Por Beatriz La Corte (beatrizlacorte@usp.br)
A expressão ‘heartbroken’, ou seja, coração partido em inglês, foi registrada pela primeira vez em 1950, num poema de Edmund Spencer. Os registros de decepções amorosas, porém, datam desde a Idade Antiga e se espalham pelo mundo inteiro. A universalidade do fenômeno do coração partido instiga os pesquisadores a compreender se é algo inerente ao ser humano, quais efeitos são comuns ao processo e como diferentes culturas o entendem.
A mente e o coração partido
A psicanálise é um campo de estudos fundado por Sigmund Freud que busca compreender a relação entre as emoções e a mente. Para o médico, o luto constitui uma parte natural de toda perda, como a amorosa.
A psicanalista Célia de Morais Vaz comenta que ao longo da vida e, neste caso, ao longo do processo amoroso, um material psicológico é formado. Esse termo se refere à memórias, emoções, sonhos e outros fatores que moldam a personalidade de um indivíduo. Ela comenta que o coração partido ocorre quando a pessoa“não tem material para elaborar e compreender a perda”. Ou seja, a decepção ocorre quando a realidade é incompatível com o conteúdo psicológico – lembranças, emoções, sonhos – do indivíduo.
No luto, o processo de aceitação é mais ameno quando a perda já é premeditada e compreendida. Já em casos em que há uma mudança brusca na realidade, o processo tende a ser mais confuso e duradouro para o psicológico. O coração partido funciona de maneira análoga.
“É o fruto da não realização das suas expectativas. Se a pessoa tem material para conceber diferentes possibilidades, ela tende a sofrer menos, pois compreende o processo mais rápido e, assim, segue em frente”
Célia de Morais Vaz
Para Célia, a confusão é uma sensação que define o fenômeno psicologicamente. “Em um momento, o indivíduo sente amor, no outro ódio, no outro melancolia, no outro saudade. É uma multiplicidade de sentimentos, não dá para resumir tudo à tristeza”, comenta.
A psicanalista retoma que essa alternância de sentimentos se deve à falta de compreensão do ocorrido. “Se, por um período determinado, a sua mente admitia uma ideia, você ainda não tem material para conceber o oposto dela”, explica. No processo de luto e de coração partido, o indivíduo começa a entender o ocorrido, cria paz com a sua situação, e logo, percebe outras possibilidades.
De maneira geral, em casos complexos de incompatibilidade entre a realidade e o material psicológico, algumas pessoas entram em surtos psicóticos. Ou seja, elas fogem da realidade com a qual não conseguem lidar e criam uma mais familiar ou confortável para sua mente. Esse é o caso extremo do estado de negação, que é uma das mais famosas fases do luto.
O corpo e o coração partido
O conflito de uma decepção amorosa pode ir além do efeito psicológico e também afetar a saúde física. A Dra. Martha Barreto, cardiologista e médica antroposófica, relata que quando uma pessoa não articula o luto psicologicamente, a dor pode se expressar no corpo.
Esse fenômeno é conhecido como relação psicossomática e conceitua a forma que o psicológico e o emocional podem influenciar na ‘saúde orgânica’ do paciente. Ela aponta alguns exemplos cotidianos de psicossomatização como tensão muscular por estresse, problemas gastrointestinais por ansiedade e insônia por excesso de estímulos mentais.
Para Martha, os efeitos psicossomáticos do coração partido também se relacionam com a confusão neurológica. Quando a pessoa se depara com um cenário incompatível com o material construído em seu psicológico, o estresse de assimilar a nova realidade tem um efeito hormonal. O corpo libera uma série de hormônios estressores como as catecolaminas – grupo que inclui a adrenalina, a noradrenalina e a dopamina. Isso pode causar espasmos das coronárias – vasos sanguíneos que nutrem o músculo cardíaco -, o que diminui o fluxo sanguíneo e causa dor, assim como um infarto. Em casos extremos, a especialista afirma que “sim, é possível morrer de amor” por estresse cardíaco do paciente.
Esse mecanismo tem uma justificativa evolutiva. De maneira geral, quando o ser humano está em uma situação confusa, o corpo ativa uma resposta fisiológica para a luta ou a fuga. Isso porque o cérebro avalia a possibilidade de ameaças em frente ao que não é conhecido. Esse princípio já foi – e em muitos casos, ainda é – essencial para a sobrevivência humana.
Nesta tentativa de ‘sobrevivência’, o sangue precisa ser enviado para as extremidades: braços para lutar e pernas para fugir. O coração bombeia o sangue para o corpo e, por constrição dos vasos sanguíneos em áreas não essenciais (pele e órgãos internos), esse sangue não volta tão rapidamente – e não seria vantajoso, se voltasse. Em caso de desequilíbrio hormonal, esse efeito pode ser extremo e afetar a microcirculação cardíaca.
O efeito do emocional no corpo é forte, como explica a cardiologista: “estamos falando de um dano cardíaco sem nenhuma placa ou obstrução, apenas pela ação dos hormônios estressores”. Ela afirma que este é um fator que nenhum paciente e, muito menos, nenhum profissional da saúde deve negligenciar: “o emocional está diretamente ligado com a regulação dos hormônios. Existe uma forte relação entre pessoas com depressão e ansiedade com cardiopatias”.
“O que a gente não simboliza, a gente somatiza. Todo material precisa de uma via de escape, se não for pela compreensão psicológica, ele se manifesta no corpo”
Martha Barreto
Martha comenta que o coração partido e os seus efeitos psíquicos e fisiológicos são da natureza humana. Ela adverte, porém, que o que diferencia a humanidade dos outros seres é o tipo de consciência. “Diferente dos outros animais, nós não só sofremos, como também podemos criar consciência desse sofrimento e de como nos retirar dele”.
Em relação aos negacionistas da complexidade emocional, Martha diz: “ter consciência da natureza humana é o que nos torna inteligentes. Quando a negamos e ignoramos, nos tornamos iguais aos outros animais: inconscientes”.
“O ser humano é a natureza tomando consciência de si mesma”
Élisée Reclus
O tempo realmente é a cura de todas as coisas?
Ao ser perguntada sobre o ditado popular ‘o tempo tudo cura’, a psicóloga Célia comenta: “eu tenho pacientes de 80 anos que ainda lidam com traumas e decepções muito antigas”.
A analista e a cardiologista concordam que não é o tempo em si, mas sim a forma que este pode ser usado no tratamento do indivíduo que causa mudanças no quadro psicológico para melhor. Martha estabelece a analogia: “na saúde física, um machucado pode melhorar com o tempo. Porém, em casos em que a ferida não é tratada, o tempo pode apenas agravar a situação”.
Síndrome do Coração Partido
A Síndrome do Coração Partido é um quadro clínico relacionado ao estresse emocional de uma pessoa. Porém, não se restringe à decepções amorosas e pode ser causado por diferentes cenários da vida do paciente. As maiores causas da síndrome são: luto, problemas financeiros, discussões familiares, abuso psicológico e sexual.
A cardiologista explica que o choque e o despreparo em relação a essas situações ativa o sistema nervoso autônomo simpático, que libera hormônios estressores, eleva a frequência cardíaca e respiratória e pode lesar o coração. Também chamada de miocardiopatia de Takotsubo, recebe esse nome, pois, em casos de estresse, o coração pode tomar forma de “takotsubo” – pote japonês que tem fundo arredondado e pescoço estreito.