Nascido como alternativa barata na realização do cinema de terror, a temática zumbi tornou-se marco na cultura pop, seja através de quadrinhos (Walking Dead), jogos (Resident Evil), música (Thriller, Michael Jackson) e literatura (Eu sou a Lenda, Richard Matheson). Entretanto, foi através de filmes, e mais especificamente de um diretor, que o assunto alcançou seus questionamentos mais relevantes. O nome desse diretor? George A. Romero (1940-2017).
Até Romero fazer seu primeiro longa (A Noite dos Mortos-vivos, Night of the Living Dead, 1968), já havia rolado muitas tramas envolvendo esse tema: de abordagens mais ritualísticas envolvendo a origem do zumbi caribenho até longas que misturaram o terror das bombas atômicas com o aparecimento de mortos-vivos. No entanto, nenhum deles havia alterado as bases humanas e de civilização conhecidas até aquele momento. Nos filmes de Romero é como se a verdade, valor e conforto que a civilização ocidental tanto ostenta fossem atacados por essas pessoas mortas que, até ontem, poderiam ser seu vizinho, companheiro de trabalho ou filho.
Desta forma, analisaremos como o conceito de zumbi surgiu nos cinemas, a forma que foram abordados até o surgimento do zumbi de Romero, o contexto humano-social envolvendo seus filmes e o legado deixado por esse diretor.
Prontos para essa viagem visceral em meio ao caos e terror canibalístico? Ainda dá tempo de se preparar, e lembre: sempre mire na cabeça!
Origem de um mito: os zumbis invadem o cinema, mas não da forma que estamos habituados
Não foram com os filmes que os morto-vivos foram levados à cultura popular norte-americana, mas sim com um livro de William Seabrook, chamado A Ilha da Magia (The Magic Island, 1929). Os conceitos apresentados por Seabrook abrangem pesquisa detalhada sobre relatos de rituais vodus que ele próprio testemunhou quando esteve no Haiti em 1928. Mesmo relatando essas evidências, o autor chega a duvidar desse conceito em algumas partes do livro, ao considerar que “as pessoas” atuavam sob o efeito de entorpecentes.
Por meio da busca incessante de materiais novos, roteiristas viram a ideia envolvendo mortos-vivos como algo novo na indústria, já que em 1931 o cinema de terror havia acabado de lançar dois longas que ditariam o rumo das coisas: Drácula (Dracula, 1931) e Frankenstein (1931). Entretanto, a estreia nos palcos veio através do teatro, com a peça Zombie, que mostrava toda a concepção derivada do livro de Seabrook. Apesar de ser uma novidade, a peça não fez sucesso e, com roteiro fraco, trouxe mais risos do que sustos. De qualquer forma, a peça é um grande divisor e serviu como base para o que viria a ser o primeiro filme de zumbis de Hollywood: Zumbi Branco (White Zombie, 1932).
Com orçamento de 62,5 mil dólares (e lucro de 8 milhões de dólares), Zumbi Branco teve como protagonista o eterno Drácula, Bela Lugosi, que claramente trouxe mais atenção ao filme. Cheio de sensacionalismo, sexo e mortos-vivos, o longa conseguiu dar vida ao que fora lido no livro de Seabrook e na tentativa malsucedida da peça Zombie. O fascínio pelo terror entre os norte-americanos no início da década de 1930 era algo bem interessante e com certeza ajudou no sucesso do filme, não apenas por estarem saindo longas que seriam considerados clássicos em um futuro, mas também pela realidade, já que em 1929, os EUA haviam sofrido a quebra da Bolsa de Valores de Nova York.
A campanha envolvendo a trama sabia bem como fazer seu próprio marketing. No trecho a seguir do livro The 1933 Film Daily Year Book of Motion Pictures de Jack Alicoate, podemos ver como isso foi utilizado: “Quando Zumbi Branco chegou ao Rivoli Theater em Nova York, a Broadway inteira ficou assustada com a súbita aparição de nove zumbis em uma plataforma erguida sobre a marquise do teatro. Milhares de pessoas lotaram as calçadas e ficaram espantadas, enquanto as nove figuras, vestidas fielmente e maquiadas para imitar membros do elenco de Zumbi Branco, interpretaram uma série de emocionantes sequências dramáticas […] As garotas, que pareciam bonecas, vestiam mantos brancos esvoaçantes, enquanto os homens pareciam ter sido desenterrados, com talas de madeira nas pernas e cara de quem foi espancado […] multidões reuniram-se por lá o dia todo, atraídas não só pelas cenas representadas sobre o teatro, mas pelos efeitos sonoros de Zumbi Branco, que incluíam o grasnar de abutres, rangidos do moinho de açúcar, toques de tambores e outros sons horripilantes”.
Olhando pelo aspecto social, o filme trouxe a ideia de um monstro que era escravo. Logo, havia perdido sua liberdade individual e ia de encontro ao problema já citado da quebra da Bolsa de Valores. Isso era associado à impotência que o povo americano sentia, pois ricos haviam ficado pobres em pouco tempo, famílias inteiras viraram mendigos, entre outros problemas sociais provocados por esse desastre econômico. O zumbi caribenho retratava alguém descartável,contendo até uma crítica sutil ao capitalismo. Percebemos isso ao ouvir a frase mencionada por Legendre (Bela Lugosi): “Eles trabalham fielmente e não têm medo de hora extra”. Um exemplo perfeito de como aproximar a realidade da ficção: o capitalismo podia transformar pessoas em “zumbis”. Ou seja, indivíduos que já não controlam mais a sua vida e que eram comandados por pessoas desconhecidas, ou quem sabe um mestre controlador de mortos-vivos, tal como Legendre.
Infelizmente, mesmo com o sucesso de Zumbi Branco, as grandes empresas cinematográficas não estavam interessadas em fazer filmes desse monstro sem classe (e sem base literária) e, sendo assim, o gênero encontrou sobrevida na Europa. Esse tipo de filme só conseguiu ter relevância novamente após muitos anos: em meio à Segunda Guerra Mundial, algumas narrativas aproveitavam para misturar conceitos nazistas com o monstro zumbi.
Com as transformações pós-guerra, o mundo começou a encarar um novo tipo de medo. Os monstros antigos (entre eles, o zumbi) já não aterrorizavam mais os espectadores. A ciência dominava a modernidade e, assim, os filmes relacionados a monstros passaram por grande mudanças. O teórico cultural Mark Jancovich esquematiza essa alteração no modo de atuar do cinema de terror, ao falar que os longas acabaram “distanciando-se do terror gótico e encaminhando-se para uma preocupação com o mundo moderno […] as ameaças que distinguiram o terror nos anos 1950 não vinham do passado nem eram resultado da ação de um único indivíduo, mas associam-se ao processo de desenvolvimento e modernização social”.
O medo atômico deixou vestígios nos longas de terror, em que muitas vezes o gênero acabou se misturando com concepções de filmes de ficção científica. Experimentos, tentativas de reanimação de corpos, radiação, controle de mentes, todos princípios que envolviam a Guerra Fria e sua cooptação. O maior exemplo de sucesso envolvendo essas ideias foi Vampiros de Almas (Invasion of the Body Snatchers, 1956). Esse filme foi, sem sombra de dúvidas, uma das influências para os futuros ideais de Romero (junto com Psicose, Psycho, 1960 de Hitchcock, no sentido mais intimista, na parte familiar), pois trouxe o medo de zumbis para um novo patamar, principalmente, em quantidade, o famoso sentimento de que não se está seguro. Afinal, qualquer um pode ser seu inimigo, e como diz uma das frases do filme, “a qualquer momento você pode ser um de nós”. Além disso, os conceitos de zumbificação passam do físico para o mental, já que os zumbis de Vampiro de Almas são réplicas de indivíduos, mas sem sentimentos ou raciocínio.
Na sequência a seguir, Jamie Russel, em seu livro Zumbis – O Livro dos Mortos, denota bem esse problema de identificação do inimigo em Vampiros de Almas: “Podem se parecer com nossos amigos e vizinhos. De certa forma, o zumbi era perfeitamente apropriado para o medo paranóico do terror interno, já que o morto-vivo parecia tão comum: eles aparentavam ser como nós; diabos, eles já foram a gente”. Já percebeu como essa descrição bate muito bem com o conceito moderno de zumbi? Exatamente. A partir disso, o terreno estava pronto para o que viria a ser a virada nos longas de zumbi: A Noite dos Mortos-vivos (Night of the Living Dead, 1968).
Uma análise social sobre os clássicos de Romero e quando os humanos estão mais mortos do que os próprios zumbis
George A. Romero nasceu em Nova York, em 1940, e formou-se na Carnegie Mellon University em 1960. Dirigiu alguns comerciais, curtas, uma realidade aparentemente comum; no entanto, no final dos anos 60, Romero parte em busca de seus sonhos e cria a Image Ten Productions, produtora que seria responsável por seu primeiro filme. Como todo diretor em início de carreira, ele não tinha disponibilidade de patrocínios, ainda mais para Romero, aficionado por filmes de terror, gênero que dificilmente rendia algum lucro naquela época. Não sobraram muitas opções, a não ser partir para o monstro cujos efeitos visuais não precisam de muito investimento.
John Russo, roteirista da maioria dos filmes de início de carreira de Romero, comenta no livro Night of the Living Dead, 45th Anniversary como decidiram fazer um longa relacionado a zumbis: “George apareceu com quarenta páginas de uma história que começava em um cemitério e era essencialmente a primeira metade do que viria um dia a ser A Noite dos Mortos-Vivos, embora só tenhamos dando esse título à história depois de encerrarmos as filmagens. Eu disse ao George que gostei muito da história dele. Ela tinha o ritmo e a pegada certa, e fui fisgado pela ação, pelo suspense e pelas voltas e reviravoltas. Mas também fiquei intrigado porque ‘você tem essas pessoas sendo atacadas, mas nunca diz quem são os agressores… quem são eles?’ George respondeu que não sabia. Então eu falei: ‘Acho que poderiam muito bem ser pessoas mortas’”.
O longa, independente da geração, serve até hoje como porta de entrada para os filmes sobre mortos-vivos. Como no caso de Ráilla, fisioterapeuta e fã de filmes de zumbi: “O primeiro filme que assisti foi A Noite dos Mortos-Vivos, provavelmente em torno de 13 anos”. Mas ao perguntar se Ráilla conhece Romero: “Não conheço o diretor especificamente, mas em pesquisa rápida pude perceber que ele é o responsável por A Noite dos Mortos-Vivos, que seria definitivamente meu favorito”. É interessante notar que as primeiras críticas ao longa foram pesadas, para o lado negativo da questão. Mas a maioria dessas críticas focavam em qualidades apelativas que os fãs de filmes de terror estavam ansiosos para assistir. O marketing negativo em torno do filme despertou o interesse dos espectadores e, com isso, tornou-se sucesso rapidamente. O enfoque proposto era muito mais enriquecedor do que se esperava, pois os zumbis (e é interessante citar que o termo zumbi não aparece uma única vez durante a narrativa) eram traçados como reflexo da humanidade, mas o conceito ia além, pois também tratava do comportamento de todos os envolvidos nesse apocalipse.
Logicamente, se pensarmos de forma geral, o corpo humano é sempre um dos enfoques que rondam ideias envolvendo zumbis, e Romero traz essa questão com classe, ajudado pelo ar artístico envolvendo um longa em preto e branco. Seria difícil pensar em algo com classe quando o assunto é canibalismo, no entanto, o diretor consegue isso e fazendo da forma mais real possível. Jamie Russell comenta que “Romero usou entranhas de animais, compradas de um açougueiro de Pittsburgh, para conseguir o grau de autenticidade adequado, depois descobriu figurantes dispostos a comer vorazmente corações de porco e intestinos de ovelha”. Trazer o realismo a esse tipo de gênero fazia com que tratássemos esse assunto não como algo sobrenatural, mas como algo mais comum e verossímil; era fazer com que a base da civilização que conhecemos entrasse em cheque, o homem não era mais o dominante em seu ambiente, é uma verdadeira revolução que tira todo o conforto e valores morais comuns à sociedade.
A Noite dos Mortos-vivos consegue ser aterrorizante tanto em sua forma de linguagem quanto em seu conteúdo. O conflito muitas vezes acontece mais entre os humanos, do que com os próprios zumbis e trazer a tensão racial existente na sociedade americana na época foi um acerto incrível do diretor. Ben (Duane Jones), protagonista negro, vira herói devido a situação calamitosa encontrada, mas acaba tendo que enfrentar várias pessoas que perdem o controle da razão por causa do evento. O enredo evidencia de forma clara que se os humanos entrassem em acordo em seus debates, a chance de sobreviver seria maior, entretanto, isso não ocorre, e o que vemos é que a humanidade é a própria culpada de seu fim, e não os zumbis. O final dramático envolvendo o personagem Ben, nos deixa a pergunta: será que os capangas do xerife pensaram que Ben era zumbi, ou o mataram justamente por ele ser negro? Em épocas de guerra do Vietnã e grupos como o KKK, a resposta fica velada em seu próprio fim, e cada espectador que pense o que essa morte significa.
A base familiar, um dos conceitos primordiais do modelo americano de vida, também está fadada a acabar. E as representações disso ocorrem principalmente em dois casos durante o longa: a discussão entre os irmãos Johnny (Russel Streiner) e Barbara (Judith O’Dea) durante a visita ao túmulo do pai, que demonstra que os laços familiares já estão deteriorados a um bom tempo, e as brigas envolvendo o casal Harry Cooper (Karl Hardman) e sua esposa Helen (Marilyn Eastman), que tentam raciocinar (sem sucesso) a melhor maneira para salvar a filha Karen (Kyra Schon). É interessante notar que em ambos os casos, os próprios membros da família são responsáveis pelas mortes de cada um: com Johnny, já zumbificado, levando sua irmã para o meio da multidão zumbi, e com a filha Karen, também como zumbi, matando seus próprios pais.
Se a própria sociedade não consegue se entender, o papel reconciliador cairia sobre as autoridades e oficiais, correto? No entanto, não é isso que ocorre durante o filme. Trazendo novamente uma crítica velada às autoridades, Romero demonstra que eles não são capazes de conter o apocalipse zumbi, muito devido à falta de entendimento entre os políticos. O que agrava ainda mais a situação é a suspeita envolvendo a origem de todo esse caos, que recai justamente sobre esses representantes. Apesar de nunca revelar o que causou tudo isso, Romero nos deixa intrigados, ao pensar que a doença zumbi é provavelmente derivada de algo radioativo, ou experimentos envolvendo armas de guerra. Em uma época de Guerra do Vietnã, o descrédito com relação aos políticos era tensão evidente nos EUA, e mostrar como esses políticos não são capazes de solucionar os problemas, é mais uma maneira de criticar a sociedade vigente. Vemos até traços de niilismo, ao considerarmos que se a sociedade, família e classe política não se entendem, o único final para a humanidade é a destruição e o fim de sua própria existência, em uma anarquia cheia de zumbis. Para Gustavo, músico e apreciador desse mundo apocalíptico, Romero é “um sociólogo que faz cinema”.
Essa descrição tem seu sentido, se pensarmos nas questões humanas que o diretor começou a tratar em seu primeiro longa e continuou em Despertar dos Mortos (Dawn of the Dead, 1978). O longa serve como sequência aos fatos revelados em A Noite dos Mortos-vivos, tanto que seus acontecimentos ocorreriam supostamente na manhã seguinte ao surgimento dos zumbis. Entretanto, a questão agora havia se alastrado por todo o território norte-americano, e o ambiente tornou-se urbano, ao contrário do rural encontrado no primeiro filme. A narrativa se passa em sua grande maioria dentro de um shopping center, talvez o maior símbolo de consumo do capitalismo: “As origens da história remontam a meados dos anos 1970, quando Romero fez um tour em um vasto shopping center em Monroeville, Pensilvânia com um parceiro de negócios que tinha escritórios no complexo gigantesco. Intimidado pelo templo cavernoso do consumismo americano, o cineasta começou a perguntar-se como seria se os sobreviventes do seu cenário apocalíptico se refugiassem lá”, diz Russell em seu livro Zumbis – O Livro dos Mortos.
Em termos práticos, podemos dizer que o filme é exemplo claro de um discurso contra a alienação, consumismo e uma ruptura social completa da sociedade, como espécie de continuação à ruptura vista em A Noite dos Mortos-vivos. Logo em seu início, vemos como as emissoras de TV estavam mais preocupadas com a audiência do que passar informações atualizadas do que realmente estava acontecendo; de fato, aparentemente o ser humano já estava morto antes mesmo de se transformar em zumbi.
O colapso social encontra terreno fértil nas atitudes preconceituosas do cidadão norte-americano, ou pelo menos, é isso que Romero tenta mostrar na cena em que latinos e negros são mortos de forma irracional em um cortiço. O que mais se ouve é a sentença “atirem na cabeça”, ou de forma metafórica, “dane-se a razão, mate todos”. Saindo do conceito artístico do filme preto e branco de A Noite dos Mortos-vivos, temos agora um longa colorido e isso com conceitos práticos de maquiagem, faz Despertar dos Mortos ser realmente assustador em sua brutalidade, o que impulsiona um novo gênero dentro do terror: o Splatter (filmes com assassinatos grotescos + gore).
Talvez a principal crítica do longa se encontra no terreno do consumismo, em que mesmo após a morte, os zumbis vão em direção ao shopping center para se “entreter”, ou seja, os hábitos consumistas transcendem até a morte. Não é incomum ver cenas em que zumbis estão empurrando carrinhos de compra com comida, roupas, entre outras coisas, o que traz um humor ácido à situação calamitosa. Outra novidade em termos narrativos se compararmos com o primeiro filme de Romero. Os zumbis foram “às compras”, mesmo não precisando mais desses objetos. Será que fazemos a mesma coisa? Somos “zumbis” consumistas, sempre acumulando coisas que não precisamos?
A crítica à irracionalidade humana continua sendo demonstrada em Despertar dos Mortos, como na cena em que Stephen (David Emge) tenta defender os bens materiais do shopping, como se aquelas coisas pertencessem de fato a ele, o que coloca o grupo inteiro de sobreviventes em risco, levando-os ao fim eminente. Através de seu roteiro, Romero dá tudo o que esses sobreviventes sempre quiseram: dinheiro, comida, tempo livre e lazer. No entanto, ao não conseguirem sobrepujar seus desejos humanos mais internos, o próprio ser humano é culpado por sua morte.
Racionalidade é o que não falta ao zumbi Bub (Sherman Howard) em Dia dos Mortos (Day of the Dead, 1985). Romero traz um apocalipse já estabelecido nesse longa, não há mais a humanidade como nós a conhecíamos e os sobreviventes vivem apenas em fortalezas militares. O ar deprimente alcança níveis nunca antes vistos nos filmes de Romero, e o tom de humor ácido visto em Despertar dos Mortos desaparece, dando lugar a algo mais sombrio. Numa espécie de alusão ao mito do livro Frankenstein (1823), vemos o Dr. Logan (Richard Liberty) fazendo experimentos em zumbis, tentando trazer um pouco de razão a esses seres desmiolados, já que de acordo com o Doutor, “eles são nós, eles são extensões de nós. Eles são o mesmo animal, simplesmente menos perfeitos”. Levando essa sentença em consideração, podemos ver o que Romero via na figura do zumbi: um ser humano sem as amarras da sociedade.
A sobrevivência da humanidade não depende mais dos conceitos morais que já existiram, então o descontrole emocional alcança estágio irreversível. Os soldados do capitão Rhodes (Joseph Pilato) cometem atitudes no mínimo ditatoriais, então atos de agressividade, tal como assassinatos, são comuns em meio a essa nova sociedade. O limite da sanidade foi alcançado e provavelmente, ultrapassado. Enquanto os humanos caminham cada vez mais para a desolação, temos a figura de Bub, um zumbi que através dos experimentos do Dr. Logan consegue relembrar algumas situações que passou em vida. Tal como uma criança, Bub percebe que há mais coisas na humanidade do que apenas “comer cérebros”. Numa tacada de mestre, Romero faz com que nos apeguemos a esse zumbi “inocente”, enquanto os humanos cada vez mais assumem o papel de vilão.
Novamente, o que coloca tudo a perder para os humanos, é a atitude impensada de um personagem, quando Miguel (Antone DiLeo) abre as portas do complexo militar após ser mordido, deixando que todos os zumbis da redondeza entrem e façam sua própria festa. No final das contas, torcemos para que os zumbis liquidem com os soldados, já que não existe tanta diferença nas atitudes de um com relação ao outro.
Sendo este seu filme favorito, Gustavo cita que “Dia dos Mortos tem um dos melhores panos de fundo e é realmente tenso, já que vemos mais humanidade nos zumbis do que nos próprios seres humanos. A construção é perfeita”. De fato, a linha tênue entre a existência do ser humano e do zumbi já não é mais distinguível, e os vivos já estavam mais mortos do que os próprios zumbis. Apesar de todo o caos, é notável o ar no mínimo otimista que o final do longa nos apresenta, ao mostrar que os personagens conseguem se proteger em uma ilha deserta, deixando todo o apocalipse zumbi em terras americanas. Há uma chance da humanidade continuar a existir, e isso seria longe da sociedade americana que um dia já existiu, ao começar uma nova do zero, sem as amarras do passado. Mesmo deixando de forma implícita, Romero coloca seus personagens numa ilha deserta, que estaria localizada em algum lugar do Caribe, local onde o mito zumbi se iniciou há tanto tempo atrás. O círculo apocalíptico em torno do tema se fechava justamente onde tudo começou.
O legado de um mestre: quando a morte não é o mais importante em um longa de mortos-vivos
Muitas coisas mudaram com relação aos filmes de zumbis desde a trilogia clássica de Romero. Com a década de 90 fraca para o gênero zumbi, coube a um jogo eletrônico o papel de deixar os mortos-vivos em evidência: Resident Evil (1996), da Capcom, editora japonesa de jogos. O game conseguiu capturar a essência do terror crescente visto nos filmes de Romero, acrescentando a questão da interação do jogador, o que fez a série ser uma das mais bem sucedidas no ramo de jogos, com diversas sequências. O sucesso abriu uma oportunidade para o jogo ser adaptado ao cinema, já que na época alguns filmes estavam adaptando os games mais famosos, tal como Lara Croft: Tomb Raider (2001). Romero inclusive foi citado como possível diretor para o longa, mas seu roteiro excessivamente violento acabou desagradando as produtoras envolvidas, com o cargo de direção ficando com o diretor Paul W. S. Anderson.
Infelizmente, o longa Resident Evil: O Hóspede Maldito (Resident Evil, 2002) não conseguiu transportar a mesma ambientação vista nos jogos e muito menos o ar artístico das produções de Romero. Não havia crítica social alguma no longa: era ação por ação, efeitos 3D por efeitos 3D. No entanto, independente de qualquer reclamação de fã, a narrativa alcançou lucro absurdo, e colocou os zumbis nos holofotes novamente, e muito mais, conseguiu alcançar pessoas que não estavam acostumadas ao mundo apocalíptico dos mortos-vivos.
A partir da transformação do zumbi em figura Pop, houve uma enxurrada de novas obras, sempre com a esperança e na tentativa de alcançar o sucesso comercial obtido por Resident Evil. Ráilla comenta que esse acontecimento “ajuda na continuidade de filmes por uma questão de maior interesse pelo tema; mas acaba ocorrendo sua aparição de maneira cansativa e banal na mídia”. Já Gustavo comenta que “perde-se por ter se popularizado, já que o mainstream deixa casca vazia em determinados longas, sem pano de fundo, mas ganha ao ter muitas pessoas interessadas e produzindo coisas relacionadas”.
O próprio Romero, aproveitando dessa nova guinada comercial envolvendo o tema, lançou mais alguns longas retratando esse mundo apocalíptico e apesar de ainda terem críticas ácidas ao funcionamento da sociedade, não causaram o mesmo efeito de outrora. Terra dos Mortos (Land of the Dead, 2005) e Diário dos Mortos (Diary of the Dead, 2008) têm suas qualidades, principalmente o segundo filme citado, em que vemos uma crítica ácida à questão moderna das redes sociais. Em meio ao apocalipse zumbi, a tentativa de ficar famoso na internet aparentemente ainda vale mais a pena do que ajudar o próximo a sobreviver.
A mistura de gêneros também trouxe ar refrescante e necessário para o tema, como na junção de comédia e terror encontrada em Todo Mundo Quase Morto (Shaun of the Dead, 2004) e Zumbilândia (Zombieland, 2009). Através do alívio cômico, podemos ver diversas homenagens aos clássicos de zumbi, mas também leve crítica ao status de funcionamento da sociedade, já que a monotonia e a chatice do dia a dia são tão intensas que a maioria dos personagens não conseguem nem perceber que um apocalipse está ocorrendo. Gustavo cita que Todo Mundo Quase Morto seria um dos seus filmes favoritos de mortos-vivos, “o longa mostra o quão a temática pode ser grande, pois trata-se de uma comédia e mostra como o tema dos mortos-vivos pode ser substancial, já que dá margem aos jargões/clichês dos filmes de zumbi e colocando-os em outro tipo de panorama”. No entanto, ele também aconselha “assistir esses longas após assistir os clássicos, já que você estará tecnicamente dentro dos clichês utilizados no gênero e vai poder aproveitar mais”.
Fora do mundo blockbuster encontrado nos EUA, o tema zumbi encontrou (ou talvez, reencontrou) o ambiente crítico perdido dos longas mais antigos, principalmente os de Romero. Foi com o bem-sucedido diretor Danny Boyle, que Extermínio (28 Days Later, 2002) ganhou vida, trazendo uma Londres vazia e destruída. Jim (Cillian Murphy) fica 28 dias hospitalizado e quando recobra a consciência, percebe que há algo de errado e parte em busca de sobreviventes e de explicações.
Os “zumbis” (entre aspas, pois o próprio diretor evita usar o termo) estão infectados com uma variação semelhante ao Ebola, o que traz novidades em seu comportamento. Esqueça os zumbis lentos e burros que víamos antigamente; Extermínio é exatamente o longa que traz o conceito de zumbis corredores, e que não irão parar até alcançar suas vítimas. Apesar de ser novo em alguns aspectos, a questão de pessoas infectadas com praga viral nos remete a outro filme de Romero, Exército do Extermínio (The Crazies, 1973), inclusive, para Gustavo, esta obra “é o melhor trabalho que Romero fez como diretor”.
Em um mundo pós-ataque de 11 de Setembro, as inquietações envolvendo uma possível guerra viral, ataques químicos, amedrontavam muitas pessoas, e Extermínio mostrar que o vírus havia sido espalhado sem querer por um grupo de ativistas pelos direitos dos animais foi uma saída inteligente para um gênero que já mostrou diversos tipos de origem com relação aos zumbis, do sobrenatural ao mais natural, tal como algo biológico. A raiva demonstrada pelos zumbis não foi algo colocado de forma involuntária, o próprio diretor já disse em algumas entrevistas que a sua ideia era mostrar que os infectados eram apenas metáfora para a resposta emocional padrão que temos a situações em nosso mundo moderno: a raiva.
Temos novamente a figura de militares agindo de maneira irracional, e trazendo a velha questão abordada de forma ostensiva por Romero: com a perda da razão, os humanos são mais perigosos do que os próprios infectados. O longa nos deixa alguns questionamentos morais tais como o preço que temos que pagar para nos mantermos vivos, ou mesmo se vale tudo para conseguirmos manter nossa própria sanidade.
Demorou mais de uma década para aparecer outra narrativa que nos trouxesse questionamentos, mas a espera dos fãs valeu a pena, já que Invasão Zumbi (Train to Busan, 2016), apareceu de surpresa e conquistou sucesso tanto da crítica, quanto dos espectadores. Ambientado em uma moderna Coreia do Sul, o longa traz novamente aquela sensação claustrofóbica dos acontecimentos estarem ocorrendo em apenas um ambiente. Se pensarmos nos clássicos de Romero, os ambientes são sempre focados em apenas um espaço, seja uma casa simples em uma parte rural, um shopping center ou um complexo militar. Isso ajuda no desenvolvimento da tensão e principalmente nos conflitos entre personagens.
Em uma união entre o longa Expresso do Amanhã (Snowpiecer, 2013) e a temática zumbi, Invasão nos faz refletir sobre as fraquezas do homem, partindo de um pai individualista e egoísta (até aquele momento) que se torna uma pessoa melhor de acordo com o decorrer da viagem. Ao ter que defender sua filha de todos os perigos, o longa acaba sendo quase um estudo antropológico sobre como as pessoas lidam com situações extremas e como elas agem em prol do próximo.
No final do longa não pensamos tanto nos zumbis, mas sim em como não aproveitamos as nossas vidas com as pessoas que amamos, seja pelo cotidiano conturbado do mundo em que vivemos ou por interesses que colocamos acima do que realmente importa. O resultado final nos tira até lágrimas, pois de acordo com o desenrolar da viagem, de acordo que cada vagão é tomado, estamos cada vez mais envolvidos com aqueles personagens e suas peculiaridades. Invasão Zumbi pode ser tratado mais como um drama com zumbis, do que necessariamente um filme de terror de zumbis, e isso explica os sentimentos misturados encontrados ao terminar de ver a narrativa.
Ademais, a fonte da temática zumbi parece que não vai secar tão cedo, pois ainda em 2019, teremos dois blockbusters envolvendo esses seres: Os Mortos Não Morrem (The Dead Don’t Die, 2019) e Zumbilândia 2 (Zombieland: Double Tap). Com um esquadrão de atores renomados envolvidos, tais como Emma Stone, Adam Driver, Jesse Eisenberg, Bill Murray e Woody Harrelson, esses longas continuarão a manter o status pop que o zumbi tanto lutou para alcançar.
De metáfora envolvendo a escravidão até o símbolo de crítica social encontrada nas obras de Romero, os zumbis passaram por muitas provações. Desde seu surgimento, essa figura foi uma ótima representação do homem pós-moderno: alienado, escravo de sua própria condição. No entanto, independente da crença e do momento histórico envolvido, se há algo que sempre interessou ao ser humano é a questão da morte e o fim que leva à vida eterna da alma. O zumbi é o agente causador desse fim e aquele que traz todos os medos envolvendo esse tema. Mas talvez o grande questionamento que a figura zumbi traz é: será que merecemos ser salvos? Se depender das representações humanas encontradas nos filmes analisados aqui, possivelmente a resposta será mais negativa do que gostaríamos.