No dia 9 de junho deste ano, Glenn Greenwald publicou no The Intercept Brasil as primeiras de uma série de reportagens que repercutiram em todos os lugares. O conteúdo polêmico dessas matérias é fruto de um extenso material advindo de um hacker que invadiu o celular do procurador da Operação Lava-Jato, Deltan Dallagnol. Revelaram-se mensagens trocadas no Telegram entre Dallagnol e diversos outros envolvidos na Operação, incluindo o atual ministro da Justiça Sérgio Moro.
Dentre o conteúdo dessas conversas há procuradores tentando impedir uma entrevista do ex-presidente Lula, que poderia “eleger Haddad”. Outras mensagens também indicam Sérgio Moro, juíz dos casos, dando conselhos para atuação da Lava-Jato, Deltan sugerindo que Moro protegia Flávio Bolsonaro para não perder uma possível indicação ao STF e o uso do movimento “Vem pra Rua” como instrumento de articulação política.
Sobre os diálogos, Moro e Dallagnol buscaram, por meio de notas oficiais, apontar a invasão do celular como um ato ilícito e descreditar as reportagens. No artigo “Como e por que o Intercept está publicando chats privados sobre a Lava Jato e Sérgio Moro”, o veículo se justifica dizendo que “o único papel do The Intercept Brasil na obtenção desse material foi seu recebimento por meio de nossa fonte” e que “informar à sociedade questões de interesse público e expor transgressões foram os princípios que nos guiaram durante essa investigação”.
A situação gerou – e ainda gera – uma série de controvérsias. Em meio a uma crise política com ares de permanente e da influência da grande polarização ideológica, opiniões sobre o caso são soltas a esmo. Esta reportagem se propôs a ouvir especialistas de diferentes áreas relacionadas ao caso que podem ajudar a tornar mais clara uma situação complexa e relevante para a política nacional.
O Ataque
Dois procuradores de Brasília informaram ao R7 que tiveram seus celulares hackeados no dia 10 de maio. Segundo eles, essa também foi a data na qual o celular de Deltan Dallagnol foi invadido. A ideia de o celular de um procurador importante ser invadido e serem captadas tantas mensagens pode parecer estranha, mas isso poderia ocorrer “de um nível simples a um nível sofisticado”, como contou Boot Santos, pesquisador de segurança da informação da Flipside, organizadora de conferências sobre hacking.
“O simples, por exemplo, poderia ser uma pessoa próxima e com acesso ao celular.” De acordo com Santos, se o procurador tiver deixado as notificações ativas na tela, bastaria que alguém soubesse o número do celular e tivesse alguns segundos próximos a ele para pegar um código e realizar a invasão mesmo com o celular bloqueado.
Um ataque mais complicado ocorreria por meio do canal de comunicação SS7. A sinalização por esse canal é utilizada por operadoras de celular para troca de informações. Com ele é possível que um celular funcione fora da sua área de cobertura, utilizando o sinal de operadoras parceiras. A partir disso, um hacker poderia estabelecer conexões falsas como uma operadora e receber mensagens e chamadas destinadas outra pessoa.
É justamente essa maneira mais complexa de invasão que a Polícia Federal investiga. No dia 23 de julho, a PF prendeu quatro suspeitos de estarem envolvidos em invasões de celulares de autoridades ligadas à Lava-Jato. Um deles, Walter Delgatti Neto, confessou ter sido o responsável pelo ataque a Deltan Dallagnol e sua posterior divulgação para a imprensa.
A legitimidade
Os envolvidos nas conversas vazadas divulgavam notas nas quais amenizavam o conteúdo das mensagens e diziam que elas estavam fora de contexto sem, contudo, negá-las. Dizia Sérgio Moro: “não se vislumbra qualquer anormalidade ou direcionamento da atuação enquanto magistrado, apesar de terem sido retiradas de contexto e do sensacionalismo das matérias”.
Depois de um aumento nas críticas, esses discursos passaram a tentar deslegitimar as reportagens e frisar para o fato de o material ter vindo de um hackeamento ilegal. “A questão do aplicativo, foi apenas ali uma troca de mensagens mais rápidas, se é que essas mensagens são de todo autênticas”, disse também o ministro, no Senado.
O Intercept divulgou um edital no qual reafirma os princípios norteadores da produção das matérias, que eram realizadas a partir de “consultas com especialistas em tecnologia, com fontes que corroboram a autenticidade de conversas privadas que tiveram com os procuradores, com juristas e partes envolvidas nos processos que confirmaram a veracidade de vários documentos”. O veículo busca legitimar as reportagens por meio do trabalho de apuração realizado tanto por si mesmos quanto por outros jornais como Folha de São Paulo, Veja, El País e outros.
Segundo o especialista em tecnologia Boot Santos, não é possível atestar a veracidade das informações digitalmente. “Apenas o Telegram poderia fazer, o que jamais deverá acontecer e os envolvidos podem ter apagado as mensagens tanto do celular, quanto da nuvem.” E a questão das provas também é complicada no meio jurídico.
O advogado especializado em direito digital Marcelo de Camilo Tavares apontou para o fato de ser muito difícil para os procuradores provarem que não tiveram essas conversas. Caso Moro ou Dallagnol considerem o conteúdo das mensagens falso, seria necessário a produção de uma contra-prova: eles precisariam apresentar seus celulares para fazer uma comparação. “Eles não vão dar a cara a tapa, apresentando o conteúdo do celular próprio para fazer prova contra eles mesmos.”
Os crimes
Quando perguntado se o conteúdo das mensagens poderia ser configurado em um crime para abertura de inquérito, o advogado Marcelo Tavares respondeu que as condutas de Moro e Dallagnol, em tese, não configuram crimes. O que ele destaca, entretanto, é que as mensagens demonstram práticas que violam como o processo penal deveria acontecer.
Essa situação poderia gerar duas consequências. Atos processuais da Lava-Jato poderiam ser anulados por serem considerados parciais ou haveria a responsabilização profissional tanto de Moro quanto de Dallagnol. A questão aqui é que Sérgio Moro não é mais juíz e a corregedoria de justiça — setor do Judiciário que avalia condutas de agentes públicos — não tem mais competência para julgá-lo. Já Dallagnol poderia ser punido pelo Ministério Público ou pela própria corregedoria. “Agora, isso é muito pouco provável que aconteça, tanto uma quanto outra situação, porque não há essa prática em geral no Brasil.”
Em relação à invasão dos celulares, o advogado comenta que “é óbvio que a obtenção das conversas do Moro e do Dallagnol são ilícitas, a menos que eles tivessem sido grampeados com ordem judicial, o que não é o caso”, mas que o mesmo não se aplica ao Intercept. “No papel do jornal não há qualquer ilegalidade, é um trabalho jornalístico protegido pela Constituição”. Ainda, o advogado explica que “o jornalista tem direito ao sigilo da fonte”, ou seja, ele tem garantida a liberdade de não revelar quem lhe forneceu as informações para a produção de matérias.
A Imprensa
“O grande problema é que o conteúdo não poderia ser obtido, mas foi.” Tavares continua explicitando a diferença entre o papel da imprensa e do hacker ao dizer que são duas esferas esferas a serem observadas, dois antros de responsabilidade distintos. Uma, da imprensa, em fazer a publicação, e, antes, de quem obteve essas mensagens e como obteve. Segundo o especialista, quem obteve e como obteve são situações sem dúvidas ilícitas. No entanto, na conduta da imprensa não há qualquer ilicitude.
Para falar sobre a responsabilidade da imprensa no caso, a reportagem conversou com Amanda Audi, uma das jornalistas produzindo as matérias da Vaza Jato para o The Intercept Brasil. “Não existe democracia sem jornalismo. Como outros veículos, o Intercept também se presta a fiscalizar o poder público e as instituições.” Ela comenta sobre como eles trabalham sob uma forte bandeira de independência, publicando o que, muitas vezes, outros jornais não podem e considerando o interesse público e o rigor e ética da profissão.“Em palavras simples: damos nome aos bois e não temos rabo preso.”
Audi comenta sobre como, mesmo antes das reportagens sobre vazamentos da Lava-Jato, já recebia mensagens de ódio por conta de outros trabalhos jornalísticos realizados. “Existem algumas pessoas que se incomodam muito quando o jornalismo atinge algo, alguém ou algum ideal que elas admiram.” Nesse sentido, é impossível não pensar em Glenn Greenwald foi o primeiro a receber os materiais da Vaza-Jato, por intermédio da ex-deputada Manuela D’Ávila
O americano fundou o Intercept Brasil e ganhou, em 2014, um prêmio Pulitzer pelo seu trabalho no The Guardian sobre documentos do governo dos Estados Unidos, vazados por Edward Snowden. Hoje no Brasil, o jornalista é um dos principais alvos de ódio por conta de suas matérias produzidas na Vaza-Jato, precisa andar sempre com seguranças. Entre as formas como Glenn tem sido atacado, uma campanha pela deportação foi um dos assuntos mais comentados do Twitter por meio hashtag #DeportaGreenwald.
Apesar da grande onda de rechaçamentos, o Intercept encontra apoio em uma parte considerável da sociedade civil. No dia 9 de setembro, o jornal, em conjunto a centros acadêmicos e sindicatos, realizou um ato em defesa da liberdade de imprensa, contando com figuras ilustres do jornalismo brasileiro. Em coletiva de imprensa anterior ao evento, Glenn Greenwald comentou sobre como o que o veículo tem feito está além de revelações específicas, mostra-se como uma tentativa de mudar uma cultura de jornalismo vigente no Brasil, montar um cenário que valorize o jornalismo independente, livre, questionador e investigativo.
A apuração
“Eu estava chocado, para ser honesto.” Essa foi a primeira reação de Greenwald quando recebeu o material bruto dos vazamentos, acreditou que finalmente as pessoas saberiam do “rastro de verdade envolvendo Moro e Dallagnol”. Enquanto Amanda Audi trabalhava cobrindo a Operação Lava-Jato em Curitiba, entrou em contato com procuradores diversas vezes. Quando recebeu o material vazado, buscou pelas mensagens que havia trocado com os envolvidos na época e elas estavam lá. “Outros colegas fizeram o mesmo teste que eu: encontraram lá mensagens e menções que eles ou seus colegas enviaram.”
“Não era possível que alguém conseguisse inventar aquelas mensagens, que eram de várias datas diferentes, assuntos diferentes (muitas vezes com apurações exclusivas, que só eu sabia).” Durante os contatos com agentes públicos, ela se identificou como sendo de diversos veículos de imprensa em que trabalhava (Gazeta do Povo, RPC, O Globo e Agência Pública) e os dados batiam. Eles também prestaram atenção em detalhes, como nomes de lugares que os procuradores frequentavam e eventos que compareceram.
Também viram que todos os nomes, lugares, datas e eventos citados nas mensagens batiam com coisas que aconteciam nos processos da Lava Jato ao longo dos anos. “O jeito de escrever de cada um é sempre o mesmo, além de outras características únicas.” Além disso, pessoas citadas nas mensagens confirmaram os fatos e diálogos, como a senadora Mara Gabrilli e o apresentador Faustão. Outras fontes que estavam nos grupos também confirmaram em off.
Diante da descrição desse processo de apuração, é possível perceber como um material que foi recebido por volta de maio começou a ser publicado somente agora. Até a data de postagem desta matéria, a Vaza Jato tinha 20 partes. Quando perguntada se ainda há muito material para ser publicado, Amanda Audi nao deu voltas: “Posso dizer que: sim!”.
As consequências
A depender do que ainda pode sair, as consequências políticas podem chegar a resultar na saída de Moro. É o que diz o cientista político e professor do Mackenzie Rodrigo Prando. “Agora, sem dúvida, os fatos já são graves e isso pode atrapalhar o futuro de Moro, seja com pretensões à presidência da república ou ao STF.”
O especialista explica que, com uma eventual saída de Sérgio Moro, um dos principais alicerces da imagem do governo, o combate à corrupção, seria abalado. A figura de Moro como herói nacional foi criado no contexto dos protestos de junho de 2013 e do início da Operação Lava-Jato. Com os vazamentos, essa imagem perde crédito e a saída de Moro concretizaria esse cenário.
A falta de imparcialidade de um juiz, segundo os especialistas, prejudica a paridade de armas entre a acusação e a defesa. “Creio que a Lava Jato foi um enorme ganho para a sociedade brasileira no que tange ao combate à corrupção, contudo, os vazamentos noticiados acabam por atingir a operação e, por isso, pode, sim, colocar em xeque parte de sua credibilidade.”
O apoio à Lava-Jato na sociedade ainda é grande, mas, conforme os vazamentos são divulgados, mais (e melhor estruturadas) críticas começam a aparecer, o que levanta suspeitas sobre a atuação dos procuradores e de suas próprias decisões jurídicas. “Não se pode confundir as críticas aos erros da Lava Jato com a crença de que isso signifique defender a impunidade ou corruptos. Combater o crime deve ser dentro da lei, sempre, para todos.”