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School Shootings e a questão do porte de armas nos Estados Unidos

Entenda um pouco mais sobre os schools shottings e como esse fenômeno é uma consequência direta da cultura estadunidense

No dia 24 de maio de 2022, dezenove estudantes e duas professoras foram mortas, vítimas de um homem de 18 anos em uma escola primária na cidade de Uvalde, no Texas. Ele havia conseguido as armas utilizadas no massacre de maneira totalmente legal. No dia 14 de fevereiro de 2018, dezessete alunos e funcionários de uma escola ― localizada em Parkland, na Flórida ― foram assassinados por um jovem de 19 anos. Nesse caso, as armas também foram compradas respeitando a legalidade. 

Os dias 18 de maio de 2018 e 14 de dezembro de 2012 também foram marcados por esses mesmos motivos: assassinatos em massa em escolas nos Estados Unidos por meio de armas obtidas de forma legal. Esses ataques acontecem de maneira recorrente no país. De acordo com o banco de dados K–12 School Shooting (K–12 SSDB), nos últimos 20 anos, houveram 678 tiroteios com vítimas fatais em instituições de ensino nos Estados Unidos. Só esse ano, já aconteceram 95 incidentes como esse no país, que resultaram na morte de 40 pessoas. 

Tais dados alarmantes são um reflexo de um país com uma cultura armamentista forte, no qual o porte de armas é um direito constitucional protegido pela Segunda Emenda. Ou seja, qualquer cidadão que cumpra os requisitos previstos pode simplesmente entrar em uma loja e comprar um fuzil ou uma espingarda. Calcula-se que existam 120.5 armas para cada 100 cidadãos estadunidenses. 


O massacre de Columbine

É impossível falar sobre tiroteios em escolas e não mencionar o Massacre de Columbine. Ele marcou a história dos Estados Unidos ao ser, até aquele momento, o mais letal ataque a mão armada dentro de uma escola estadunidense, além de ter colocado em debate temas como bullying no ambiente escolar e leis de regulação de armas.

O ataque aconteceu no dia 20 de abril de 1999 na Columbine High School, localizada na cidade de Denver, Colorado. Ele foi ministrado por dois alunos, Eric Harris, de 18 anos e Dylan Klebold, de 17, que cursavam o último ano do ensino médio na escola. Eles mataram doze estudantes, um professor e deixaram cerca de 21 pessoas feridas, utilizando de bombas caseiras e um extenso arsenal de armas de fogo ao longo do massacre. Ao final de tudo, Eric e Dylan acabaram tirando suas próprias vidas, o que dificultou a apuração das reais motivações da dupla. 

Homenagem às vítimas de Columbine, em 2018, durante uma passeata contra a violência armada. [Imagem: Reprodução/Flickr]

De acordo com médicos que participaram da investigação do caso, Eric desempenhou um papel de mentor do massacre, apresentando traços clássicos de um psicopata. Já Dylan tinha características de uma pessoa depressiva. Em um parecer divulgado após 5 anos do crime, o Dr. Dwayne Fuselier, supervisor do FBI encarregado da investigação de Columbine, comentou: “Acredito que Eric foi até a escola para matar e não se importou se ele iria morrer, enquanto Dylan queria morrer e não se importava se outras pessoas morressem também”. 

Em seguida ao ataque, o debate público foi tomado por membros da comunidade escolar de Columbine, que denunciavam um sistema falho e ressaltavam a necessidade de leis mais duras em relação a compra e porte de armas. Um mês depois do massacre, o senado estadunidense aprovou a obrigatoriedade de travas melhores nos gatilhos de armas fabricadas a partir daquela data ― apenas isso. Depois de 20 anos do acontecimento, movimentos sociais e associações a favor de medidas reguladoras ainda encontram muita resistência em aprovar suas demandas. 


Arma como direito

Robert Sean Purdy, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), observa uma piora em um cenário já muito substancialmente violento. “O movimento da ultra direita teve uma influência muito forte no governo dos Estados Unidos. E é claro que todos eles apoiam o tipo 100% direito de ter armas”, afirma o professor, que destaca a perpetuação desse problema. Purdy também coloca em discussão fortes impasses sociais no avanço das leis de restrição de armas de fogo, visto que esses estão consolidados na base da sociedade estadunidense.

Em 1791, foram ratificadas as primeiras nove emendas constitucionais dos Estados Unidos, que basicamente declararam os direitos de um cidadão estadunidense. Dentre essas, é possível citar a Segunda Emenda, que garante o direito ao porte de arma para fins de autodefesa e luta contra a opressão. Seu nome deriva-se do seu lugar dentro da constituição estadunidense – o segundo direito fundamental inscrito na carta magna. Tal legislação e sua posição trazem à tona o passado colonial do país, que obteve sua independência em 1776 após conflitos sangrentos com a colônia inglesa. 

Isso porque a Guerra de Independência foi responsável por criar a visão de que as armas eram o único meio de proteger seus interesses e liberdades, já que foi recorrendo a elas que os laços com a Inglaterra tinham sido encerrados. Com isso, fica claro como desde o início da construção do corpo social do país, as armas são vistas como um direito natural de defesa e resguardo de suas posses. 


“Sendo uma milícia bem regulamentada, necessária para a segurança de um estado livre, o direito do povo de manter e portar armas não deve ser violado”

texto da Segunda Emenda de Constituição dos Estados Unidos


Essa visão se perpetuou e se estabeleceu como um pilar da cultura estadunidense, principalmente, após a criação da Associação Nacional do Rifle (NRA), em 1871 ― que, até os dias de hoje, desempenha um papel ativo nas redes sociais e na política do país. A NRA se apresenta como uma incansável defensora dos direitos previstos na Segunda Emenda, além de defender a liberdade individual de cidadãos estadunidenses. De acordo com um texto disponível no site da associação, a NRA coloca: “Desde treinar a próxima geração de proprietários de armas até liderar esforços legislativos e políticos para defender a Segunda Emenda, a NRA está na vanguarda da preservação de sua liberdade”. 

Essa visão se perpetuou e se estabeleceu como um pilar da cultura estadunidense, principalmente, após a criação da Associação Nacional do Rifle (NRA), em 1871 ― que, até os dias de hoje, desempenha um papel ativo nas redes sociais e na política do país. A NRA se apresenta como uma incansável defensora dos direitos previstos na Segunda Emenda, além de defender a liberdade individual de cidadãos estadunidenses. De acordo com um texto disponível no site da associação, a NRA coloca: “Desde treinar a próxima geração de proprietários de armas até liderar esforços legislativos e políticos para defender a Segunda Emenda, a NRA está na vanguarda da preservação de sua liberdade”. 

Ainda, é possível ver múltiplas imagens de armas de todo tipo, comumente sendo seguradas por homens, que posam para as fotos de maneira orgulhosa. A associação ministra workshops relacionados ao ensino do tiro, além de organizar competições, oferecer descontos em armamentos e ter uma loja com produtos próprios. 

A Segunda Emenda sempre teve diferentes interpretações ao longo da história do país, uma vez que não fica claro na legislação se o direito de propriedade de armas era individual ou para uma situação coletiva de luta contra um suposto governo ditador. Porém, em 2008, a Suprema Corte dos Estados Unidos tomou uma decisão interpretativa de colocar o porte de armas como um direito inviolável de qualquer cidadão estadunidense, tomando como inconstitucional qualquer lei que barrasse tal prerrogativa. Dessa forma, a Suprema Corte colocou o direito ao porte de arma do lado de direitos fundamentais como à liberdade de expressão.  

Segundo Robert Sean Purdy, os Estados Unidos não possuem apenas uma cultura de armas, mas sim, de violência. “Os ataques vistos na atualidade são uma consequência de uma nação baseada no uso da violência para exercer poder dentro e fora de suas fronteiras”, coloca o professor. 

O país é conhecido por ser a maior potência holística da atualidade, com um orçamento militar de 693 bilhões de dólares ― o que equivale a 36% das despesas militares do mundo. Ademais, os EUA participaram de múltiplas guerras e ocupações ao longo da história, sendo a mais sangrenta dessas a Guerra do Vietnã, com mais de 3,2 milhões de vidas perdidas. 


Necessidade de mudança

Com a possibilidade de poder comprar uma arma a qualquer momento, a falta de medidas regulatórias efetivas e a presença de uma forte cultura armamentista, os Estados Unidos estão envolvidos em 31% dos casos de assassinatos em massa, sendo que o país detém apenas 5% da população mundial. De acordo com Guilherme Silva, perito e psicólogo criminal, “quanto mais armas você tem maior possibilidade de cometer crimes envolvendo armas. Normalmente as pessoas que têm uma arma legalizada acabam não tendo um treinamento adequado e deixando uma arma na gaveta. Isso dá um acesso muito fácil às crianças e aos adolescentes.”

A tendência atual é de aumento dos níveis de violência a mão armada, principalmente nas escolas, com uma maior incidência de school shootings ― a recorrência desses ataques triplicou desde Columbine. Além disso, armas de fogo são a principal causa de morte entre jovens estadunidenses: 1 em cada 10 vítimas por armas de fogo tem 19 anos ou menos, conforme os Centros para Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC). Ainda, cerca de 300.000 crianças e adolescentes já passaram por algum tipo de situação envolvendo armas durante o horário escolar, de acordo com o The Washington Post.

Os dados assustam e escancaram a emergência de medidas que previnam esses ataques. Segundo Guilherme Silva, as escolas não estão preparadas para lidar com essa escalada de violência, pecando em localizar possíveis sinais de preocupação dentro do corpo estudantil. Ainda de acordo com o psicólogo, existem muitos estigmas por trás do perfil dos atiradores, o que também prejudica nessa identificação rápida de red flags. “Não dá para afirmar que uma pessoa que faz isso é um psicopata. Ele pode até ser, mas não é necessariamente uma vinculação direta. Nós temos que evitar exatamente esse tipo de estigma”, afirma Silva.  


Debate na atualidade

“Eu não quero ter nada a ver com outro tiroteio em uma escola.

E eu sei que isso pode acontecer de novo, provavelmente”

Jayden Perez, estudante de 10 anos


O assasinato em massa que ocorreu em Uvalde, no Texas, no mês de maio, foi o último a chocar o país e reacender as discussões acerca do assunto. O atirador, Salvador Ramos, de 18 anos, havia comprado a arma usada no massacre um dia depois de fazer aniversário. Ele ficou durante uma hora na Robb Elementary School e matou 19 crianças e 2 professoras, que tentavam salvar seus alunos. 

Jayden Perez, de 10 anos, disse em entrevista à CNN Internacional que não tem vontade nenhuma de voltar a estudar depois de ter sobrevivido ao ataque. “Eu não quero ter nada a ver com outro tiroteio em uma escola. E eu sei que isso pode acontecer de novo, provavelmente”, diz o garoto.

Robb Elementary School, escola na qual ocorreu o massacre ocorrido no dia 24 de maio de 2022. [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]

O depoimento tocante do garoto representa muitos dos estudantes estadunidenses, que vivem em um constante medo de passar por uma experiência como essa. Marcello, brasileiro que reside em Miami, na Flórida, tem duas filhas de 9 anos em idade escolar e relata os protocolos que as meninas seguem dentro da escola. Marcello conta que existem rígidas regras com relação a comunicação dentro das redes sociais, além de cronogramas de treinamentos conjuntos para caso haja um atentado. “Eu acho triste que essas crianças tenham que passar por isso, mas ao mesmo tempo é uma realidade. Eu prefiro que elas estejam preparadas”, diz o brasileiro. 

Dentro desse cenário, movimentos sociais que lutam por segurança ganham espaço e novos apoiadores. Um exemplo de organização que batalha por leis de regulamentação de armas é a March for Our Lives, criada após os ataques de 14 de fevereiro de 18 em Parkland, na Flórida, na qual 17 estudantes morreram baleados. 

A entidade foi responsável por organizar uma manifestação homenageando as vítimas de Uvalde. Dez mil pessoas foram às ruas em múltiplas cidades ao redor dos Estados Unidos, pedindo por mudanças efetivas e imediatas. Uma delas foi Barbara Gerke, de 58 anos, que é a favor do porte de armas. Em entrevista ao jornal The Texas Tribute, a estadunidense destaca que não quer banir completamente os armamentos, mas sim, uma legislação real que realmente traga uma maior segurança para a população.

Em parte, os clamores por regulamentos firmes foram ouvidos. No dia 24 de junho, a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos aprovou um pacote de lei bipartidário que impõe novas regras para a compra de armamentos. A legislação concede um maior orçamento para projetos para a melhoria da segurança no ambiente escolar e de conscientização sobre saúde mental para a população estadunidense como um todo. Além disso, a lei prevê que pessoas condenadas por abuso doméstico não possam adquirir armas e encoraja leis estaduais e municipais de monitoramento de possíveis pessoas “perigosas” para a sociedade. 

Embora existam avanços atuais notáveis, é extremamente necessário destacar os retrocessos recentes. Um dia antes do pacote bipartidário ser aprovado na Câmara, a Suprema Corte decidiu, por 6 votos a 3, ratificar o direito de portar armas em público com fins de autodefesa. Essa decisão reafirma o longo caminho a ser percorrido para obter avanços nesse campo. 


Pelo fim da violência 

Os school shootings são uma triste realidade que atinge milhares de crianças e adolescentes estadunidenses. Eles acabam por sofrer as consequências de uma construção social e política que foi fundamentada na violência a mão armada, ao longo da história do país. 

Dentro desse contexto de perpetuação da cultura da hostilidade, destaca-se a necessidade de quebrar esse ciclo de agressões por meio de legislações rígidas e eficientes de controle do porte de arma nos Estados Unidos – mesmo que isso desagrade a parcela conservadora da população. Dogmas ultrapassados que cultuam a violência armada são símbolos de uma sociedade que se apega a conceitos retrógrados de honra e costume. A recorrência dos tiroteios é apenas o retrato de uma nação que insiste em permanecer no passado.

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