Enquanto a seleção feminina de futebol dos Estados Unidos é tetracampeã mundial, disputou todas as edições da Copa do Mundo Feminina e nunca ficou abaixo do quarto lugar na competição; a seleção masculina do país não poderia ter trajetória mais oposta: sua melhor colocação em um Mundial foi o terceiro lugar na Copa de 1930; foi desclassificada pela seleção de Trinidad e Tobago durante as eliminatórias para a Copa da Rússia e participou de apenas dez edições da competição em toda sua história.
Mesmo diante de um cenário tão favorável à seleção feminina, o time é mundialmente conhecido por suas duras críticas às entidades de futebol e pela luta por maior reconhecimento da modalidade. Mas quais seriam os motivos para a insatisfação das jogadoras mais vencedoras da história?
O país mais poderoso do mundo demorou a reconhecer o futebol
O futebol chega nos Estados Unidos no século XIX, vindo da Inglaterra. Naquela época, no entanto, crescia a prática do american football — o futebol americano —, esporte muito similar ao rugby, e que lá recebe apenas o nome de football. O nosso futebol, então, passou a ser chamado de association football, nome que foi sendo abreviado até chegar em soccer, como é conhecido até hoje. Por não ser um esporte de tanto contato ou tão combativo como o futebol americano, o futebol de campo não chamou muito a atenção dos norte-americanos, sendo considerado por eles um esporte mais leve e até de segunda categoria, e sua prática foi condicionada mais às mulheres.
Foi apenas na década de 90 que os estadunidenses começaram a enxergar potencial, esportivo e lucrativo, no futebol de campo, ao candidatarem-se para sediar a Copa do Mundo de 1994. O país disputou e venceu a eleição para país-sede, acabando por surpreender a todos ao sediar uma das edições mais populares da competição, com direito a quebra de recorde de público, tanto nos estádios quanto em audiência pelas televisões mundo afora.
Dois anos após o Mundial, em 1996, a US Soccer Federation decidiu reformular a liga nacional de futebol masculino profissional, criando a atual Major League Soccer. Seguindo os moldes de outras ligas de esportes profissionais, como a NBA e a NFL, a MLS transformou os clubes de futebol em empresas — as chamadas franquias independentes — com direito a acionistas e CEOs, responsáveis pela gestão dos clubes.
Hoje, a MLS conta com 20 clubes em seu campeonato, dezessete estadunidenses e três canadenses, e sua temporada vai de março até dezembro. O LA Galaxy, time do atacante sueco Ibrahimović, é o maior campeão da liga, com cinco títulos.
Mesmo sendo visto como um esporte de mulheres, a profissionalização da modalidade feminina veio ainda mais tarde. Em 2007, a federação criou a liga Woman’s Professional Soccer, que existiu até 2012, ano em que também passou por reformulação e deu lugar a National Woman’s Soccer League. Hoje, a NWSL conta com nove times no campeonato, entre eles o Orlando Pride, time em que jogam as atacantes Marta e Alex Morgan, e tem uma temporada mais curta que a liga masculina, de abril a outubro. Como uma forma de fortalecer a liga, todas as 23 jogadoras que integram a seleção feminina norte-americana recebem um bônus salarial, que varia de 62 a 67 mil dólares, para jogar em um dos times da NSWL.
A desigualdade salarial atinge também o esporte de alto nível
Mas se engana quem pensa que a carreira de jogadora de futebol feminino nos Estados Unidos é tão lucrativa. Como na maioria das profissões, as jogadoras estadunidenses também têm a desigualdade salarial como um dos maiores problemas. Embora o futebol feminino seja mais bem sucedido, não tem o mesmo patrocínio e publicidade que o masculino, o que gera orçamentos menores para os times e pagamentos menores para as atletas, e acaba por afetar a popularidade da modalidade.
A disparidade de salarial é refletida nos pagamentos da US Soccer Federation às seleções feminina e masculina. Por um lado, até 2017, a federação pagaria, a cada jogador do time masculino, cerca de 1,115 milhão de dólares pela campanha de uma Copa do Mundo— desde as eliminatórias até uma possível vitória na final —. Por outro lado, uma jogadora do time feminino chegaria a receber no máximo 260 mil dólares por toda a campanha no Mundial. A própria Fifa também contribui para os pagamentos desiguais: enquanto a seleção masculina da França levou o prêmio de 38 milhões por vencer o Mundial em 2018, a seleção feminina estadunidense recebeu apenas 4 milhões após vencer a final da Copa de 2019.
Em 2016, para posicionarem-se contra a desigualdade de pagamentos da federação de futebol, as jogadoras Alex Morgan, Megan Rapinoe, Carli Lloyd, Hope Solo e Becky Sauerbrunn recorreram a Comissão de Igualdade do Trabalho alegando sofrer discriminação por parte da entidade. Tal ação resultou em um acordo entre as jogadoras e a federação, que garantia alguns bônus e benefícios às atletas, mas ainda não dava a sonhada igualdade salarial.
Em resposta, as atletas norte-americanas e a comissão técnica da seleção, no dia internacional da mulher em 2019, formalizaram um processo judicial contra a federação de futebol, mais uma vez por “discriminação institucional de gênero”.
A brasileira Ana Paula Silva, jogadora do time feminino universitário da William Carey University, diz que nas ligas universitárias a falta de reconhecimento para os times femininos é mais sentida: “Programas que ganham [títulos] e trazem dinheiro e reconhecimento para a universidade, têm seu orçamento do ano com uma boa quantia de dinheiro, independente de serem mulheres ou homens. Mas em reconhecimento você sempre vê uma diferença. O time de futebol feminino, por exemplo, tem que ganhar muito mais para ter o mesmo reconhecimento que o time de beisebol masculino, mesmo que eles não ganhem”.
As ligas universitárias servem de base para os sonhos
Mesmo convivendo com uma realidade não ideal, é nos Estados Unidos que o futebol feminino tem melhores condições, principalmente na base, que por sua vez encontra-se nas universidades.
Uma vez que todas as universidades norte-americanas são privadas, o esporte é usado como ferramenta para conceder bolsas de estudo aos futuros atletas, garantindo-os chances tanto dentro quanto fora de campo. Em troca das bolsas, os alunos passam a integrar os times — não só de futebol como de outras modalidades — que atuam nas ligas universitárias, e essas servem de base para formação e contratação dos times profissionais.
Ana Paula atua como meio de campo e conta sobre os treinos durante o campeonato universitário: “Nossa rotina é bem pesada durante a temporada, treinamos todos os dias e temos dois jogos por semana. Também vamos para a academia, mas apenas de duas a três vezes na semana, para não ficar muito pesado para as atletas”. A também brasileira Thayla Grigorio estudava e atuava pelo time feminino da Trinidad State Junior College, e explica como fazia para conciliar os estudos com a vida de atleta: “Quando você é atleta em uma faculdade americana os treinadores valorizam muito o desempenho na sala de aula, então tínhamos o study hall — o time inteiro ia para a biblioteca —. Era o tempo que tínhamos para fazer lição de casa ou adiantar matéria para as aulas. Sem contar que os professores são bem flexíveis quando eles sabem que você é um atleta”.
Thayla teve de voltar para o Brasil, mas sonha em retornar aos Estados Unidos e construir sua carreira como jogadora por lá. Ana, que desde criança inspira-se em Alex Morgan, também sonha com uma carreira no país, por enxergar maiores oportunidades e reconhecimento. Uma das razões pelas quais a meio-campista escolheu iniciar sua carreira nos Estados Unidos ao invés do Brasil foi por justamente conseguir dedicar-se aos estudos e ao esporte ao mesmo tempo: “se [a carreira] não funcionar ainda tenho a college degree“. Com um sonho em comum, as duas jogadoras querem atuar pelo Portland Thorns, time bicampeão da NWSL.
As seleções norte-americanas são a prova de que a meritocracia também não funciona no futebol, e que o investimento e o reconhecimento são sempre os mais importantes. Enquanto os jovens talentos espelham-se nas profissionais norte-americanas para sonhar suas carreiras, as grandes estrelas continuam lutando, dentro e fora de campo, para garantir um futuro mais igual para elas e para as atletas que ainda virão.