Desde o início do mês de setembro, a morte de uma mulher que estava sob custódia da polícia provocou uma série de manifestações em diversas regiões do Irã. A jovem Mahsa Amini, de 22 anos, foi presa em Teerã por utilizar seu hijab — lenço islâmico — de maneira supostamente inadequada.
O estado iraniano não se responsabilizou pela morte da jovem de origem curda, e tem reprimido os protestos pelo país. Os confrontos entre policiais e manifestantes resultaram em diversas mortes. Segundo a organização Iran Human Rights (IHR), até o dia 2 de outubro 133 pessoas morreram.
Diversas versões a respeito da causa da morte de Mahsa Amini tem circulado, como a versão em que ela possuía uma doença pré-existente ou teve um mal súbito – infarto –, e faleceu. Outras dizem que a jovem foi vítima de agressões físicas dos policiais, e veio a óbito devido a um espancamento.
Em entrevista a Jornalismo Júnior, a antropóloga e professora Francirosy Campos Barbosa afirma lamentar a morte de qualquer mulher, sob quaisquer circunstâncias, e destaca que o motivo da prisão da jovem causa estranhamento. “Estive em Teerã em 2015, e vi várias mulheres portarem seus lenços de diversas maneiras, em sua maioria com cabelo à mostra”, diz.
Francirosy, que é pesquisadora de comunidades muçulmanas, também ressalta outros aspectos da sociedade feminina iraniana, como o fato de que dentre os países islâmicos, o Irã é um dos que possui maior nível de escolaridade entre as mulheres, com a maioria tendo formação superior.
Além disso, as mulheres iranianas estão presentes no parlamento e na vida social como um todo, o que causa controvérsias nos movimentos de mulheres, já que o poder público nega sua existência, e caracteriza as ações de movimentos feministas como um desvio devido à influência ocidental. Embora haja negação do Estado iraniano, os protestos desencadeados pela morte de Amini continuam por todo o país.
Repercussão Internacional
O contexto chamou atenção de outros países, onde também ocorreram manifestações nos últimos dias. Os protestos clamam por justiça pela morte de Mahsa Amini, por liberdade das mulheres e condenam a repressão das autoridades iranianas.
No último sábado, dia primeiro de outubro, cerca de 150 cidades ao redor do mundo tiveram manifestações de apoio ao movimento realizado no Irã, segundo o G1. Em Roma, cerca de mil pessoas marcharam e pediram justiça por Mahsa Amini. Em Tóquio, manifestantes exibiram faixas com a mensagem “Não vamos parar”.
O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, tem feito críticas à situação iraniana, e prometeu maiores sanções econômicas ao Irã. Em resposta a intervenção americana, o porta-voz do ministério iraniano das Relações Exteriores se manifestou em seu Instagram: “Teria sido melhor se Joe Biden pensasse um pouco sobre o histórico de direitos humanos de seu país antes de falar sobre a situação humanitária (no Irã), embora a hipocrisia não exija uma reflexão profunda”, afirmou Nasser Kanani.
Apesar da mobilização, Francirosy chama atenção para o fato de que nem todas as mulheres iranianas são favoráveis ao movimento. “É importante dizer, também, que isso não se trata do desejo da maioria das muçulmanas iranianas. Existem aquelas que discordam dos movimentos feministas e fazem suas próprias mobilizações a favor do regime”, diz.
A antropóloga ressalta que em cada sociedade islâmica, o poder estatal regula a questão da vestimenta islâmica de maneira diferente. “A vestimenta islâmica é usada por muitas mulheres como devoção a Deus, e consideram que isso é uma relação de devoção e não algo imposto pela sociedade”, conta.
Para exemplificar, a pesquisadora cita exemplos de países que possuem parte da população muçulmana e tem diferentes posições estatais, como a Turquia, que proibiu por muitos anos o uso do lenço em repartições públicas, e a Índia, onde as mulheres são perseguidas pela sociedade por desejar utilizar o lenço. “Não é possível usar a mesma régua de medida, porque o que desejam e o que vivenciam cada muçulmana é diferente”, afirma.
Obstáculos do feminismo em regimes teocráticos
O caso de Mahsa Amini é um exemplo de vários casos que ocorrem diariamente no mundo, principalmente em países com regimes teocráticos e autoritários. A luta feminista no Irã presencia mais um marco na sua história de muita violência e repressão policial.
No Irã, as manifestações contra o uso do lenço (hijab) ou xador (um manto de corpo inteiro) não são recentes. Francirosy comenta que o próprio movimento feminista iraniano tem sua projeção com os movimentos de mulheres iranianas, insatisfeitas com a obrigatoriedade do uso da vestimenta islâmica e outros direitos que, segundo elas, são negados. Além disso, há um possível envolvimento de xenofobia no caso de Mahsa, que era de origem curda.
A antropóloga ressalta que, para as mulheres iranianas, a morte de Mahsa é símbolo de repressão às outras mulheres que desejam não estar submetidas às determinações do governo. O presidente do Irã, Ebrahim Raisi, garante que haverá uma investigação sobre o caso, mas as iranianas não se sentem protegidas pelas palavras de seu presidente frente aos atos violentos da polícia.
A Revolução Islâmica e o uso dos hijabs
A luta das autoridades iranianas contra o “mau hijab” (o uso incorreto de uma roupa ou acessório obrigatório) começou logo após a Revolução Islâmica de 1979, a fim de fazer com que as mulheres se vestissem de maneira “mais comportada”. Antes da derrubada do xá pró-Ocidente Mohammed Reza Pahlavi, ver mulheres com cabelos descobertos e com roupas curtas era comum nas ruas de Teerã. A fundação da República Islâmica fez com que as leis, que protegiam os direitos das mulheres, fossem revogadas. Logo após a revolução, haviam pessoas oferecendo véus gratuitos para mulheres nas ruas.
Em 7 de março de 1979, o aiatolá Ruhollah Khomeini, líder da revolução, decretou o uso obrigatório dos hijabs para todas as mulheres em seus locais de trabalho. Como resposta, mais de 100 mil pessoas, a maioria mulheres, foram às ruas de Teerã para protestar no Dia Internacional da Mulher. Em 1981, mulheres passaram a ser obrigadas a usarem o xador ou um lenço na cabeça e um manteau (sobretudo) cobrindo os braços.
A luta contra o hijab obrigatório continuou em pequena escala e em casos individuais. Como forma de intensificação do policiamento, em 1983, por decisão do Parlamento, foi decretada a punição de 74 chibatadas às mulheres que não cobrissem o cabelo em público. Recentemente, acrescentou-se a pena de até 60 dias de prisão.
A ‘polícia da moralidade’ reprimindo os comportamentos das mulheres
O Gasht-e Ershad (Patrulhas de Orientação) foi formalmente estabelecido após a vitória eleitoral de Mahmoud Ahmadinejad, prefeito ultraconservador de Teerã. Até então, os códigos de vestimenta eram policiados informalmente por pequenas unidades policiais e paramilitares. A Patrulha é frequentemente criticada pela sua abordagem violenta e agressiva. Mulheres são constantemente detidas e liberadas apenas quando um parente, principalmente os maridos, fornece a garantia de que seguirão as regras.
Ainda que os integrantes das Gasht-e Ershad sejam vistos como vilões da situação, há a perspectiva do iraniano que está no dever de cumprir com as ordens governamentais, independente de suas vontades pessoais. Em uma rara entrevista para a BBC, um policial da moralidade falou ao jornal sobre sua experiência na patrulha: “Eles nos disseram que o objetivo de estarmos trabalhando para as unidades da polícia de moralidade é proteger as mulheres”, disse ele. “Porque se elas não se vestirem adequadamente, os homens podem ser provocados e prejudicá-las.”
O policial ainda acrescenta que é como se estivessem saindo para a caça, porque costumam ser orientados a patrulhar em horários e locais mais movimentados. “Quero dizer a eles que não sou um deles. A maioria de nós é de soldados comuns cumprindo nosso serviço militar obrigatório. Eu me sinto muito mal”, desabafa o policial.
Francirosy lamenta que as pautas defendidas pelas mulheres não sejam levadas em consideração pelo governo, que atribui a culpa ao ocidente. A pesquisadora repudia e critica com veemência discursos de outros países que se apropriam da causa das mulheres iranianas para se colocarem como salvadores de mulheres muçulmanas, e compreende que por esse motivo as mulheres rejeitam aproximação com grupos externos. “Bom seria se os de dentro dessem ouvidos às reivindicações, e encontrassem um consenso, uma solução para as pautas das mulheres”, afirma.
*Imagem de capa: Reprodução/YouTube Estadão