Por Ligia Andrade (ligia.andradem@gmail.com)
Não é tarefa fácil viver e conviver neste mundo.
A lassidão da rotina que nos enlaça pelo pescoço feito um colar de pérolas, daqueles que encantam pelo brilho e estrangulam pelo preço, parece-me tão comum nestes dias que eu mesmo mal a percebo. E, quando o faço, vejo que não há nada a fazer. Ora, se hoje não há nada mais excitante que constatar a constância do mundo!
Peço desculpas pelo começo do que pode parecer um pequeno desabafo. Se o faço deste jeito, é simplesmente por devaneio ou mesmo costume de reclamar. Pois reclamo, e enquanto puder reclamar de tudo aquilo que um dia já clamei, farei-o sem pestanejar. Reclamo até de meu reclamar, e percebo que ele também se rende ao tedioso ciclo de minha rotina.
Mas aqui não venho desabafar, ao menos não hoje. Acontece que nesta manhã experimentei algo que foge de meu controle mental, de minhas resoluções psíquicas já tão consolidadas e que vieram, enfim, a se perguntar se não haviam ensandecido em algum ponto de minha vida.
Imaginem que hoje deparei-me com o sumiço de um velho conhecido. Assim, subitamente.
Não pretendo, porém, colocar a carroça em frente aos bois neste momento. Pretendo sim chegar a algum lugar com minhas palavras, seja lá que lugar for esse, e possui-se de mim uma ínfima esperança, vinda não sei de onde e feita não sei para quê, de que talvez realmente venha a conseguir.
Tudo começou quando abri a porta do meu prédio.
Com a mão esquerda, depois de cumprimentar minha vizinha e seu cachorrinho que latia para mim por cinco segundos antes de se render aos meus afagos, abri a maçaneta da porta verde, como sempre. Vestia minha camisa azul-clara com botões pretos de todas as segundas-feiras, meu sapato polido às sextas, por um simpático garoto do metrô, reluzia. O gosto do café ainda marcava minha boca, embora tivesse escovado os dentes com trinta e duas escovadas em cada canto da boca, como manda o bom costume. Meus dedos coçavam para pegar a bala de menta no bolso da minha calça, mas apenas assim fariam depois do meu segundo café de começo de semana, na padaria da esquina do meu trabalho.
Ora, estava tudo na mais perfeita calma. Meu sorriso estridente despedia-se da vizinha e de seu cachorrinho enquanto passava pela porta. Era mais um dia feliz que teria pela frente.
Quero dizer, era esse meu pensamento pela manhã. Esse na verdade é o meu pensamento durante todas as manhãs de segunda a sexta-feira. Mas a quem eu quero enganar? Escrevo sempre pelas noites, e às noites, parece-me que o dia fica a distâncias e mais distâncias do seguinte, de maneira que tudo me parece uma grande besteira. Talvez seja melhor reescrever o parágrafo anterior, se quero mesmo chegar a algum lugar com tudo isso.
Ora, estava tudo na mais caótica calma. Meu sorriso forçado, que já fazia doer minhas maçãs do rosto, tentava esconder o ódio que sentia pelo cachorro da minha vizinha, cachorrinho bem estranho, que tentava me morder todos os dias por cinco segundos, enquanto passava pela porta que tinha de desemperrar, o que acabava sempre tirando uma lasquinha da minha unha. Mas que seja, nas manhãs não ligo para tudo isso, de maneira que era mais um dia feliz que teria pela frente.
Como dizia, percebi que seria um dia diferente. Logo que passei pela porta e avancei pelos degraus, busquei com meus olhos o velhinho que se sentava na metade exata de um banco debaixo da árvore em frente ao meu prédio todas as manhãs, mas nada encontrei.
Aquilo me causou uma impressão tremenda. Confesso até mesmo que perdi um dos treze degraus que compunham a escadaria, coisa que nunca havia me acontecido. Olhei atordoado em volta, pensando que talvez tivesse se levantado para esticar as costas ou algo do tipo. Mas ele não estava em lugar algum. Eu simplesmente não pude acreditar no que meus olhos não viam.
Parei atordoado.
Minha mente tentava formular diversos cenários que poderiam ter ocorrido para que aquele velhinho não estivesse naquele banco, porém só conseguia vislumbrar a única imagem que conhecia até então: a de um velhinho sentado em um banco.
Minhas mãos foram a minha boca, e embora não quisesse que outras pessoas percebessem minha surpresa, mais surpreso não poderia estar. Ele não estava ali. Simplesmente não estava. Mas como poderia não estar ali? Eu estava ali. A porta emperrada do meu prédio estava ali. Os treze degraus da escadaria estavam ali. O cachorrinho endemoniado e minha vizinha estavam ali. Logo, ele deveria estar ali também. Era a ordem natural do mundo. E, mesmo assim, não estava.
Meus braços flexionados apoiaram-se em minha cintura.
Olhei o relógio em meu pulso, estava com um atraso de um minuto. Eram trinta segundos a mais que o tempo de atraso usual, de trinta segundos. Isso significaria trinta segundos a menos na padaria da esquina do meu trabalho, e talvez trinta segundos a mais em meu próprio local de trabalho. Mas não podia simplesmente dar as costas àquele evento e seguir como se nada tivesse acontecido.
Aquele velhinho, de cabelos grisalhos e sorriso simpático, era peça fundamental de todos os meus dias. Sentado sob um ipê amarelo, que sempre florescia ao final dos invernos, num banco de madeira vermelho, ao lado de uma banca de revistas e jornais que mais lucro ganhava com a venda de cigarros e isqueiros, passara anos ali, sempre reclinado sobre um amontoado de papéis com uma caneta em mãos, e sempre a escrever. Nos dias de chuva, pendia sobre si um guarda-chuva listrado, nos dias de outono, deixava o amarelo recobrir-lhe todo. Nunca cheguei a atravessar a rua para perguntar-lhe, finalmente, o que estava escrevendo, de maneira que não consigo descrever-lhe a cor dos olhos, e se descrevi seu sorriso é porque sempre sorria para aquelas folhas nas quais escrevia. Em meus piores dias, chegava a maldizê-lo por não ter outra coisa a fazer senão passar seus dias inteiros com aquela caneta. Em meus melhores, imaginava-me atravessando a rua para ao menos olhar o que escrevia.
O dia estava bonito, com algumas poucas nuvens espalhadas pelo céu. O ipê estava cheio, e a grama debaixo do banco possuía um tom verde que parecia mais vivo do que nunca. Alguns transeuntes conhecidos da rua, como vizinhos que saiam ao trabalho e crianças que partiam para a escola, seguiam seus caminhos sem parecer notar qualquer coisa de diferente. Era como se nunca houvessem percebido ele ali, ocupados demais com suas próprias rotinas.
Mas eu percebia aquele velhinho. E se percebia antes sua presença, tanto mais agora notava a falta dela. Súbito, apossou-se de mim algo de inquieto e voraz, e não pude acreditar em meus próprios pensamentos quando estes sugeriram ao meu corpo que caminhasse até o outro lado da rua. Entrei em um conflito interno inédito. Um de meus pés puxava-me para a direita, tentando levar-me ao trabalho. Outro, entretanto, colocava-se a frente, implorando que o deixasse atravessar a rua.
“Mas o que é isso que se passa comigo?”, lembro-me de ter pensado. E entretanto continuava a me mover em L, levando minhas mãos à têmpora em desespero. Olhei novamente o relógio, mais trinta segundos haviam se passado. Aquilo tudo era um absurdo! E mesmo assim me peguei inclinado a ceder aos impulsos de meu outro pé.
Agora já não sei como se deu a travessia daquela rua. Apenas sei que, quando caí em mim mesmo, senti o para-choque de um carro encostar em minha cintura. Lembro também de pedir desculpas ao motorista pela súbita aparição em frente ao seu carro, e, mesmo muito assustado, continuei com meus passos até o outro lado. Ao chegar à calçada do banco, senti muito medo. Mais medo ainda me causou aproximar-me dele, mas já não mais me permitia desistir do que havia me proposto, fosse lá o que isso significasse.
Os transeuntes passavam por mim também sem parecer me perceber. Seus ombros se chocavam nos meus, e nenhum “bom dia” foi-me dito. Quando percebi que dois homens, conduzindo caixas e mais caixas em uma carroça de carga, não se incomodariam em passar por cima de mim, fui forçado a sentar no canto do banco vermelho, debaixo do ipê amarelo e sobre a grama verde, para ceder-lhes passagem.
Imaginem vocês meu estado quando sentei-me naquele banco. Confesso que não sabia o que esperava ao atravessar a rua, talvez olhar para ele ou tocá-lo, mas em hipótese alguma havia mensurado sentar-me ali, na propriedade do velhinho que, não sabia porquê, havia a abandonado.
Apoiei um de meus braços em seu encosto, enquanto o outro permanecia sobre minha perna. Passei ali alguns segundos olhando para a rua, para os carros, até mesmo para meu apartamento do outro lado da rua. Que engraçado era observar meu próprio local de observação! Admito que levei muito tempo até perceber o que se encontrava ao meu lado. Foi só quando senti a primeira gota de chuva cair (coisa estranha, pois o céu estava até então quase sem nuvens) que me deparei com aquela caneta, acomodada bem ao meu lado.
A chuva apertou. Olhava para a caneta e me sentia culpado, como se eu, por simplesmente estar ali com um objeto outrora tão pessoal e tão fundamental a outro alguém, tivesse alguma culpa por aquela estranha manhã de segunda-feira. Apesar de sentir minha camiseta, lavada e passada com tanto esmero no fim de semana, ensopando-se, não conseguia tirar da minha cabeça uma dúvida: por que ele haveria de abandonar ali, sob as intempéries do tempo e das pessoas, a caneta que o acompanhara por tanto tempo?
Novamente, não sei como se deu a travessia de volta para o meu lado da rua. Apenas sei que segurava em minhas mãos aquela caneta como um verdadeiro fugitivo guarda seu dinheiro roubado. Sim, levava comigo a caneta e não, não sabia inteiramente o porquê. Meu pé direito escorregava dentro do calçado: a lama havia o invadido quando saltei do banco. Andava com dificuldade, e não sei como, mas não me passou uma única vez pela cabeça quando eu mandaria meu sapato para a lavanderia. Apenas me passou que não pensava em nada, e aquilo me preocupou muito.
Cheguei à escadaria do prédio e, estranho, seus treze degraus pareciam-me ter dobrado de tamanho. Tropeçava em alguns, aparentemente mais compridos do que me lembrava, e também mais altos. Finalmente girei a maçaneta da porta verde de meu prédio, com minha mão direita, e a porta se abriu como passe de mágica, sem dificuldade ou rangido algum! Passando por ela, deparei-me com o cachorrinho raivoso da vizinha tentando engolir minhas mãos e — coisa mais estranha ainda! — ele me parecia muito maior, de orelhas em pé, focinho longo e autoritário. Era um pastor alemão! Não sei que razão atuava sobre mim, apenas sei que ela decidiu ignorar todas aquelas novidades irracionais e continuar meu percurso até meu apartamento, sempre com meus dedos cerrados sobre a caneta.
E foi assim que decidi começar a escrever o que agora escrevo.
Passei o dia inteiro tomando café preto e olhando para a caneta. Ela era simplesmente fascinante, viciante. Não me importava mais com nada, senão analisar sua complexidade e tentar entender como poderia tão bem me prender.
Era uma daquelas canetas esferográficas compradas em bancas, e que vendem, assim como cigarros e isqueiros, mais que jornais e revistas. Trivial, indispensável em muitos momentos da vida de um homem.
Seu corpo de poliestireno era cilíndrico e poderia muito bem simplesmente ser chamado de plástico. Aliás, seria mais correto dizer que era um prisma hexagonal, enquanto o formato cilíndrico dava conta do tubinho de tinta interior. Possuía 14 centímetros de comprimento e 0,5 cm de largura, pelo que pude medir com uma régua velha quebrada ao meio que achei debaixo do sofá. Seis triângulos, que supunha equiláteros com vértices convergentes, eram os responsáveis por agradar o tato. Uma verdadeira criação da tecnologia.
Era incrível pensar que antes dos anos 1930 todos ainda precisavam escrever com canetas-tinteiro. Sujeitos a borrões e ressecamento da tinta, não imaginavam que uma simples esfera poderia resolver todos os seus problemas. No interior do bico, suspeito que com menos de 1 milímetro de diâmetro, feita de tungstênio e quase mais resistente que um diamante, já ouvi dizer que a minúscula esfera da caneta tem material semelhante ao usado na fabricação de balas de revólveres, e precisa ser produzida à perfeição para que o resultado final seja uma boa fluidez sobre o papel. Não à toa, o primeiro-ministro da China, país conhecido por sua tecnologia de ponta, declarou não conseguirem produzir as pontas (quão irônico!) das canetas esferográficas adequadamente, e, assim, precisavam importá-las de outros países com a tecnologia necessária. É que o aço chinês não é adequado para essa produção, e, por isso, acabam gastando mais de 55 milhões de reais anualmente para a importação das esferas. Lembro-me de ficar chocado quando, em 2016, vi Li Keqiang fazer este pronunciamento em um canal nacional de televisão, lamentando-se pelo fracasso do país em produzir uma simples caneta esferográfica.
Ela foi lançada na época em que a Segunda Guerra Mundial abalava o mundo. Pilotos de guerra, lançando bombas sobre países e dando suporte para seus homens no chão, acreditem, não conseguiam escrever no ar enquanto a caneta esferográfica não existia. A tinta das canetas-tinteiro vazavam horrores devido à variação de pressão em altas atitudes. Foi assim que as Forças Armadas americanas encomendaram mais de 20 mil unidades de canetas esferográficas pelo que fiquei sabendo.
E seu mecanismo…! Ah, a esfera milimétrica na borda de um tubo de tinta, presa em uma ponta metálica feita, pelo que fui descobrir já pela tarde, de latão, capaz de se direcionar para qualquer lado, que suga a tinta do tubo interior ao deslizar pelo papel e a despeja nele suavemente, devido à distância precisa de milésimos de milímetros entre esfera e ponta… Aquilo parecia impossível de ser feito e, no entanto, era produzido em massa, com mais de 10 milhões de unidades vendidas por dia e mais 57 agora, enquanto você ficava chocado com essa informação.
A tinta preta em seu interior, suficientemente viscosa para que não escorresse de uma vez só do tubo à esfera, tinha uma secagem rápida e não borrava quase nada. Talvez fosse o solvente misturado a ela, como o óleo, que é absorvido pelas fibras do papel, ou o álcool, que sofre evaporação, o responsável por isso. E quanto a sua cor preta… Lembro de meu pai me contar como é que era feita a cor preta das canetas. Envolvia algo como a separação de partículas do negro de fumo, que é a fuligem criada pelo carvão ou por derivados de petróleo, que servem como pigmento. Não acreditei quando ouvi, difícil me era imaginar carvão se transformando em cor, mas alguns livros e professores acabaram sustentando a fala de meu pai.
Porém o que mais me impressionava, talvez, era a pressão e a gravidade dentro da caneta. A pressão no tubo de tinta é controlada com um respiradouro, um furinho que fica no corpo da caneta e permite que a pressão se ajuste. Sem ele, a tinta não fluiria. A força da gravidade, por sua vez, faz com que a tinta desça pelo reservatório e encharque a esfera, que a transfere à superfície conforme gira no interior da cavidade. Dizem que, em linha reta, a tinta de uma caneta esferográfica é capaz de atingir até dois quilômetros de extensão. Mas isso é o que dizem. Eu mesmo nunca fiz o teste.
E foi assim que meu dia passou.
Às vezes ousava segurar a caneta entre meu polegar e indicador, repousando-a sobre meu dedo médio com o meu quinto dedo apoiado sobre a mesinha para testar minha grafomotricidade. Lembrava-me, esporadicamente, de quando, ainda criança, tentava escrever meu nome, o nome de meus pais e qualquer outra coisa que servisse de desculpa para simplesmente escrever. Meu tônus muscular se desenvolvia, tentando achar o ponto certo de contração parcial necessária para iniciar a escrita após o impulso de meus centros nervosos. Meu arco de movimento atingia paulatinamente o grau ideal de amplitude de minha articulação sinovial, que fazia a ponte de comunicação entre um de meus ossos com outro e permitia o movimento de minhas mãos. A retroalimentação sensorial, desenvolvida por tentativas e mais tentativas, repetições e mais repetições que minha professora insistia com que eu fizesse “as” e “bs”, acabou por aperfeiçoar meu desempenho motor tanto na velocidade quanto em sua acurácia, até que me tornasse um escritor, ou melhor, alguém que escreve.
Mas são tantos os outros fatores que nos levam a usar uma caneta esferográfica que não o de se comunicar com o outro… Desde os primeiros impulsos nervosos transmitidos em sinapses entre nossos neurônios e células, por toda a nossa rede neuronal. Desde os primeiros contatos entre o meio externo e nosso corpo através de sinais elétricos. Desde a infância até o trabalho, a camisa azul-clara com botões pretos de segundas-feiras, os sapatos reluzindo de sextas, o cachorro (já não sei se inho ou se ão) e a vizinha, a porta que emperra tão fluida, a escada curta que não acaba, o céu sem nuvens que chove, a grama verde que se enlameia, o velho que antes escrevia e que agora não escreve mais. E por que não escreve?
Coloquei novamente a caneta sobre a mesa. A passos vagos e incertos, caminhei até a janela para observar o outro lado da calçada. O banco vermelho continuava apenas um banco vermelho. Foi ao voltar para a pequena mesa de centro, com a caneta sobre ela, que minhas fendas sinápticas entre as membranas de minhas células pareceram se preencher com neurotransmissores certeiros. Em outras palavras, tudo começou a fazer sentido.
Agora escrevo com a caneta dele que, enfim, tomei coragem de usar. Escrevo sobre alguns papéis que encontrei jogados à estante da cozinha, entre dívidas inúmeras e números de telefones que nunca anotei de quem eram. Estou mais tranquilo que de manhã, quando tudo se deu, mas ainda me encontro exasperado. Admito que ainda não entendo a chuva, o cachorro e a travessia da calçada, nem mesmo me atrevo a pensar muito sobre isso, e enquanto escrevo, penso logo em como terminar de contar essa parte rapidamente.
Depois do que já relatei, não voltei a olhar para a janela: tudo, como também já disse, pareceu se clarear em minha mente.
Quando percebi do que se tratava o sumiço do velhinho que sempre se sentava no banco vermelho debaixo do ipê amarelo e sobre a grama verde, fiquei, a princípio, pasmo com a obviedade da questão. Mas é que às vezes o óbvio se dá de maneira tão estridente que se é difícil concluí-lo com esmero antes de se imaginar as mais difíceis e complexas resoluções. Passado este primeiro instante, porém, algo de novo tomou conta de mim, e senti que a partir daquele dia meu eu não seria mais aquele que já conhecia tão bem, ou ao menos pensava conhecer.
Pois bem, aqui se dá o que verdadeiramente aconteceu.
Naquela manhã de segunda-feira, com poucas nuvens no céu e com tantos transeuntes preocupados com seus próprios afazeres, aquele velhinho, que passara tantos anos com uma caneta esferográfica em mãos todos os dias sobre uma pilha de folhas, sentado a um banco vermelho em frente ao meu prédio, havia, finalmente, terminado o que tinha para escrever. Não vendo mais uso para a caneta, deixara-a ali.
A euforia, talvez misturada à raiva, que senti naquele momento de derradeira descoberta, foi grande, mas ainda incompleta. Demorei a entender o porquê do abandono da caneta no banco sob o ipê amarelo, e só fui compreender quando eu mesmo abondei as premissas que havia criado. Ora, aquilo não se tratava de um abandono. Ele havia terminado o que tinha para escrever, mas apenas ele. A caneta já não mais tinha utilidade, senão para outro alguém que ainda tinha o que escrever.
E eu, bem, eu ainda tinha o que escrever.
Pela primeira vez consigo chegar a algum lugar com minha escrita, mesmo sem saber exatamente onde. Mas suspeito que cheguei, e isso já me basta. As reflexões, as conclusões que tiro deste dia ainda me são insuficientes, e mesmo não sei se um dia chegarão a render-me algo de precioso, senão o baque preciso para a mudança. Apenas sei que hoje não pretendo escovar o dente trinta e duas vezes. Talvez não o escove inteiramente. Amanhã tenciono-me a continuar escrevendo, se o efeito de tudo isso não passar com uma noite de sono, e assim um dia talvez saia desta mesinha de centro de madeira sem a caneta em mãos. Pergunto-me quanto tempo isto levará…
Por ora, sinto que começo a conseguir pagar o preço do colar de pérolas que me enlaçava na lassidão de minha rotina.
Talvez um dia volte a respirar.