Jornalismo Júnior

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Artistas árabes e muçulmanos no cinema internacional: uma participação marcada por estereótipos e discriminação

Apesar de viverem em todos os lugares e serem uma das maiores populações do mundo, atores e atrizes árabes e muçulmanos ainda ocupam pouco espaço na indústria cinematográfica

Você provavelmente já assistiu algum filme em que haja a participação de artistas árabes e muçulmanos, mas pode nem se lembrar. Isso acontece pois eles não têm muitas oportunidades no cinema internacional, restringindo-se, na maioria das vezes, a papéis coadjuvantes ou a narrativas que representam a população de forma estereotipada e discriminatória. Apesar disso, nomes como Riz Ahmed, Mahershala Ali, Mena Massoud, Rami Malek, Salma Hayek e Sophia Taylor Ali tem rompido com essa barreira invisível, tornando-se profissionais reconhecidos na esfera do cinema internacional. 

É comum que longa-metragens que abordam a temática islâmica tragam a representação de indivíduos pertencentes à religião como terroristas, violentos, estrangeiros e fascinados pela luxúria. Um estudo promovido por Riz Ahmed, primeiro muçulmano a ser indicado ao Oscar como Melhor Ator pela atuação em O Som do Silêncio (Sound of Metal, 2020), com a USC Annenberg Inclusion Initiative mapeou a representação da população muçulmana nas 200 produções cinematográficas mais populares na Austrália, Estados Unidos, Reino Unido e Nova Zelândia, entre 2017 e 2019. Os resultados indicaram que apenas 1,6% dos personagens desses longas pertenciam à religião, sendo a maioria esmagadora figuras masculinas.

Riz Ahmed em O Som do Silêncio. [Imagem:Divulgação/Caviar]


A representação feminina

Devido a essa disparidade, as mulheres acabam sem muito espaço nas telonas, e, quando tem, é de maneira superficial e problemática. Isso decorre de uma visão ocidental construída sobre a figura feminina árabe que as relaciona a estereótipos de subordinação ao homem e da sensualidade de seus corpos. A personagem Jasmine (Linda Larkin),  pertencente à família real de Agrabah no filme animado Aladdin (Aladdin, 1992), torna essa visão explícita. Ao contrário das outras  princesas da Disney, ela tem sua vestimenta decotada e com o abdome à mostra, além de ser obrigada a casar-se com um príncipe para que ele assuma o título de Sultão, pois ela não poderia governar o reino sozinha. 

“O jogo de mídia sempre quer passar para fora uma imagem muito errada sobre as mulheres árabes” diz Oula Al-Saghir, cantora e atriz de origem palestina. “Infelizmente eles também fazem essa brincadeira sobre o vestido, coisas sexuais e de corpo. Deixam a mulher para isso mesmo, como se não tivesse coisa mais importante que o corpo dela”, Oula completa.

Cena do filme Aladdin em que o Sultão explica a Jasmine a necessidade de se casar com um príncipe para que ele assuma o trono de Agrabah. [Imagem:Reprodução/Disney Plus]

Quando se trata das adeptas ao islâmismo, suas roupas também são uma questão, mas justamente pelo motivo contrário: cobrem todo o seu corpo e, por isso, são tidas como conservadoras. O uso do hijab, preconizado pela doutrina da religião, é constantemente vinculado à ausência de liberdade por filmes ocidentais e, em consequência, por seus espectadores. Assim, é comum pensamentos errôneos como “Coitada”, “Deve estar sofrendo dentro dessa roupa” em relação a elas. Porém, na realidade, o uso da peça não é uma imposição, pelo contrário, é uma escolha. “Tem mulheres que escolhem  cobrir seu corpo, elas acreditam nisso. Então eu respeito e vocês tem que respeitar. Elas não estão obrigadas, elas querem”, explica a atriz, que indica a importância que essa compreensão tem para que a religião muçulmana passe a ser mais valorizada e não entendida como algo ruim.

Para além do figurino, as narrativas dos filmes retratam a  vivência do grupo marcada pela sua objetificação e subordinação aos homens. O ator e jornalista sírio Anas Obaid, aponta para a influência de uma ideologia política por trás dessa representação. “É justificado que os países atacam determinado lugar pois lá tem homens perigosos, que matam LGBTQIA+, que deixam as mulheres viverem uma vida infernal. Quando você volta na realidade ou para pesquisar, não existe isso”. Ele relata uma experiência própria, na qual foi chamado para um papel em uma produção de uma plataforma conhecida: seu personagem se apaixona pela cunhada e, para conseguir casar com ela, mata seu irmão envenenando-o aos poucos. “Uma cena assim está errada, não é representativa. Ela consome desse lugar que a mulher é um produto que posso dividir e trocar quando eu quero”, afirma o ator.

Existem diferentes contextos sociais no mundo árabe, sendo alguns deles mais conservadores, mas não se pode unificar toda a população em um único modo de vida. “Dentro de uma cidade tem vários níveis e comunidades, como aqui no Brasil vocês tem o Nordeste, uma diversidade. No mundo árabe ela é ainda maior”, explica a atriz Al-Saghir. Dessa forma, o pertencimento à etnia e religião não determina a condição da mulher árabe, possibilitando que muitas busquem formação e atuem na profissão que quiserem. “Tem mulheres árabes educadas, formadas em vários níveis e carreiras, não só no cinema. Tem as que escolhem viajar e fazer mestrado, doutorado, projetos. Quem pode faz, mas a mídia fala muito pouco sobre elas e o seu trabalho”, ela afirma.

O filme A Candidata Perfeita (The Perfect Candidate, 2020), rompe com essa concepção machista atribuída a tal grupo. Ele conta a história da Dra. Maryam  (Mila Al Zahrani), uma médica saudita que, em uma sociedade marcada pela desvalorização da mulher, se candidata ao cargo de secretária local. No final, ela não ganha as eleições, e conquista somente algumas melhorias que já reivindicava. Apesar do desfecho, a trama mostra a determinação da protagonista ao correr atrás de seus objetivos e conquistando alguns, como sua profissão. Fora das telas, a obra é dirigida por Haifaa Al-Mansour, primeira mulher da Arábia Saudita a se tornar cineasta.

Maryam durante uma entrevista. [Imagem:Reprodução/ Youtube]


A veiculação de preconceitos

Como dito anteriormente, a maioria esmagadora dos personagens muçulmanos que aparecem nos longa-metragens são homens. A despeito disso, eles não são devidamente representados, sendo definidos por estereótipos, tal qual o de refugiados. Esse estereótipo remete a duas problemáticas: primeiro, propaga a concepção de alguém vindo de fora, que não faz parte da sociedade; segundo, reduz seus países de origem a um local inóspito, tirando de cena sua cultura e seus costumes, questões externas ao conflito. “Você vai ver a Síria como se não fosse possível viver lá, fosse difícil, perigoso, terrorista, mas para mim não é nada disso, são outras questõés”, diz Obaid. “Entendemos que é uma decisão política dar espaço ou não para nossas narrativas, mas não temos como abrir algo igual as grandes plataformas de filme para elas. Se você procurar por dentro, tem uma sociedade inteira que é proibida de crescer e chegar ao mundo”, ele finaliza.

O ator continua destacando a influência da ideologia governamental na construção dos personagens e cenários islâmicos e árabes como violentos e marcados pelo terrorismo. Ele explica que, quando há interesse em um território, a tendência é mostrá-lo como algo que não tem importância, desvalorizando inclusive sua população. “Como vamos deixar esse país vazio de todo poder e do que vale? Deixar a Síria enfrentar o próprio destino dela, através da bagunça que foi a guerra de 2011?”, reflete ele, que continua: “Vou deixar o tema seguir sem dar importância nenhuma, falando que ali não tem nada, que são pessoas comuns, pobres e incivilizadas”. 

Um exemplo dessa representação é o filme Argo (Argo, 2012), que conta a história de seis diplomatas americanos que estão no Irã e, com a chegada do Aiatolá Khomeini no poder, são obrigados a se esconder para se manter em segurança, já que a população se posiciona contra os americanos e sua interferência política.

Cena do filme que mostra homens armados na cidade. [Imagem:Reprodução/ Youtube]

A indústria cinematográfica e a mídia em geral são os maiores responsáveis pela permanência e fortalecimento desses estigmas, afinal, é um de seus objetivos, porém não se pode ignorar o comprometimento do público que consome esses conteúdos. Mesmo que os filmes reduzam homens árabes a uma roupa e um comportamento, cabe ao espectador aceitar aquilo como verdade ou não. “Eu não vou colocar sempre a culpa para quem está balançado, vou colocar peso para quem está consumindo. Hoje em dia, não tem mais desculpa de ‘não sabia’. O Google está cheio, as informações estão em todo canto”, alerta o jornalista.


O acesso de artistas árabes e muçulmanos ao cinema.

O reforço de estigmas e estereótipos não é o único obstáculo para a representação efetiva da população árabe e muçulmana nas telonas. Artistas pertencentes à etnia e à religião encontram certa resistência para participarem e, ainda mais, protagonizarem um filme. Quando questionado acerca da falta de visibilidade, Obaid explica o papel da ideologia na escalação de elenco: “Se a ideologia de uma plataforma é segurar uma ideia de desenvolvido e civilizado, eles não vão buscar um ator de uma outra nação que eles estão atacando o tempo inteiro”.

Mesmo quando esses atores e atrizes conseguem um papel de relevância, na maior parte das vezes são personagens padronizados, que pertencem à mesma raça que o intérprete. A problemática surge quando a regra não é aplicada para profissionais brancos, que constantemente são contratados para atuar como indivíduos de outras raças, inclusive árabes. “Tenho certeza de que não adianta lutar para estar nesse espaço, porque ele não vai ser dado. É uma decisão, não uma pesquisa sobre profissão, melhor roteiro e atuação: é uma estrutura da produção ocidental. Como você vai chegar nesse lugar em que eles não querem nem te enxergar?”, diz o ator sírio. 

Já a atriz palestina, Oula,  comenta sobre o cuidado com os papéis que aceita, pois alguns podem desrespeitar seus costumes e retratar sua realidade incorretamente. “Para mim, como mulher que trabalha, eu cuido muito quando alguém me dá um personagem, um papel, para não mostrar nada que eu acho errado”, conta. Ela finaliza dizendo: “Como me chamaram para fazer esse papel como atriz estrangeira, que fala essa língua e vem do povo que estou apresentando a eles, se me deram um texto com coisas erradas, eu tenho o direito de falar para corrigir, porque não é só eu trabalhar, é uma responsabilidade”.

Rami Malek e Mahershala Ali recebendo a estatueta no Oscar 2019 e 2017, respectivamente. [Imagem:Reprodução/ Youtube]

Superando todas essas dificuldades, alguns artistas adeptos ao islamismo conseguiram romper essa barreira invisível, tornando-se nomes conhecidos na esfera do cinema internacional e marcando presença nas maiores premiações do ramo. Um exemplo é Mahershala Ali, que, em 35 anos de carreira, contabiliza dezenove longa-metragens lançados e duas vitórias no Oscar, sendo a primeira em 2017 por sua atuação em Moonlight: Sob a Luz do Luar (Moonlight, 2017), que lhe atribuiu o título de primeiro muçulmano a vencer a categoria de Melhor Ator Coadjuvante na premiação.

  E a lista, apesar de pequena, não para por aí. Rami Malek, filho de imigrantes egípcios, em 2019, venceu o Oscar de Melhor Ator por interpretar Freddie Mercury em Bohemian Rhapsody (Bohemian Rhapsody, 2018) , tornando-se o primeiro ator de origem árabe a conseguir tal feito. A atriz Salma Hayek, filha de pai libanês, também já marcou presença na premiação. Em 2003, foi indicada ao Oscar por sua atuação em Frida (Frida, 2003) e, desde então, participou de filmes como Gente Grande (Grown Ups, 2010), Casa Gucci (House of Gucci, 2021) e Eternos (Eternals, 2021), sendo esse último sua estreia na Marvel com a heroína Ajak, que lidera o grupo de super-heróis. 

Salma Hayek como Ajak. [Imagem:Reprodução/ Disney Plus]

Novos atores também começam a ganhar espaço nos cinemas. Um deles é Mena Massoud, nascido no Cairo, Egito. Entre suas principais produções estão Aladdin ( 2019) e Tratamento Real (The Royal Treatment, 2022), sendo o primeiro filme que o tornou mais conhecido e que ganhará uma sequência, ainda sem data de lançamento. Cabe mencionar Sophia Ali que, de pai paquistanês, fez sua primeira aparição nas telonas com o filme O Missionário (Missionary Man, 2007), em que aparece ainda como criança. Desde então, participou de filmes como Verdade ou Desafio (Truth or Dare, 2018) e Uncharted: Fora do Mapa (Uncharted, 2022), em que interpreta Chloe Frazer, uma exploradora.

Mena Massoud como Aladdin. [Imagem:Reprodução/ Disney Plus]

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