*Imagem de Capa: [Divulgação/Atlético Sorocaba]
A Coreia do Norte, o país mais fechado do mundo, desperta curiosidade por diversos motivos. Os mistérios prevalecem durante os mais de 70 anos de comando da dinastia Kim, ditadura que já deixou milhões de mortos e não deixa escapar para a comunidade internacional muitos detalhes do que acontece dentro de suas fronteiras.
Passando por ela, sem dúvidas, reside um mundo diferente, tanto no âmbito político quanto cultural e social. Uma nação onde os líderes são cultuados como deuses, a conexão à internet é extremamente restrita, assim como a possibilidade de turismo no país. Apesar de todas as diferenças, os norte-coreanos compartilham uma paixão com o resto do mundo: o futebol.
Quando falam que o futebol une, não é brincadeira. E uma história inusitada de 2009 comprova isso: naquele ano, um time do interior de São Paulo acabou tendo contato íntimo com a modalidade norte-coreana do esporte, jogando bola na capital Pyongyang, contra a seleção do país. Foi o Atlético Sorocaba, e é claro que um evento excêntrico como esse é cercado por particularidades. Algumas são mitos, outras, verdades. Mas a história que ficou para muitos é a de que, naquele amistoso, o modesto clube sorocabano foi confundido com a seleção brasileira.
Para contar essa história, e verificar o que existe de verdade nela, o Arquibancada conversou com Klayton Scudeler, goleiro do Atlético Sorocaba naquela partida emblemática. Além dele, ouvimos o estudante de jornalismo Lenan Cunha, que já esteve na Coreia do Norte, é criador do blog Futebol na Coreia do Norte – em viagem oficial a convite do governo coreano – e faz parte do grupo brasileiro Centro de Estudos da Política Songun, que estuda o país asiático.
Antes de tudo, o porquê desse jogo
O fato do time paulista pisar nas terras do líder Kim Jong Un passa, primeiramente, pela figura do líder religioso Sun Myung Moon, conhecido como Reverendo Moon. Nascido antes da divisão das Coreias, defendia a causa da reunificação e fundou a Igreja da Unificação, que angariou milhões de seguidores ao redor do mundo. Na década de 1990, estabeleceu raízes no Brasil, comprando terreno no Mato Grosso do Sul e se envolvendo em boatos bizarros, como o de que servia vinho misturado com o próprio sangue aos fiéis. Com tudo isso, Moon ainda teve tempo para se apaixonar pelo futebol, e decidiu investir no Atlético Sorocaba – clube do interior paulista – no início dos anos 2000.
O dinheiro deu resultado: o clube recebeu estrutura, um Centro de Treinamento (CT) de qualidade e, em 2003, chegou a disputar a primeira divisão do estadual. Nesse contexto, Moon montou um plano mais ambicioso, de fazer o Atlético Sorocaba furar as fronteiras mais fechadas do mundo e jogar por lá. Apesar de anticomunista, Moon tinha boa relação com o governo norte-coreano e, em 2009, conseguiu o sonhado amistoso com a seleção da Coreia.
No país oriental, o futebol também ascendia. A seleção nacional se classificava para a Copa do Mundo do ano seguinte, que aconteceria na África do Sul. A última vez que a Coreia tinha jogado uma Copa havia sido em 1966, quando alcançaram as quartas de final. Assim, o jogo contra o Atlético seria uma preparação para o mundial, e o time de Sorocaba tomou viagem rumo à capital Pyongyang. E, se o destino já trazia tensão, o avião não contribuiu. “Nós fomos até a China – única via de acesso aéreo à Coreia do Norte – e tivemos que pegar um voo com avião próprio deles. Eu me lembro que foi um voo bem intenso, porque era um avião bem antigo, bem pequeno. Nós chegamos a ver trincas na parte interna do avião, e até alguns remendos que me pareciam ser de durepoxi”, relembra Klayton.
Chegando lá, a delegação do Atlético também passou por alguns procedimentos de segurança, além de – não espontaneamente – prestar reverência ao monumento da estátua de Kim Il Sung, primeiro líder, avô do governante atual Kim Jong Un. Klayton conta: “A primeira coisa que tivemos que fazer foi isso. Nós saímos do aeroporto, entramos no ônibus e fomos até esse monumento fazer reverência, e o representante da nossa delegação deixou um levar um buquê de flor no pé dele”.
“Nossas bagagens foram revistadas uma a uma, tivemos os celulares confiscados e também os passaportes. Eles descobriram compartimentos no meu notebook que nem eu sabia que existia”, explica Klayton sobre a revista que, pelo visto, não era suficiente, já que a delegação sempre foi acompanhada por agentes do governo durante a estadia. “Sempre tinha alguém próximo a nós, sempre alguém acompanhando, alguém do governo. Tanto no hotel quanto na rua. Sabe aquela sensação de quando tem alguém vigiando? Sempre tinha, e isso era nítido. Apesar de não ter ninguém fardado, pessoas com vestimentas comuns estavam sempre acompanhando a gente”.
O dia do jogo, de dentro do campo
Após dias de passeios, que se restringiram a pontos de culto aos líderes e de celebração da história e ideologia norte-coreana, chegou o dia do jogo. E o time não precisou se aproximar muito do estádio pra perceber que aquele não era um dia normal. Os atletas, que, em seus jogos lá em Sorocaba, não estavam acostumados a jogar para multidões, tiveram o ônibus recepcionado por milhares de pessoas.
Klayton foi o primeiro a pisar no gramado do imponente estádio Kim ll Sung, e a surpresa foi grande: o elenco tinha realizado um treino no local no dia anterior, e sabia da capacidade de 80 mil pessoas do estádio. Mas, em nenhum momento, eles pensaram na chance de todas essas cadeiras estarem ocupadas. “Eu peguei o túnel de acesso e fui [ao campo]. A hora que eu cheguei, olhei pra frente, para os lados, para trás, e vi que estava extremamente lotado. Eu voltei para o vestiário, chamei um amigo meu e falei: cara, o negócio tá lotado, não tem onde sentar mais”. O espanto foi justificável: além das 80 mil pessoas de dentro, outras 30 mil não conseguiram entrar no estádio.
Outra surpresa estava no painel eletrônico: “Nós entramos em campo e lá estava a sigla BRA, de Brasil, e não do Atlético”. O estádio abarrotado, e o clube sorocabano vestindo amarelo – cor oficial do clube – completaram a interpretação de que, para todos ali presentes, se tratava não de um modesto time de Sorocaba, mas sim da gloriosa seleção brasileira em campo. Klayton e os jogadores só ficaram sabendo disso após o jogo, e ele defende essa versão: “A gente não tava sabendo de nada disso durante a partida. Mas é verídico, eles passaram que era a seleção brasileira que ia jogar contra a seleção norte-coreana”.
De todo modo, a partida aconteceu normalmente. Muito se fala sobre um possível receio do time brasileiro de vencer o time coreano dentro de seu país autoritário. Apesar de não saberem o que podia acontecer em caso de vitória, Klayton garante que o time entrou disposto a ganhar o jogo. “Quando você é atleta e entra em campo, você não pensa muito, né? Você quer ganhar, fazer um bom jogo, se destacar. Era uma grande oportunidade, muita gente vendo, então você tem que se apresentar bem”.
Ele confessa que o resultado de 0 a 0 foi, de certa forma, um alívio: “Depois que acabou o jogo, nós comentamos que o resultado foi bom. Se tivéssemos vencido o jogo, sei lá o que podia nos acontecer! Éramos em trinta contra um país inteiro”.
Porém, essa multidão que acompanhava a partida não era nada hostil. Pelo contrário, o que prevalecia durante o jogo era um silêncio sepulcral, que, para quem está acostumado com a barulhenta torcida brasileira, assustava. “80 mil pessoas, mas era um silêncio absurdo. Parecia até que eles eram proibidos de ter reações, sabe? Também não sei se é uma questão cultural. O máximo que eles se exaltavam assim era quando a seleção norte coreana chegava próxima ao gol, e aí você escutava um burburinho. Mas no restante da partida não se tinha um grito, um nada”, explica Klayton. “Os mil torcedores do Atlético que viam a gente jogar lá em Sorocaba faziam mais barulho na época”.
O time que entrou em campo tinha como base a seleção norte-coreana que, no ano seguinte, disputou a Copa na África do Sul. Dessa vez, enfrentaram realmente a seleção brasileira, quando perderam por 2 a 1.
Afinal, foi um jogo forjado?
Claro que a história de que o governo forjou um amistoso com uma grande seleção para valorizar o esporte em seu país é muito atrativa e curiosa. E, apesar dos elementos que realmente davam a entender isso, e da impossibilidade de apurar o que aquelas 80 mil pessoas sabiam e não sabiam sobre o evento, não é possível afirmar que se trata de uma partida forjada.
Lenan, que pesquisou o caso a fundo, responde resoluto: “Não. Não foi um jogo forjado”. Em sua matéria sobre a partida, o estudante localizou imagens da transmissão oficial norte-coreana desse jogo, que dão maiores detalhes sobre como a partida foi apresentada à população.
O placar no topo da tela, assim como o painel eletrônico, realmente indicava RPDC (República Popular Democrática da Coreia) x Brasil. Porém, no decorrer do jogo, é possível ouvir os narradores dizendo o nome da equipe sorocabana, como observado por Lenan. “Durante a narração da partida se falava 아틀레티코 소로카바 (Atlético Sorocaba) e, nos informes pré-jogo, os noticiários falavam de ‘equipe brasileira’ e não ‘seleção nacional do Brasil’. A impressão que se passou no estádio foi de que era realmente a seleção brasileira, por conta do placar. Acredito que a maioria sabia que era uma equipe brasileira, pois, se nos informes pré-jogo estava o nome do Atlético, creio que no ingresso também. Talvez alguns tenham pensado que seria uma equipe de renome no Brasil, mas se perguntamos a um norte-coreano sobre equipes brasileiras dificilmente sai um ‘Atlético Sorocaba’, o que me leva a crer que imaginavam que não era uma grande equipe, embora naquele dia tenham feito uma boa partida”.
Outro fator que indica que o Atlético tenha sido confundido com a seleção canarinha foi enorme interesse na partida, que levou 110 mil pessoas ao Estádio Kim Il Sung. Lenan, por outro lado, explica que a euforia para o jogo se dava pela empolgação da torcida com a classificação para a Copa de 2010: “Aquele momento em si era especial, porque a seleção vivia uma boa fase. Além disso, em jogos grandes de fim de semana, ou feriados nacionais, os estádios costumam lotar mesmo”.
Contudo, é inegável que existe margem para interpretar o jogo dos dois modos. Em um país de informação restrita, com a camisa amarela e o letreiro indicando Brasil, é provável que muitos tenham entendido como a seleção brasileira. Lenan concorda: “Dá total margem para se interpretar dessa forma, ainda mais para a mídia estrangeira em geral. Por vários eventos relacionados com a Coreia do Norte – não necessariamente só do futebol – percebi que eles muitas das vezes não tomam devidos cuidados e deixam margens para dúvidas aos que observarem superficialmente a coisa”.
Naquela época, é muito difícil de avaliar o que aquele público sabia sobre o futebol brasileiro. Mas, nos dias de hoje, os norte-coreanos já têm muito mais informação do que se imagina. Desde 2015, um dos poucos canais de TV estatais norte-coreano é voltado para esportes. E até jogos de times brasileiros são noticiados. Nesse trecho, encontrado por Lenan, vemos imagens de partidas de São Paulo, Fluminense, e até um Fortaleza contra América-MG.
O futuro dos dois times
Após o jogo, o andar da carruagem não foi positivo nem para a seleção coreana, nem para o Atlético Sorocaba. Com a morte do Reverendo Moon, em 2012, o time foi perdendo investimento e, hoje, está com as portas fechadas. Não sem antes viajar mais três vezes à Coreia, a última em 2015. Hoje, por conta de uma sequência de lesões, o goleiro Klayton, bem sucedido na missão de frear o ataque coreano em 2009, também deixou o futebol.
O Atlético ainda teve dias bons em 2012, quando retornou à elite do futebol paulista, sob comando técnico de Fernando Diniz, hoje treinador do São Paulo. O time ainda contava com Luan, que hoje é o “menino maluquinho” no Atlético-MG.
Em 2014, seu moderno CT ainda serviu para a Copa do Mundo realizada no Brasil. Porém, foi também o ano do novo rebaixamento do Atlético. Com o corte de recursos da igreja norte-coreana, o clube fecharia as portas no ano seguinte.
Já na Copa da África, o saldo daquela seleção norte-coreana foi bem negativo. Apesar de perder apenas de 2 a 1 para o Brasil na estreia, a Coreia do Norte foi derrotada nos outros dois jogos, com um sonoro 7 a 0 para Portugal, além de um 3 a 0 para a Costa do Marfim. Foi noticiado, inclusive, que esse fracasso custou uma sessão de humilhação pública de seis horas para os atletas e o técnico Kim Jong-Hun.
Mesmo com o resultado negativo, Lenan garante que o futebol segue forte, sendo um dos três esportes mais populares do país, estando atrás do taekwondo e do tênis de mesa – o que confirmou em sua viagem à Coreia.
O jovem também diz que não houve uma queda de interesse dos norte-coreanos pelo futebol após 2010. Tanto que sonharam com uma vaga na Copa de 2018, na Rússia: “É evidente que ficaram decepcionados com o desempenho da seleção naquela Copa, mas ainda hoje se lembra toda a façanha daquela equipe nas eliminatórias. Foi um grande feito, já que a seleção não disputava o mundial desde 1966 (quando eliminaram a Itália). Percebi que a decepção maior foi não terem conseguido a vaga para a Copa do Mundo de 2018”.
Mesmo com esses baldes de água fria, os torcedores ainda acreditam na evolução do futebol local. “O que posso dizer é que os norte-coreanos não perderam a esperança em sua seleção e demonstram confiança de que conseguirão novos feitos”, explica Lenan. E isso não é só uma crença sem fundamento, uma vez que a Coreia do Norte direciona investimentos no desenvolvimento do futebol. “Há investimento em escolas de futebol em várias partes do país, bem como no melhoramento das estruturas de treino”, destaca o estudante.