A prática de compartilhar fotos dos filhos na internet tem um nome: sharenting. O termo, em inglês, vem da fusão das palavras share (compartilhar) e parenting (paternidade). Esse comportamento introduz os debates sobre responsabilidade parental e direitos das crianças.
Antes de completar cinco anos, as crianças têm, em média, mil fotos delas próprias postadas na internet. Essa é a informação apontada por uma pesquisa feita em 2017 com 2 mil pais de crianças pequenas britânicas.
O que postamos
“O que antes era registrado e guardado em álbuns de família, hoje já não existe mais. A mudança para o mundo digital foi rápida e impôs mudanças comportamentais drásticas, sendo uma delas a perda da noção de privacidade” afirma Amanda Borges Fortes, mestre em Psicologia Clínica e especialista em Terapias Cognitivo-Comportamentais.
Publicar imagens de amigos e familiares nas redes sociais sem pedir permissão é muito comum porque, na maioria das vezes, queremos compartilhar momentos que vivemos juntos por meio de fotos geralmente consentidas.
De todo modo, sabemos que, se precisarmos, podemos pedir permissão. Ou então, se algum amigo não gostar da publicação, ele pedirá para apagar. Contudo, quando se trata de crianças, a situação é diferente, seja porque a criança ainda não tem noção do que será postado, seja porque sua opinião não costuma ser levada em conta nesses momentos.
Fortes coloca que, hoje em dia, tanto a privacidade quanto o controle do limite da exposição das crianças são geridos pelas pessoas que as cercam. “Muitas vezes, para os responsáveis, uma imagem não tem a menor malícia, mas em outros contextos e interpretações, pode adquirir significados diferentes.”
A partir de certa idade, as crianças já têm condições mínimas de formular opiniões e é fundamental ouvi-las a respeito de sua intimidade. Uma imagem que parece engraçada hoje pode vir a ser um problema para uma criança que crescerá marcada pela exposição de momentos delicados. Cabe aos pais garantir a segurança dos filhos, sabendo diferenciar a vida deles da vida pessoal da criança.
Há um limite para a exposição?
Para Renata Soares Martins, psicóloga no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (IFAM), há um limite para a exposição infantil na internet. Esse limite diz respeito especialmente à segurança e bem estar da criança. “É claro que não podemos dizer que os pais não podem expor imagens de seus filhos nas redes sociais.” A psicóloga ainda afirma que “esse compartilhamento torna-se parte da identidade virtual de pai/mãe/família”. Para Martins, a preocupação está relacionada às situações que possam causar constrangimento à criança.
É nesse sentido que a psicóloga Fortes recomenda, antes de postar uma foto, imaginar o que seu filho adolescente diria sobre ela. Se houver dúvidas de que ele gostaria, o melhor é não postar. Ela afirma ser importante também avaliar se a imagem poderia se tornar um motivo de bullying na escola, porque as publicações ficarão online por muitos anos. Fotos de bebês sem roupas ou tomando banho, por exemplo, por mais fofas que sejam, podem significar uma exposição indesejada no futuro.
Elora Raad Fernandes, mestra em Direito e Inovação, aponta riscos da superexposição de crianças. O primeiro está ligado à interação de outras pessoas na internet com a criança e com seus dados. Ela cita como exemplo o caso em que os pais postam uma foto do filho na porta da escola vestindo o uniforme escolar, situação que expõe não apenas as feições da criança, como também a escola em que ela estuda e os horários em que ela está em determinado local.
Outro risco é a construção do rastro digital, o agrupamento de informações depositadas na internet durante a interação constante das pessoas com as redes. Essas informações incluem dados pessoais, localização do dispositivo, lista de contatos, interesses pessoais, etc. Fernandes afirma que, quando se trata de crianças e adolescentes, pessoas em desenvolvimento e, portanto, mais vulneráveis, a questão é ainda mais grave. “Eles estão sendo a primeira geração a ter uma grande quantidade de dados coletados desde sua concepção”, ressalta.
Vida pública e os influenciadores
Segundo Renata Soares Martins, para uma criança, ser tratada com respeito na internet significa ser considerada como um sujeito de direitos: de privacidade, de segurança e de imagem. Ela informa que, em sua dissertação “Entre curtidas no Instagram: a exposição de crianças nas redes sociais e suas possíveis consequências ao desenvolvimento infantil”, obteve algumas respostas de pais que relatavam como os filhos às vezes não queriam tirar fotos ou serem filmados, mas em outros dias aceitavam sem problemas. “Isso nos faz refletir o quão desagradável para uma criança pode ser a obrigatoriedade de estar sempre disposta a ser fotografada e filmada para ser vista, muitas vezes, por pessoas que ela nem sequer conhece.”
Com isso, é possível levantar questões para falar sobre mini blogueiros, que têm a responsabilidade de produzir conteúdos para a internet desde muito cedo. “Como será que essas crianças se sentem? Será que elas vivenciam ‘dias ruins’ em que elas queriam ‘apenas’ ser crianças?”, reflete Martins.
A prática do sharenting também diz respeito a situações em que os próprios pais ou responsáveis criam perfis em nome de bebês, inclusive dos que ainda não nasceram, e administram sua vida digital. Quando analisamos a situação de filhos de influenciadores digitais e pessoas públicas, esse fenômeno tem proporções ainda maiores.
Nesses casos, Martins comenta que a exposição cria uma identidade digital sob a perspectiva de quem está expondo, e as crianças passam a ter que lidar com os reflexos de expectativas, questionamentos e críticas de milhares ou até milhões de pessoas.
“Imagens sobre o período de gestação, a descoberta do sexo, a preparação para o parto, a escolha do enxoval, o nascimento da criança e os detalhes sobre o parto também são bastante frequentes”, comenta Martins ao abordar a prática do “oversharing” – excesso de exposição – como uma das formas de a família inserir a criança na internet e determinar suas primeiras experiências virtuais.
Além do Instagram, canais em que se propõe debater maternidade e paternidade, troca de experiências e dicas de atividades para as crianças são comuns de encontrar no YouTube. Nesses espaços, as crianças podem ter uma exposição maior ou menor, a depender do grau de privacidade que os responsáveis decidem manter nas redes sociais.
Um exemplo é o canal da youtuber Flavia Calina, que aborda assuntos relacionados à maternidade, saúde e cotidiano da família, que mora nos Estados Unidos. Alexia é fã da youtuber e mantém um perfil do Instagram dedicado à família. Ela conta que começou a acompanhar o canal por gostar muito da vida nos Estados Unidos. Quando a filha mais velha da youtuber nasceu, percebeu que gostaria de ter tido o mesmo tipo de criação que Flavia dispensa a seus filhos. Foi isso que influenciou a fã a seguir carreira na área pedagógica.
Alexia enxerga na youtuber o respeito pela privacidade das crianças ao sempre perguntar se pode gravar atividades que os filhos estejam fazendo. Quando questionada sobre a possibilidade de, em algum momento, um dos filhos de Flavia não querer mais aparecer no canal, ela comenta: “eu ficaria triste por já estar acompanhando eles desde cedo, mas entenderia, porque cada pessoa tem seu tempo e sua privacidade”.
Esse comentário é reforçado por Fortes, ao mencionar a privacidade enquanto um direito fundamental e irrenunciável que toda pessoa possui. Tal direito está relacionado ao controle do conjunto de informações sobre a vida do indivíduo, que pode decidir quando e onde essas informações serão disponibilizadas publicamente, assim como decidir quem poderá acessá-las e usá-las.
Essa exposição está presente também nos canais de youtubers mais jovens, que não costumam produzir conteúdos de caráter pedagógico, ou relacionados a cuidados parentais, mas estão acostumados a documentar o cotidiano em forma de vlogs.
No geral, as crianças não possuem influência na escolha sobre o que é disseminado acerca delas mesmas. Assim, é importante questionar o que se deve compartilhar. É saudável publicar erros, acertos, pensamentos e momentos constrangedores? Precisa-se considerar a relevância da percepção da criança sobre sua exposição enquanto indivíduo com pensamentos e opiniões próprios.
Nesse sentido, Martins diz ser possível que a percepção atual dos pais sobre privacidade seja diferente daquela que a criança desenvolverá no futuro e que, portanto, influenciará o julgamento que ela irá fazer da conduta dos pais em relação à exposição de sua vida privada.
Exposição indesejada
Para avaliar os limites entre o que é saudável compartilhar e o que não é, Fortes indica ser fundamental atentar-se para o objetivo com os quais os responsáveis estão conduzindo as imagens. Isso ajudará a entender possíveis benefícios ou prejuízos gerados às crianças.
Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, fica proibido que pais ou responsáveis submetam os menores a vexame ou constrangimento sob pena de seis meses a dois anos de detenção. “Também é crime expor a vida ou a saúde dos menores, privando-os de alimentação, cuidados indispensáveis ou sujeitando-os a trabalhos excessivos ou inadequados, em casos mais extremos”, afirma Fortes.
Conforme colocado por Elora Raad Fernandes, nossos dados pessoais fazem parte da nossa personalidade, de forma que os pais ou responsáveis estão apenas gerindo esses dados durante um período de tempo, enquanto a criança não atinge a maturidade adequada. De acordo com a Lei Geral de Proteção de Dados, ao atingir 12 anos, a criança já pode consentir para o tratamento de dados, da mesma forma que pode retirar o consentimento dos pais – isso pode não ocorrer em situações em que os dados são tratados com base em contratos, como no caso de atores mirins, por exemplo.
Contudo, mesmo que seja possível retirar o consentimento, deletar os dados expostos e excluir perfis de redes sociais, é extremamente difícil apagar para sempre um dado que já se encontra na internet.
Em casos de exposições exageradas que não estejam de acordo com o melhor interesse da criança, Fernandes ressalta que a análise da autoridade parental em relação à vida digital das crianças deve ser sempre feita caso a caso e eventuais abusos devem ser devidamente investigados pelo Ministério Público e analisados pelo judiciário.
Atrativo para publicidade
Renata Soares Martins destaca que grande parte das famílias acredita que há muitos benefícios na exposição: compartilhar as experiências, criar vínculos com outras mães e pais, ajudar outras pessoas na mesma situação, obter visibilidade e reconhecimento, construir amizades e ainda obter parcerias comerciais com empresas e produtos. A psicóloga ressalta que essa representação virtual, controlada e encenada, pode contribuir para a construção de uma vida cotidiana familiar idealizada.
No entanto, há uma questão que vai além desse compartilhamento de informações sobre a rotina da criança: o uso comercial de perfis infantis como uma forma de explorar seus corpos e imagens. Conforme perfis e canais infantis ganham visibilidade, a imagem da criança e de sua família torna-se central nas parcerias comerciais e publicitárias com lojas e marcas, o que impulsiona a adultização de pequenos influenciadores digitais.
A utilização de personagens ou celebridades com apelo às crianças é considerada abusiva caso esteja divulgando algum produto ou serviço direcionado ao público infantil, segundo resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).
Renata Alves de Carvalho Oliveira, mestra em psicologia com estudos sobre relação entre infância e YouTube, conta que o Instituto Alana tem lutado fortemente para que essas regulamentações sejam aplicadas também no território da internet, visto que atualmente há uma utilização massiva de equipamentos eletrônicos por parte do público infantil. O instituto, uma organização de impacto socioambiental que promove o direito e o desenvolvimento integral da criança, já conseguiu retirar do ar alguns vídeos publicados por uma youtuber mirim por tratar-se de conteúdo publicitário. Para a psicóloga, porém, ainda faz-se necessária uma regulamentação específica.
Oliveira afirma que, sem dúvidas, tanta exposição gera impactos sobre a vida dessas crianças, como o agravamento de questões psicológicas, fragilidade na autoestima, que passa a depender da aprovação do público, e aumento do consumismo por parte das crianças.
“Destaca-se que o grande arsenal de informações (rastro digital) é muito valioso para o modelo de negócios baseado em publicidade direcionada. Assim, quanto mais as crianças passam tempo online, melhor para as empresas”, comenta Elora Raad Fernandes. Ela aponta que a personalização do conteúdo por algoritmos gera uma bolha nas redes. Isso pode gerar falhas de relacionamento social em crianças e adolescentes. “A necessidade de se crescer em um espaço plural para o desenvolvimento de um pensamento crítico pode ser minada a partir desses filtros.”
Fortes diz que ainda se sabe pouco sobre a exposição de crianças na internet, já que estamos lidando com a primeira geração a ter filhos nascidos já com redes sociais.
Para a psicóloga, precisamos descobrir formas de usar esse compartilhamento em nosso favor, afinal, há benefícios, assim como perigos: o ato de compartilhar aumenta nossa conexão comunitária, troca de experiências e convivência social, ao mesmo tempo em que o compartilhamento impensado serve de mau exemplo para as crianças e ameaça seu bem-estar.
“O essencial é refletir antes de publicar e incluir as crianças no processo decisório sobre o que vai ser postado sobre elas online, de forma a educá-las sobre privacidade, consentimento e como se portar nas redes sociais”, completa.