No significativo sete de setembro estreia o ambicioso novo longa de Marcelo Antunez, salutosamente intituladoPolícia Federal: A Lei é para Todos (2017). O Cinéfilos esteve presente na coletiva de imprensa e na pré-estreia do longa. Confira as imagens:
O filme é descrito pelo diretor como um drama ficcional, mas inúmeras vezes se mostra um perigoso híbrido de documentário, propaganda e a declarada ficção. O enredo é um compilado de fatos e exageros que narram a evolução da Operação Lava-Jato desde seu início, em 2014, até a condução coercitiva do ex-presidente Lula.
A proposta é arriscada, e ambiciosa por ir contra as inúmeras coisas que poderiam dar errado. O elenco, o diretor e os produtores se colocam no centro do campo de batalha que se tornou a discussão política na era Lava-Jato; uma postura que, questionável ou não, é inegavelmente corajosa.
Dito isso, é necessário falar do filme como ele se mostra, e não como foi pretendido; e há uma diferença gritante entre estes.
A construção do “thriller brasileiro”
A produção de “Polícia Federal” descreve o longa como um thriller; este gênero cinematográfico é sustentado pelo suspense, a excitação e a tensão que provoca no espectador (não é este thriller, que você deve ter pensado). Alguns conhecidos exemplos do gênero são os filmes Psicose (Psycho, 1960), Efeito Borboleta (The Butterfly Effect, 2004) e o recém-lançado Atômica (Atomic Blonde, 2017). No entanto, no cinema brasileiro, existem poucos exemplos de grande visibilidade do thriller; os dois longas da franquia Tropa de Elite (2007 e 2010) são alguns, e o mais recente Mate-me Por Favor (2015) é outro.
Portanto, este é um gênero ainda em processo de construção, experimentação e afirmação no cenário do Brasil, e o longa de Marcelo Antunez embarca neste processo.
Na coletiva de imprensa do filme em São Paulo, Antunez expressa a preocupação da equipe em trazer um thriller genuinamente brasileiro, evitando ao máximo seguir a “receita” de Hollywood. Em alguns pontos, é bem-sucedido; os diálogos entre envolvidos no esquema de corrupção, por exemplo, retratam muito bem a realidade, com diferenças de sotaque, gírias, e sempre presentes palavrões. As manifestações populares retratadas também são fiéis, trazendo os jargões, as frases de efeito em cartazes e as músicas de protesto que viemos a conhecer muito bem nos últimos anos.
O que também auxilia na ambientação do Brasil é a utilização de cenários reais, trazendo locações conhecidas, como o Salão Presidencial do Aeroporto de Congonhas. Os cenários foram uma grande preocupação da equipe, ocupando também grande parte dos custos do longa – existem cenas no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Curitiba, e até no Maranhão.
O filme conta, no entanto, com todos os clichês típicos do gênero thriller americano; a perseguição sobre rodas, a perseguição a pé, a dinâmica “good cop, bad cop” (policial bom, policial mau), a conversa casual entre policiais numa mesa de bar, entre outros. Decerto, recorreu-se a estes lugares comuns para dar emoção e entretenimento maior à produção, buscando trazer o público geral, mesmo que sacrificasse parte da veracidade e da “brasileiridade”.
A “imparcialidade” é demasiado imparcial
É preciso reconhecer a dificuldade em apresentar um filme desta temática conturbada em total isenção ideológica, política, intencional ou mesmo emocional; as investigações, descobertas e envolvidos na operação em foco têm hoje um impacto no inconsciente e consciente do brasileiro que por si só convida à parcialidade, e nisso, o diretor, roteiristas, produtores e elenco são brasileiros como quaisquer outros. Exigir ou mesmo esperar uma total isenção e comprometimento inabalável à lei e à verdade é pura inocência..
Marcelo Antunez, na coletiva de imprensa em São Paulo, parece reconhecer seus impedimentos, e deixa claro que a intenção do filme não é ser documental – o que é uma tática sagaz para driblar eventuais críticas de parcialidade.
No entanto, para quem reconhece sua falibilidade, a equipe de Polícia Federal está terrivelmente empenhada em proclamar um apartidarismo e apoliticismo quase impossíveis no longa – mesmo os personagens, demasiadas vezes, afirmam e reafirmam seu não-comprometimento com qualquer “lado” da guerra política atual; tamanha é a preocupação em dizer ao público e à imprensa que “este filme é um trabalho de ficção apartidário e sem pretensão política alguma”. Ou ainda, como se a equipe de produção do filme estivesse tentando convencer a si própria disso.
O que é de fato entregue é contudo muito distante disto. A parcialidade se mostra de diferentes formas; ou velada e sutil – em escolhas como “onde acrescentar mais ou menos ficção”, “onde se ater ao fato”, “quais nomes repetir e quais nem ao mesmo mencionar”, ou mesmo, por parte do elenco, “como representar este personagem”, “como entregar esta fala”, entre outras – ou completamente escancarada e de toda forma incompatível com a insistente afirmação de imparcialidade por seus envolvidos.
O exemplo mais berrante deste último caso é uma sequência em que, em uma discussão entre três agentes da polícia federal, um deles usa a metáfora: “se tem um jabuti numa árvore, é porque alguém colocou ele lá”. Isto para redirecionar o foco da investigação de um dos doleiros para um suposto “mandante” do esquema de corrupção. Outro agente pergunta: “então, quem colocou o jabuti na árvore?”. A próxima cena mostra dezenas de pequenas imagens da ex-presidente Dilma Rousseff, em panfletos de campanha atirados numa pista de caminhada. Esta sequência provocou o riso da platéia na sessão – se de concordância, de estupefação, ou simplesmente por humor, não podemos afirmar.
Todavia, o primeiro caso – a parcialidade velada – é ainda mais perigoso e, coincidentemente ou não, mais presente.
O diretor escolhe-se apresentar didaticamente os primeiros passos da operação, com pouca ou nenhuma intervenção subjetiva além de comentários esporádicos da equipe da Polícia Federal – e desta forma oferecendo ao público uma cobertura mais imparcial e quase documental da realidade da operação. Já quando o enredo se encaminha para a entrada de figuras de maior conhecimento público, particularmente membros do Partido dos Trabalhadores, o filme toma uma curva mais ficcional e subjetiva.
A entrada de Ary Fontoura como o ex-presidente Lula, sobretudo, é um dos expoentes da subjetividade e tendenciosidade do longa. Assim que se ouve a voz de Ary, extremamente distorcida e caricata para simular a real de Lula, tem-se uma novaonda de risos na platéia. Este já é o segundo exemplo do uso da imagem de um petista – ou ex-petista – como alívio cômico ou mesmo chacota no longa. A interpretação de Fontoura continua caricata por todo o filme. Suas decisões de voz e expressão constroem um Lula agressivo, ríspido, ranzinza e vilanesco, como bem expressou Pablo Villaça em sua vídeo-resenha. Nem mesmo figuras como Marcelo Odebrecht e Alberto Youssef são retratados como figuras tão desagradáveis quanto Lula.
Quem está longe de ser chacota, todavia, são os membros da Polícia Federal e o juiz Sérgio Moro, interpretado por Marcelo Serrado. Estes, embora a equipe tenha declarado não desejar construir heróis, são os verdadeiros heróis e heroína da história retratada. Eles são agentes de integridade impecável e comprometimento total e indisputado com a Lei; eles são filhos atenciosos, pais de família amorosos, e pessoas completamente honestas. Até mesmo a figura de Moro, já envolvida em polêmicas de corrupção, é tratada com total respeito e até um certo saudosismo: ele é retratado dando aulas em Universidade, cozinhando para a família, conversando com o filho, e se interpondo como pilar da Lei durante a investigação. Mesmo quando Moro decide vazar a conversa de Lula com a então presidente Dilma, que queria torná-lo ministro para garantir foro privilegiado (conversa esta que foi obtida após o período legal de gravação, e que portanto não deveria ser utilizada como prova e muito menos divulgada a público), ele não é por um único momento questionado; assume-se, sempre, que ele fez o que é certo e o que a Lei manda.
Embora tenha sido declarado diversas vezes por seu diretor que Polícia Federal não é um filme documentário, os fatos que o inspiraram e a ficção construída são inevitavelmente confundidos – ainda mais com a recente espetacularização e a cobertura menos-que-ideal do andamento da operação Lava Jato. Associado ao crescente fenômeno da pós-verdade, o público de massa está largamente condicionado a tomar boa parte do que lhe é apresentado no longa como realidade; o que é altamente perigoso para a construção da opinião pública e prejuidicial ao debate político.
Os patrocinadores, a PF, as polêmicas
Custando a quantia surpreendente de R$ 16 milhões para ser produzido, o longa não teve seus patrocinadores revelados à imprensa – o que gerou suspeitas desde sua época de produção e, agora, pode gerar problemas maiores para a equipe. O Sindicato de Advogados de São Paulo, segundo a colunista Mônica Bergamo, para a Folha, pretende entrar com ação judicial para revelar quem são os patrocinadores de “Polícia Federal”. Ainda segundo Bergamo, o questionamento do presidente do Sindicato Aldimar de Assis é: “Será que os patrocinadores são de empresas que prestam serviços públicos? Há algum interesse eleitoral nesse filme?”.
Na coletiva de imprensa de São Paulo, o diretor Marcelo Antunez afirmou que a razão de não revelar os patrocinadores é pedido deles próprios. Após decidir não utilizar dinheiro das leis de apoio à cultura como a Lei do Audiovisual, a produção recebeu apoio de diversos parceiros que, sem exceção, pediram que seus nomes não fossem revelados. Desta forma, por contrato, a equipe estaria proibida de divulgar os nomes. Além disso, o diretor assegura que, até então, seus patrocinadores não estariam envolvidos no esquema de corrupção revelado pela Operação Lava-Jato, e acrescenta que, caso haja a divulgação de um de seus nomes como envolvido, por uma exigência de contrato, o patrocinador não será mais vinculado ao longa.
A questão que permanece é: já que os patrocinadores não tem envolvimento na Lava-Jato, qual a razão do sigilo? Por que não gostariam de ter seus nomes relacionados a esta produção? E ainda, por que a equipe, que se diz preocupada com a transparência ao não utilizar dinheiro público e ao apoiar a investigação de corrupção, aceitou esconder os nomes de seus financiadores? Talvez a possível acusação de imparcialidade seja ainda pior caso tais nomes sejam revelados?
Outra questão menos abordada mas, possivelmente, mais polêmica, é a consultoria prestada pela Polícia Federal para os produtores do filme. Sem contratos formais, membros da PF teriam auxiliado na produção do filme com livre acesso a depoimentos e até imagens gravadas por agentes durante a condução coercitiva do ex-presidente Lula. O produtor Tomislav Blazic negou tal acesso, porém um vídeo de Ary Fontoura diz o contrário; em entrevista ao AdoroCinema, o ator, que interpreta Lula, afirma casualmente que os atores assistiram às gravações, inclusive da condução coercitiva.
Tal divulgação das imagens consistiria em ilegalidade; a Polícia Federal não tem a autorização da defesa de Lula para conceder acesso do público – mesmo que parte dele – às imagens de sua condução (que, inclusive, são feitas no espaço privado de seu apartamento). Estariam então a equipe e o elenco do filme se beneficiando de uma ação ilegal da Polícia? Onde fica, neste caso, o lema que nomeia a produção: “A lei é para todos”?
Como já dito por seu diretor, Polícia Federal: A Lei é para Todos é o primeiro longa de uma trilogia já planejada e já em processo de produção. Espera-se, por respeito ao público, à informação e também a todos os personagens envolvidos dentro e fora das telonas, que as próximas produções tratem com maior veracidade e transparência deste assunto tão complicado, porém tão importante.
Assista ao trailer de Polícia Federal: A Lei é para Todos, que estreia dia 7 de setembro:
por Juliana Santos
jusantosgoncalves@gmail.com