificuldade em fazer isso.
“As metas e os indicadores de monitoramento e reporte vão ser fundamentais porque depois que esse tratado começar a valer [ele] será também uma fonte de dados para entender onde está sendo produzido e para onde vai esse lixo”
Leandra Gonçalves
Leandra também observa que nesses tratados multilaterais é fundamental o envolvimento de atores não governamentais, como ONG’s, setor privado e movimentos sociais, que precisam não apenas acompanhar a negociação e se fazerem ouvidos, mas também, uma vez que o tratado for aprovado, trabalhar conjuntamente para que ele seja implementado tenha acompanhamento de escala local. “O tratado só vai ser bem implementado se esses atores não estatais também se sentirem representados por esse texto”, pontua.
Outra discussão é sobre como integrar acordos já existentes que fazem qualquer menção à questão do plástico ou à poluição sem que haja nenhuma sobreposição. Como é o caso do MARPOL Anexo V, que trata da prevenção da poluição causada pelo descarte de lixo por navios.
O lugar e o papel do Brasil
O estudo aponta que o Brasil, assim como os outros países da América Latina, tem focado na questão da justiça, tanto na parte de escopo como na parte regulatória, tentando criar regras equitativas. Para Gonçalves, o país tem tido um posicionamento focal e ativo nas negociações, mas busca fazer com que haja, na verdade, uma redução de danos sem gerar mais desigualdade.
“O Brasil tem um histórico muito bom de fazer boas políticas, mas não consegue monitorar se essa política está de fato funcionando ou entender o que faz com que ela não funcione”, pontua Leandra. Ela reforça que é por meio dessas políticas regulatórias que será possível uma maior igualdade na resolução do problema ambiental do país. “A reforma precisa impactar, principalmente, quem está produzindo o lixo plástico e quem está permitindo que esse lixo continue no meio ambiente. Nesse caso, são as empresas produtoras desses materiais”.
Segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), a cada minuto um caminhão de lixo de plástico é jogado no oceano. Aproximadamente 7 bilhões das 9,2 bilhões de toneladas de plástico produzidas de 1950 a 2017 se tornaram resíduos e acabaram em aterros sanitários ou lixões. O número pode triplicar até 2040 se nada for feito.
Esse problema pode alterar permanentemente os processos naturais, reduzindo a capacidade dos ecossistemas de se adaptarem às mudanças climáticas, além de afetar diretamente a subsistência de milhões de pessoas, envolvendo a capacidade de produção de alimentos e o bem-estar social.
Diante disso e das negociações do tratado previstas para encerrar no final deste ano, Leandra observa que ter o artigo publicado agora é muito relevante, pois “permite que esse estudo tenha o poder de influenciar o rumo das próximas reuniões”.
Ela reforça que um tratado sem metas ambiciosas e revolucionárias não irá mudar significativamente a realidade do plástico no mundo hoje. “Agora é o tempo de encaminhar esse artigo ao Itamaraty e aos Ministérios para que de fato os negociadores leiam o texto e pensem em como melhorar suas posições nas próximas reuniões”, afirma.
Imagem de capa: Jcomp/Freepik