Por Carolina Unzelte (carol.unzelte@gmail.com)
“Eu deveria acordar às seis pra sair às sete e chegar aqui sempre no horário. Levo ela pra creche, vou pra faculdade e tenho aula das oito ao meio-dia. Na hora do almoço, tenho iniciação científica. À tarde, mais aula; pego ela e chego às seis em casa. Limpo a casa, lavo a roupa, faço comida, dou comida, dou banho, ponho pra dormir, arrumo a malinha dela, estudo e faço os trabalhos da escola.” Essa é como, idealmente, deveria ser a rotina de Ivy Tasso, estudante do último ano de Medicina Veterinária e mãe de Alice, de cinco anos. Como se pode imaginar, nem tudo se cumpre: “Nunca dou conta certinho. A gente faz algumas coisas, deixa de fazer outras”, ela diz.
Dados recentes da Universidade de São Paulo indicam que cerca de 48% de seu corpo discente — incluindo graduação, mestrado e doutorado — seja composto de mulheres. Números parecidos se mostram entre os ingressantes: dentre as 11 mil matrículas feitas neste ano na USP, mulheres somam quase a metade. Por outro lado, não há contagem igual do número de mães uspianas, nem mesmo nos questionários da Fuvest, a partir dos quais se calculam outros dados socioeconômicos. Mas não é impossível que, nos quatro anos — ou mais — que dura grande parte dos cursos, uma grande quantidade das 36 mil uspianas engravide e acumule, além dos papéis de mulher e estudante, o da maternidade. “Todas nós, de certa forma, estamos sujeitas a ter um filho na graduação”, aponta Ivy.
Segundo ela, sem as creches, sua continuidade no curso seria difícil, uma vez que levar Alice às aulas é inviável. “Como eu ia levar ela pra laboratório, pra hospital? Vou levar ela no meio de uma cirurgia? Não tem como.” Além disso, a experiência de estar numa sala de aula durante oito horas seria complicada para ambas. “[Se] pra mim, já é insalubre, pra ela seria impensável”, afirma.
“Não tenho do que reclamar”
A Creche Central, à qual a estudante se refere, encontra-se na Cidade Universitária. Assim como a Creche e Pré-Escola Saúde, a Creche e Pré-Escola São Carlos, a Creche da Carochinha (em Ribeirão Preto) e a Creche Oeste, também no Butantã, ela é administrada pela Divisão de Creches da Superintendência de Assistência Social (SAS), órgão responsável pelos serviços de apoio à permanência estudantil na universidade. As cinco creches atendem a filhos de funcionários, de estudantes e de docentes, sendo inclusive centros de referência em educação infantil. “A gente vê a diferença de uma criança que é formada nessa creche e em outra. Até a questão de argumentação, de escolhas, de ter noção de coletividade”, Ivy conta. “As vivências que ela [Alice] tem lá dentro, as atividades lúdicas e de experimentação, a nutrição balanceada, não tenho do que reclamar.”
A visão de Ivy é compartilhada por Thaïs Chauvel, mestranda na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e mãe de Lorena, de três anos e meio. Desde que tinha um ano e três meses, sua filha está na creche. “Tenho muita confiança no trabalho deles”, Thaïs conta. A gravidez no segundo ano da graduação em Letras, “apesar de não ter sido planejada, foi desejada”, diz ela, que em momento algum parou de estudar. “Ela nasceu em janeiro e não tranquei a faculdade. Descobri que estava grávida em maio e fiz o segundo semestre normal. Quando as aulas voltaram, voltei junto.”
Naquela época, para prosseguir com o curso, a solução de Thaïs havia sido a ajuda recebida pelo pai de Lorena. “Era o tempo de uma aula, umas três horas longe dela. Ele sempre trabalhou e alterou o horário dele de entrada pra ajudar. Eu tinha que correr mesmo.” De qualquer modo, não era fácil conciliar maternidade e vida acadêmica. “Eu não dormia à noite para fazer trabalhos”, ela diz. “É impossível escrever e estudar com uma criança no seu colo.”
“Quando conto para professores de outros países sobre a creche, eles ficam impressionados. Inclusive mostrei a creche para um deles”, ela afirma. Sua rotina foi muito aliviada com a vaga da filha. Com esse apoio, a estudante chegou até mesmo a atuar como professora do Centro de Línguas da FFLCH — uma maneira de aumentar, também, seu orçamento. “Eu gostava muito de dar aulas”, conta. “Ficava totalmente focada no que estava fazendo, sem me preocupar tanto com a Lorena, como acontecia quando estava estudando.” Agora, apesar de ter ficado na lista de espera para bolsa no mestrado, com a renda vinda de aulas particulares, a creche continua sendo fundamental para que Thaïs persista na vida acadêmica.
As creches recebem crianças de quatro meses aos seis anos de idade, também sendo um campo de pesquisa e de formação de estudantes da área de educação. Fazendo parte da Política de Permanência e Formação Estudantil — que, segundo Anuário Estatístico de 2015, recebeu cerca de 4,4% do Orçamento Geral da Universidade —, esses centros de educação infantil existem há mais de trinta anos e receberam verba de aproximadamente 8 milhões de reais em 2014.
A entrada de crianças na cheche é feita após uma seleção de cunho socioeconômico e seguindo uma distribuição pré-determinada: 40% das vagas são para filhos de funcionários, a mesma porcentagem destina-se aos filhos de estudantes e, geralmente, os 20% restantes são de filhos de professores. Estima-se que, atualmente, cerca de 600 crianças sejam atendidas. Desde 2015, no entanto, novas vagas não têm sido abertas. A situação também se agravou quando foi feito o anúncio do fim das inscrições de atendimento: àquela altura — era fim de janeiro —, já não era mais possível procurar as creches das redes municipal e estadual para o ano letivo.
“Não estavam recebendo mais crianças”
“Foi uma injustiça muito grande justo na nossa vez isso ser podado, da forma como foi feito”, conta Gabriela Pereira, estudante de Ciências Sociais e mãe dos gêmos Tauã e Aruã. “As crianças foram selecionadas e ninguém entrou. Foi um telefonema do reitor para a SAS: pronto, não vai mais entrar criança.”
Atualmente, calcula-se que existam pelo menos 117 vagas ociosas entre as creches. A justificativa para a suspensão foi o Programa de Incentivo à Demissão Voluntária (PIDV), que visaria a conter a crise orçamentária da universidade. Por esse programa, desligaram-se 1.472 de seus funcionários. A Comissão de Mobilização das Creches da USP, que conta com pais, professores e funcionários das unidades de educação infantil, vem lutando conta a precarização e pela abertura de vagas, promovendo eventos que incluem cirandas, passeatas com as crianças, aulas abertas e atos conjuntos com trabalhadores e estudantes, além de rodas de conversa.
“Fomos pegos de surpresa. Quando ingressamos, no Manual dos Calouros constava que haveria creche para filhos dos alunos. Eu falo no plural porque tem uma amiga minha na mesma situação”, aponta Gabriela. Além do acesso às creches, as uspianas que engravidam têm direitos excepcionais assegurados pela Lei nº 6.202, de 17 de abril de 1975, que lhes garante a possibilidade de desempenhar atividades acadêmicas, a partir do oitavo mês de gestação, em suas próprias casas. As mães ainda são dispensadas das aulas por três meses após o nascimento do(s) filho(s), período que pode ser prolongado com atestado médico.
Mas a falta de vagas ainda pesa. “A demanda da faculdade é muita e acabo ficando em desvantagem em relação aos alunos que não têm flhos ou alunos que têm filhos nas creches”, Gabriela conta. “Neste semestre, estou matriculada em três disciplinas; para duas estou conseguindo fazer as coisas, na outra eu não fiz nada.” Essa condição também põe a estudante em situações desagradáveis. Em conversas com professores, ela chega a chorar. “É humilhante você ter que se colocar nessa posição por falta de uma estrutura básica que antes existia”, completa.
“Eu não estou de braços cruzados, procuro alternativas”, diz Gabriela. Desde setembro do ano passado, Aruã e Tauã estão em primeiro e em segundo lugar na fila de espera para matrícula em creches públicas comuns. “Mas a média de espera é muito longa para o tamanho deles. Não tem vaga, não é fácil”, ela afirma. De qualquer maneira, a creche da Prefeitura não é a opção ideal: com os filhos dentro da USP, sua locomoção seria mais fácil. “Ter filhos é uma coisa que pode acontecer. Eu fiquei grávida e contava com esse apoio das creches.”
Para tentar contornar o impasse e evitar faltas, Gabriela chegou a levar os gêmeos à faculdade. “As pessoas foram bem solícitas, inclusive os professores”, afirma. “No entanto, algumas amigas minhas relataram dificuldades nesse sentido.” Apesar de frequente, mesmo com ela o bom tratamento não é unânime. “Acho que rola um preconceito por parte dos estudantes quando alguém está andando com as crianças pelos corredores dos institutos”, pontua. “Noto alguns olhares enviesados.”
Pryscilla Vaz, mestranda da Escola Politécnica e mãe de Catarina, de cinco meses, tem o mesmo problema de Gabriela. “Nas primeiras vezes que fui fazer o processo seletivo, eu já estava grávida”, ela lembra. “No caminho para a Poli, vi a Creche Central. E pensei — ‘nossa, isso vai ser uma mão na roda se eu conseguir vaga’.” Mas suas expectativas foram frustradas. “Cheguei a mandar email para lá perguntando como funcionava e nem recebi resposta”, conta. “Quando estava para começar as aulas, soube que não estavam recebendo mais crianças. Fiquei muito chateada.”
Para a filha frequentar as aulas, que ocorrem duas vezes por semana, a mãe de Pryscilla, que mora em Santos, vem para São Paulo cuidar da neta. “Vou fazendo as coisas conforme eu consigo. Sou aluna de dedicação exclusiva, então não trabalho”, diz a estudante. Dessa maneira, a possibilidade de uma creche particular é pequena. “A minha bolsa saiu agora e, por aqui onde eu moro, nem tem creche municipal. Por causa do valor, não tenho condições no momento.”
“Eu poderia me dedicar muito mais para o mestrado se eu tivesse um lugar de confiança pra deixá-la, que fosse próximo e pudesse amamentar quando necessário”, diz Pryscilla. “Ela precisa de cuidados o tempo todo, atenção e estímulos, uma série de necessidades”. Apesar das dificuldades, ela não pensa em desistir. “Eu tô vendo como vai ser, sem enxergar uma nova possibilidade por enquanto. Estou indo um dia de cada vez.” Gabriela pensa o mesmo. “Preciso me formar e ter uma boa colocação no mercado de trabalho porque tenho seres que dependem de mim”, afirma. “Mas, que é difícil, é.”
“Essa é uma luta de todas as mulheres”
A desvalorização dos papéis de mãe e dona de casa, que são acumulados além da função de estudante, também são um problema. “No documentário ‘O começo da vida’ [filme brasileiro produzido neste ano, sobre o desenvolvimento de bebês até o nascimento], uma mulher diz que todo mundo considera que a mãe não faz nada. O trabalho dela é criar e educar um cidadão do futuro, ensinando a ter ética e responsabilidade”, fala Pryscilla. “E a sociedade considera que isso é nada. E que manter a casa limpa é nada. E fazer todas essas coisas é nada.” Gabriela concorda: “A cobrança não é por ser estudante. É por ser mulher. Sempre em cima de nós, mesmo aquelas que têm companheiro. Essa é uma luta de todas as mulheres.”
Ivy Tasso conta que, se não fossem os benefícios, “não teria nem começado” a graduação. “Foi decisivo o fato de ter a creche para que eu escolhesse por aqui, assim como ter o bandejão e a esperança de ter o CRUSP”, diz ela, que também foi aprovada na UNESP, mas não conseguiu um apartamento. A moradia estudantil disponibilizada para as mães, desde o final da década de 1980, se resume a doze apartamentos adequados para se morar com crianças, no térreo do bloco A do CRUSP, na Cidade Universitária, conhecido como o “bloco das mães”. Composto por essas mulheres e apoiado pela SAS, o projeto Mãe Cruspiana é uma iniciativa que promove debates, palestras e oficinas para melhorar a qualidade de vida dos pequenos moradores. De qualquer modo, estima-se que mais de trinta crianças vivam no CRUSP em situação irregular — ou seja, em apartamentos que não são planejados para recebê-las. Enquanto isso, os blocos K e L são utilizados para atividades administrativas da reitoria.
Gabriela acredita que as creches deveriam ser encaradas de forma mais ampla. “Não é um favor que a USP está prestando. A creche funciona como um polo formador e de cultura e extensão da Faculdade de Educação (FE)”, ela diz. “Estão tratando a gente de uma forma que não era pra ser, porque aqui é uma universidade de educação renomada e, como tal, precisa também desse foco de extensão.” Em um âmbito maior, o fim das creches representa a elitização da Universidade de São Paulo, ao impossibilitar que estudantes sem condições de pagar por serviços privados conduzam sua vida acadêmica. “É uma sensação de impotência muito grande. Tudo isso é muito desestimulante”, retoma. “A intenção da universidade realmente é colocar pra fora as pessoas que, assim como eu, vêm de uma classe mais popular. Cortar a permanência é fechar a universidade para essas pessoas.”
Uma das possibilidades especuladas para explicar a não abertura de vagas nas creches da USP é a de os planos da reitoria incluírem a municipalização das escolas de educação infantil, desvinculando-as da universidade e passando-as para a administração do governo municipal. “Durante as greves, é bem complicado ficar sem as creches”, diz Ivy Tasso. “Mas a gente sabe que é por uma boa causa, porque perder uma creche modelo dessa é inestimável.” Outra especulação é que essa medida seria um prenúncio ainda mais sombrio: o fechamento das creches em definitivo. No entanto, procurada pela reportagem, a SAS não respondeu às questões levantadas.
ATUALIZAÇÃO: no dia 03/07/2016, em resposta à reportagem, a SAS, via assessoria de imprensa da USP, não esclareceu os motivos para o não recebimento de novas crianças, mas ressaltou que garante auxílio-creche para funcionários e professores no valor de R$596,96 por dependente. Também afirmou não haver previsão para a abertura de vagas. Quando questionada sobre a possibilidade de fechamento/municipalização das creches universitárias, respondeu que “não há previsão para o fechamento”.