Talvez um dos motivos para a Flip ser uma festa, não um festival literário, seja que ela se espalha na cidade de um jeito que parece espontâneo, como uma celebração entre amigos. As ruas de pedras do centro histórico de Paraty são o palco para poesia e literatura como elas devem ser: nascidas como que por si só, surgem sozinhas e crescem pro mundo.
Assim, mesmo que você não assista às mesas na Tenda dos Autores, você pode viver as atrações literárias em outros lugares, dentro das casas de batentes coloridos típicos de Paraty. E, como toda boa festa, a entrada é gratuita.
Uma delas é a Casa de Cultura do Sesc. No dia 1º de julho, durante seu café literário, deu lugar ao “Quadrinhos em Diálogo” com os gêmeos Gabriel Bá e Fábio Moon, quadrinistas premiados pelo Jabuti e autores do “Daytripper” e da recém lançada adaptação do texto de Neil Gaiman “How to talk with girls at parties”, além de Eloar Guazzelli, ilustrador ganhador do HQ Mix, e mediado por Bruno Dorigatti.
Em duas horas bem descontraídas, eles discutiram o passado e o presente do mercado de quadrinhos e animação no Brasil, que sofrem um tipo de discriminação silenciosa segundo Eloar, o chamado “preconceito fofo”. Os anos 90, para as HQs, foram definidos como “áridos”, já que as publicações resumiam-se,apenas, à super-herois e Turma da Mônica e era difícil encontrar títulos variados nas bancas.
O momento atual, entretanto, foi chamado de “época dourada”, já que os super heróis são popularizados por filmes e os eventos de HQs são mais populares, possibilitando um maior contato com o público. Para os quadrinistas, foi a insistência o principal fator responsável por essa guinada. Fábio e Gabriel também relembraram como começaram, há 20 anos atrás, fazendo fanzines no colégio:“você era uma editora ambulante”.
Também foi assunto da conversa as adaptações de obras literárias para os quadrinhos. Eloar opinou que adaptação é um termo “levemente pejorativo” pois os quadrinhos já são uma obra por si. “Kapute”, sua adaptação de uma história italiana dos horrores da guerra, foi lembrada. Os gêmeos também contaram suas experiências com “Dois irmãos”. Como concluíram: “qualquer porta de entrada é uma boa porta de entrada” para o universo dos quadrinhos.
Ana Cristina vive
Não tinha mais espaço na sala. Ana Cristina Cesar ecoava para fora da Casa Folha, em debate apresentado por Alcino Leite Neto. Assistíamos pela calçada. Cada lembrança do seu irmão Marcos Augusto Gonçalves, da sua amiga, Heloisa Buarque de Hollanda, da sua professora de português Marie, materializavam a poetinha cuja poesia marginal transpira por esses dias em Paraty.
Heloisa Buarque de Hollanda, amiga e que agora lança em ebook uma coletânea de correspondências com dois áudios originais da homenageada, relembra o gosto refinado de Ana pela cultura de massa, pela simplicidade. A poeta era fã incondicional de novelas como “O astro” e do cantor Roberto Carlos, atitude, na época, considerada sinal de alienação. Mas, para Heloisa, “novela não é pra analisar, é pra chorar”.
Para o irmão, “a poeta veio depois da irmã” e não lembra quando teve o primeiro contato com os escritos de Ana C., mas relembra as ligações de sete horas que ela tinha com Caio Fernando de Abreu. Heloisa, inclusive, definiu-a como uma “versão feminina de Caio”, tamanha era a conexão entre eles. “Para Ana, tudo tinha que significar literariamente”, diz Heloisa. Cada roupa que vestia fazia parte da construção de um personagem, da sua literatura. Conta da vez em que, ao voltar de Londres, Ana apareceu na sua porta de galochas amarelas, macacão de aviador, um chapéu gigante e, claro, seus emblemáticos óculos escuros.
Uma participação inesperada foi a de Marie Louise, professora de português da poeta aos treze anos, no colégio Amaro Cavalcante. Chamava Ana de “fadinha” e recordou o dia em que ensinou objeto direto preposicionado após a autora ter utilizado o recurso ao conversar com D. Marie.
Ao abrir as perguntas para o público, foi citado o artigo de Felipe Fortuna na Folha de S. Paulo que considerou a escolha de Ana Cristina César como homenageada da Flip “um desprestígio da literatura”. Talvez caiba como reposta os versos da autora: “Apaixonada,/saquei minha alma/ minha calma/ só você não sacou nada.”
Livro não tem que ser de papel
Reunindo profissionais de todas as fases de produção do livro digital, da academia, com Elisabeth Saad, até Marcelo Goia, que trabalha com a distribuição pelo Bookwire, a conversa foi mediada por Camila Cabete, da Kobo, e contou também com Tiago Ferro, da e-galáxia. O nome do evento, “O futuro do livro digital é real?” foi problematizado por Camila logo de cara, que afirmou que, se não fosse, “não estaríamos todos aqui”.
Localizada na casa de pedra da Publishnews, o assunto pedra não podia faltar. Tiago afirmou que a maior pedra no caminho do livro digital é “dar dinheiro” e Marcelo complementou: “Ainda somos o primo pobre”. Apesar das vantagens oferecidas pelo formato, comum as citadas menor logística e comodidade na compra, permanece o mito de que os ebooks não são populares. Mito esse que os palestrantes desmentiram: apesar da crise econômica, o setor permanece crescendo. Na Bookwire, o aumento de venda é de 20 a 27% a cada mês, como disse Marcelo, sendo 12 a 15 mil unidades distribuídas diariamente.
As perguntas do público, abertas desde o início, enveredaram o debate para a questão da pirataria pela internet das obras. Um professor de economia presente afirmou que ele próprio era um pirata, uma vez que disponibiliza títulos, muitas vezes importados, de custo muito alto para alunos e docentes. Elisabeth Saad complementou com a dificuldade de um aluno bolsista de pós-graduação de comprar artigos acadêmicos por trinta dólares cada. Também contou que a digitalização na academia é cada vez maior, pela necessidade de publicação de textos, sendo que a plataforma é um campo sem limites para isso.
“Os autores só querem ser lidos”, afirmou Tiago. E as plataformas digitais são um ótimo meio para publicações independentes, seja pelo custo mais baixo ou pelo maior alance que pode ter. Entretanto, ainda falta explorar as possibilidades de experimentação e convergência em transmídias, inclusive a complementariedade com o livro físico.
Literatura em filme
A Casa da Cultura Câmera Torres se transformou em cinema para exibir o documentário da Philos TV “Na fronteira com a Síria”, que acompanha a trajetória de um médico voluntário em um hospital turco a 150 metros da Síria. Ao ver o atendimento aos opositores do governo Assad feridos, a dimensão humana do conflito é exposta cruamente – e o impacto nos espectadores é imediato.
Seguido do filme, a jornalista da Folha de S. Paulo e ex-ecana, Patrícia Campos Mello, que atuou como correspondente na Síria, além de coberturas no Iraque e na Turquia ressaltou o papel importante do jornalismo em humanizar a visão da guerra. De acordo com o seu ponto de vista, as imagens de guerra, além do seu viés sensacionalista, têm o papel de escancarar a realidade de forma mais imediata e contundente.Também opinou sobre a crise humanitária de refugiados e a recente saída da Grã Bretanha da União Europeia: “Os governos precisam entender que acolher é inteligente economicamente”.
Por Giovanna Querido e Carolina Unzelte
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