Por: Letícia Yamakami (leticiayamakami@usp.br)
No aniversário de vinte anos de Antes do Pôr do Sol (Before Sunset, 2004), para além do casal principal, um dos componentes mais marcantes do filme é relembrado: a cidade de Paris. O segundo longa da trilogia dirigida e escrita por Richard Linklater, assim como tantas outras obras, se beneficia do espaço parisiense para construir a paixão entre os seus dois protagonistas.
Há, além desse, outros filmes que exploram apenas os locais mais bucólicos e elitizados da capital, como Meia Noite em Paris (Midnight in Paris, 2011). As suas personagens são inseridas nesses cenários junto a narrativas cheias de romance, tranquilidade e perfeição. Nessas famosas obras, as desavenças político-sociais de Paris são ignoradas, assim como os espaços comumente frequentados pelo grande público: guetos, estações de metrô e ruas de bairros periféricos.
A falta de protagonismo de indivíduos e ambientes pertencentes a classes baixas leva os espectadores a acreditarem que não há defeitos nessa metrópole. Quando se pensa em uma obra audiovisual ambientada nela, é imediata a imaginação de uma cena perfeita: encontros românticos, pontos turísticos monumentais e sensações de conforto. Em entrevista ao Cinéfilos, Franthiesco Ballerini, professor de história do cinema europeu na universidade Belas Artes, afirma que “O cinema foi um fator preponderante para a ideia [romantizada] que se construiu de Paris”.
A retrospectiva de um ideário fantasioso
“Paris sempre foi um cenário romântico para filmes”, o educador salienta, “Ela acabou tornando-se esse estereótipo que pegou muito no cinema e na televisão”. Segundo ele, as visões estereotipadas da cidade não surgiram especificamente dentro da Europa, mas foram construídas coletivamente a partir das produções de diversas nações do globo.
“Paris acabou associada ao romantismo e ao glamour porque envolve,
ao mesmo tempo, a beleza da metrópole e a singeleza de uma vila,
de uma cidade mais simples”
Franthiesco Ballerini
Durante as décadas, diversas produções fizeram uso dessas áreas — que se encontram no centro e nas partes gentrificadas do território — com o objetivo de narrar histórias serenas e, muitas vezes, irreais. Porém, não são só os enredos esperançosos que fazem de um filme romantizado. De acordo com o professor e pesquisador, diversos recursos do cinema e da televisão ajudam na construção desse estereótipo: “a trilha sonora; o próprio idioma francês, que muito remete à ideia do romântico; a fotografia mostrando os lugares idílicos da França; e elementos de direção de arte e fotografia”.
O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (Le Fabuleux Destin d’Amélie Poulain, 2001), por exemplo, se passa em sua maior parte em um dos bairros mais bucólicos e tradicionais do país: Montmartre. Logo, ele é o palco principal onde acontecem as sequências de amor e aventura experienciadas pela protagonista. Sempre com um ar de plenitude, Amélie e os cenários por onde passa transmitem o ideário de que, em Paris, é possível ter uma vida sem defeitos — o que outros longas-metragens mostram ser falso.
A sua cinematografia desenvolvida por Bruno Delbonnel utiliza dois elementos — o filtro e o brilho — para a construção de um cenário perfeito. O uso de uma paleta de tons quentes, com predominância do vermelho, do amarelo e do verde, segundo a psicologia das cores, tem a intenção de transmitir paixão, vivacidade, alegria e pureza ao espectador.
Há, ainda, obras que transmitem uma perspectiva ainda mais maravilhada do local. Esse é o caso de Meia Noite em Paris, que apresenta personagens com extrema admiração não só pelo espaço físico, mas também pelas épocas históricas da capital da França.
O protagonista Gil Pender é um autor literário que mora nos Estados Unidos na década de 2010, mas que idealiza ter uma vida na época pela qual é apaixonado: a Paris dos anos 20. Magicamente, ao turistar pela cidade, ele viaja no tempo, conseguindo concretizar seus devaneios e conhecer pessoalmente os seus ídolos Gertrude Stein, Salvador Dalí, F. Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway.
Paris, nua e crua
O que é comumente mostrado nas telonas não é o padrão experienciado por todos que passam pela cidade. A capital, assim como muitas metrópoles mundiais, apresenta uma alta disparidade nas condições de vida entre cidadãos de classes altas e de classes mais baixas.
Mas nem só de fantasias vive o cinema. Há produções que se propõem a revelar as problemáticas sociais da cidade — que não são poucas — e criticar a ausência da sua abordagem no audiovisual. O pioneiro dessa corrente foi o cineasta Alberto Cavalcanti, o primeiro diretor brasileiro a ter projeção internacional. Durante a década de 1920, o documentarista construiu uma carreira na França com o objetivo de escancarar a realidade dos cidadãos marginalizados da capital. Seu trabalho de estreia, Nothing But Time (Rien Que Les Heures, 1926), que mostra Paris de forma verídica e sincera, foi responsável pelo seu reconhecimento na sétima arte. Ballerini comenta: “Alberto Cavalcanti chegou a ser reconhecido por grandes nomes do cinema, como John Grierson, que falava que ele é um dos grandes estetas da arte. Ele foi fundamental”.
A missão de Cavalcanti se estendeu para além dele. Algumas produções pertencentes ao movimento Nouvelle Vague também são exemplos de desconstrução da ilusão romântica do lugar. Nesse prisma, um dos maiores destaques vai para Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups, 1959), de Fraçois Truffaut. “Esse é um dos filmes que tentam fugir um pouco dos estereótipos, mas que, ao mesmo tempo, construiu uma outra visão da França: uma França poderosa no cinema-arte”, analisa o entrevistado.
O seu diretor, Truffaut, sempre foi um jovem engajado por cinema. Durante sua época de crítico do cinema francês, o futuro cineasta acreditava que as produções daquele período eram muito tediosas, forçadas e rasas. Por isso, dedicou a sua carreira na indústria cinematográfica para escrever e dirigir histórias cruas que se passam na capital parisiense, abordando temas mais reais e impactantes, como política e violência.
Um olhar da periferia para o mundo
Já nos anos 1990, o grande representante cinematográfico do princípio de se desmistificar Paris é O Ódio (La Haine, 1995). Dirigido e roteirizado por Mathieu Kassovitz, a trama acompanha 24 horas da vida dos jovens Vinz, Hubert e Saïd, moradores de um bairro pobre da metrópole. No dia anterior, seu amigo Abdel havia sofrido um espancamento da força policial após participar de uma manifestação que reivindicava melhores condições de vida para a população. Durante as aventuras das três personagens principais, Vinz encontra uma arma e jura assassinar um policial caso Abdel morra em decorrência dos ferimentos.
O longa já mostra ter uma proposta diferente ao, mesmo dispondo de câmeras digitais e filmes com cor, utilizar de uma filmagem em preto e branco. Dessa forma, ele recusa qualquer romantismo estético, focando na exibição da parte da cidade que as câmeras não veem, como os guetos, espaços abandonados, metrôs e as violências policial e midiática contra a periferia.
A questão da diversidade étnico-racial
Outro ponto importante a ser destacado é o protagonismo dado não só para os cidadãos de classe baixa, mas também para as populações não-brancas, que são as mais negligenciadas pelas instituições governamentais europeias e pela própria indústria cinematográfica.
Uma vez que Vinz é judeu, Hubert é preto e Saïd é árabe, os três se reconhecem como ainda mais vulnerabilizados socialmente devido aos preconceitos étnico-raciais de uma capital opressora. Por onde passam, eles buscam expor as suas vivências e batalhas diárias, seja pixando viaturas, discutindo com seguranças, ameaçando skinheads ou ocupando espaços destinados originalmente para as elites parisienses, como jantares luxuosos e exposições de artes privadas. Isso contrapõe o apresentado em Meia Noite em Paris, por exemplo, em que esses eventos culturais são acessados restritamente pelo nicho mais intelectual, artístico e rico da população.
Franthiesco Ballerini conta que “Hoje, o próprio cinema francês está seguindo a linha do La Haine [O Ódio], que é tentar mostrar as desigualdades e a questão da imigração”. Apesar de ainda haver algumas produções audiovisuais que mantêm uma visão extremamente romantizada de Paris, as críticas feitas por O Ódio contra o seu retrato ilusório e os debates propostos pelo filme não acabam nele mesmo. O seu legado continua vivo ainda hoje, influenciando obras contemporâneas. “Eles [os cineastas] perceberam que a França é um país que está recebendo muitos imigrantes legais e ilegais. Então, é mais poderoso para o cinema mostrar os dramas dessas pessoas”.
As transformações sociais refletem-se no audiovisual
A inclusão de histórias mais plurais e diversas no cinema — como a de O Ódio — está em relevância nos dias atuais, já que esses tipos de discussões sociopolíticas estão acontecendo com cada vez mais frequência no corpo social.
A Culpa de Voltaire (La Faute à Voltaire, 2000), O Segredo do Grão (La Graine et le Mulet, 2007), Intocáveis (Intouchables, 2011) e Fatima (2015) são apenas alguns dos longas mais recentes que abordam temáticas como a vida dos povos periféricos e imigrantes da França. Dirigidos respectivamente por Abdellatif Kechiche, Eric Toledano e Olivier Nakache e Philippe Faucon, a missão desses e de outros cineastas contemporâneos é desconstruir o pensamento de que a cidade parisiense é o lugar ideal para se ter uma vivência perfeita.
“Hoje no audiovisual, no cinema-arte da França, está se seguindo por um caminho que usa Paris como um cenário de batalhas e de luta por uma vida digna das pessoas que estão chegando lá”, conclui o professor Franthiesco Ballerini.