Imagem de destaque: Ilustração – Jeff Fisher
Entre o final de junho e começo de julho, as pedras irregulares do calçamento de Paraty são tomadas por gente de todo o mundo. Adultos, jovens e crianças unidos por uma paixão: livros. Os prédios históricos se tornam pontos de encontro para as mais diversas palestras e discussões, e até as árvores entram no clima: repletas de livros para quem quiser sentar e ler.
A Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) é o maior evento de literatura da América Latina. Chegando à sua 14ª edição em 2016, a feira ocorre entre os dias 29 de Junho e 3 de Julho, e, além de trazer vários debates, movimenta toda a cidade de Paraty durante esse período.
De curadoria de Paulo Werneck pelo terceiro ano consecutivo, a FLIP reúne grandes nomes da literatura mundial, e promove atividades relacionadas ao tema e à outras manifestações culturais, tais como workshops de escrita e rodas de conversa. Todo ano o evento homenageia um escritor consagrado da literatura brasileira e nesta edição, o nome escolhido foi o da poetisa Ana Cristina Cesar, ícone da poesia marginal e segunda mulher a ser homenageada.
A programação, que conta com uma mulher em lugar de destaque, também tem a maior quantidade de escritoras mulheres dentre todos os outros anos: elas compõem 44% dos nomes escolhidos. Svetlana Aleksiévitch, prêmio Nobel de Literatura de 2015; Valeria Luiselli, escritora latino-americana em ascensão; Tati Bernardi, roteirista de grandes produções da Globo; e Heloisa Buarque de Hollanda, crítica literária e pesquisadora, são apenas algumas das presenças confirmadas no evento. Reflexo das pressões vinda principalmente do movimento feminista, por maior participação das mulheres em todos os setores, inclusive na literatura e no mercado editorial.
A festa não se resume apenas à Tenda dos Autores, onde acontecem as mesas principais. Este é, na verdade, o único evento da FLIP que necessita de ingressos, estando todo o restante à disposição daqueles que se interessam por se aventurar no universo cultural: literatura, música, dança, teatro e cinema se mesclam na atmosfera inspiradora que domina a cidade histórica nos dias da feira.
Crianças e jovens têm uma programação voltada só para eles. A Flipinha, núcleo infantil da festa, conta com oficinas, rodas de conversa com autores de livros infantis e contação de histórias. Na FlipZona, oficinas e atividades inserem a literatura no mundo dos adolescentes de Paraty. E, por toda a cidade, se espalham as casas de parceiros, onde acontecem debates de temas diversos com nomes importantes da cena cultural e intelectual brasileira, como a Casa Rocco, a Casa Folha e o Instituto Moreira Salles.
Nossa homenageada, Ana Cristina Cesar
A “menina loira, com o azul do mar e da melancolia no olhar”. É assim que Joana Matos Frias descreve a homenageada da FLIP 2016, em um dos apêndices do livro Poética (Companhia das Letras, 2013), de Ana Cristina César. Ícone da Poesia Marginal, movimento dos anos 70, Ana C. é um nome de peso da poesia contemporânea brasileira.
Ana C. estava na contramão de seu tempo. Algumas características, como a radicalização da sintaxe do poema ou os recorrentes poemas-minuto, poderiam associá-la ao Movimento Modernista, mas a verdade é que a sua poesia intimista era única, assim como ela. Cheia de ousadia e originalidade, sua vida era um próprio poema, que ela viveu, assim como escreveu intensamente.
Diálogo de surdos, não: amistoso no frio.
Atravanco na contramão. Suspiros no
contrafluxo. Te apresento a mulher mais discreta
do mundo: essa que não tem nenhum segredo.
(Ana C. Noite Carioca)
Seus primeiros livros, Cenas de Abril e Correspondência Completa foram publicações independentes. A primeira antologia publicada por uma editora foi Á Teus Pés (Editora Brasiliense, 1982), uma reunião de seus três primeiros livros, que a consagrou entre um público mais amplo, instigado pela leitura desafiadora de seus poemas.
Suicidou-se em 1983, aos 31 anos. A morte precoce levou uma das maiores poetas brasileiras, que também atuou como tradutora e crítica literária. Ana C. permanece na memória daqueles que tanto se envolveram em sua obra e em sua singularidade de menina-mulher, e que muito se influenciaram com seus escritos, deixados para matar as saudades.
Representatividade na FLIP
O assunto não é apenas tema do mais novo texto do facebook ou da última conversa entre amigos. A representatividade está em pauta e, como não poderia deixar de ser, chegou à literatura.
A discrepância entre a participação das mulheres em relação aos homens no mercado editorial já é grande, mas se comparada a participação dos negros em relação aos brancos na literatura, o abismo é ainda maior. Uma pesquisa de Regina Dalcastagnè, professora da UnB, revela: entre 1990 e 2004, 72,7% dos escritores brasileiros de ficção eram homens. E, dentre estes autores, quaisquer o gênero, 93,9% eram brancos.
Reflexo disso é a própria FLIP. Apesar da grande quantidade de escritoras mulheres na programação do evento, não vemos este ano, uma única negra. E, quando observada em panorama mais amplo, a Festa Literária nos mostra que o único negro deste ano é Lázaro Ramos, participante da Flipinha.
Em um tempo no qual a conversa sobre representatividade é tão presente, a maior festa literária da América Latina peca em não apresentar um único participante negro nas mesas principais, especialmente quando consideramos que, em anos anteriores, escritoras como Chimamanda Ngozi Adichie e Toni Morrison fizeram parte da programação.
Sendo assim, a 14ª edição da FLIP é das mulheres… brancas.
Para saber mais sobre a FLIP 2016, acompanhe a nossa cobertura aqui, no Sala 33.
Por Beatriz Arruda e Victória Martins
beatriz.arruda12@gmail.com | victoria.rmartins19@gmail.com