Por Pietra Carvalho
Trigésima oitava rodada do Campeonato Brasileiro. Todos os jogos seriam realizados ao mesmo tempo. Às 16 horas do domingo. Dia 2 de dezembro de 2007. O São Paulo já havia se consagrado campeão há quatro rodadas e, no momento, era outra a disputa que agitava as manchetes esportivas. O Corinthians, com uma das maiores torcidas do Brasil, estava ameaçado pelo rebaixamento e dependia de uma combinação de resultados para se manter na elite do futebol nacional.
Não eram tempos fáceis para o fiel torcedor. Anos antes, graças à parceria com a MSI — Media Sports Investment, empresa de investidores internacionais — foram feitas contratações de peso, como os argentinos Tevez e Mascherano e o promissor atacante Nilmar. Os reforços resultaram na campanha brilhante de 2005, com a conquista do tetra brasileiro. Outrora passando pela mediocridade, o Corinthians entrava em sua fase “galáctica” e até mesmo o fanático presidente Lula fez questão de uma fotografia em meio ao elenco.
Mas nem mesmo os investimentos estrangeiros, concentrados na figura do iraniano Kia Joorabchian, foram suficientes para evitar um fenômeno comum aos times que se destacam nos campeonatos do Brasil. Propostas milionárias vindas de times da Europa seduziram as principais estrelas e, já no ano seguinte, os corintianos tiveram que encarar uma nova realidade, com posições intermediárias em todos os torneios disputados.
O desmanche ganharia contornos ainda mais dramáticos. Kia e Alberto Dualib, que monopolizou a presidência do clube de 1993 até pouco antes da queda, tiveram a relação desgastada em uma disputa pela última palavra nas decisões. Em 2007, o rompimento da parceria custou muito aos cofres do Corinthians, com uma multa rescisória de 25 milhões de dólares. Além disso, a MSI foi acusada de lavagem de dinheiro em parceria com os dirigentes do time paulistano, que passava a integrar as páginas policiais.
A crise interna política não ficou isolada, e as consequências da falta de um projeto começaram a se agravar. Foram quatro treinadores em um ano e resultados pífios no Campeonato Paulista e na Copa Sul-Americana. Naquela edição do Brasileirão, foram 14 derrotas, 14 empates e 10 vitórias. As 24 vitórias de 2005 faziam parte de um passado remoto. Na última rodada, Goiás e Paraná também lutavam contra o rebaixamento para a segunda divisão. Apenas um se salvaria.
Eram os jogos dos desesperados. Com pouco tempo de jogo, o Paraná teve um jogador expulso, no embate com o Vasco. Era o nascer de uma esperança que não foi alimentada pelo Corinthians. Com 1 minuto e 10 segundos de bola rolando, o nó na garganta do torcedor se embolou um pouco mais: Jonas marcava para o Grêmio, o adversário daquela partida decisiva.
A única referência corinthiana que tive em minha vida era a minha mãe. Filha de um palmeirense doente, afilhada de são-paulinos fanáticos, cresci ouvindo as piadas infames sobre a falta de uma Libertadores. Vi derrotas muito doloridas, das mais diversas. A do Corinthians para o Sport na final da Copa do Brasil, as eliminações em Libertadores para o Flamengo e para o Tolima, a queda diante do Santos no Paulista de 2011. Estar alcançando o topo e ter de recuar alguns passos, entretanto, não se assemelha em nada à queda livre para a série B.
O gol de Jonas me ensinou muito sobre o amor ao futebol, pois jamais tinha acessado o quão incondicional e ilógico era o sentimento por um clube. Aos 10 anos, senti uma dor física pelas projeções prestes a se cumprir. E da sala, ouvia os risos incontidos de um pai que não se continha diante da derrocada do principal rival. “Todos amam odiar o Corinthians”, eu pensava (talvez não de forma tão educada, mas esse é um texto apropriado a todas as faixas etárias).
Queria crer na capacidade de reação do meu time, mas o elenco parecia apático diante da urgência da situação e, ao procurar possíveis heróis contra o rebaixamento,via em campo… Finazzi — o tipo de lembrança que me faz vacilar antes de criticar os tempos de Romero.
Os gremistas comemoravam como se fosse o gol do título, os goianos davam um suspiro de alívio. E, já acostumada a sentimentos pouco simpáticos, sentia que o Internacional pouco se esforçaria para superar o Goiás, ainda mais depois de amargarem o vice em 2005, sob condições polêmicas.
O goleiro Felipe, um dos poucos destaques positivos do alvinegro paulista, era a única razão para um resultado enxuto, já que os lances ofensivos vinham quase sempre do Grêmio. No Centro Oeste, às 16h30, o Inter fez o que eu menos esperava: abriu o placar na Serra Dourada, não arrancando muitos sorrisos nem dos colorados, mas dando combustível aos hinos cantados pelos corinthianos em Porto Alegre. Só que, não disposto a seguir os passos do Corinthians acuado em Porto Alegre, o Goiás colocou pressão em seu jogar e logo depois arrancou o empate. Em mais uma das alegrias passageiras daquela tarde.
Se existe alguma verdade na máxima do “quem não faz, toma”, ela se fez valer naquele momento. Em que Clodoaldo, apesar dos esforços corintianos para perpetuar a derrota, balançou as redes do Estádio Olímpico e igualou o placar. No intervalo, diante do cenário que se apresentava, o Corinthians estava salvo. Era um empate com gosto de vitória. Ainda mais quando, logo no início do segundo tempo, o Paraná sofreu três gols que cravaram seu rebaixamento. Agora, a disputa se centralizava em dois elementos: Corinthians e Goiás.
Meu pai tem uma mania que não herdei ao assistir futebol. Fica repetindo “Meu deus, que cara grosso” a cada demonstração de inabilidade de algum atleta. Talvez por ter convivido com aquele Corinthians de 2007, aprendi que comentários do tipo eram redundantes. O baixo calão era a única possibilidade eficaz e necessária naqueles momentos. Infelizmente, não pude evitar suas exclamações naquela tarde, de um descontentamento não tão descontente, diante do fraco desempenho corintiano.
Não estava surpresa ou pensando na qualidade do futebol jogado, apenas apelava a todos os santos que aqueles 45 minutos passassem como 5. O tempo, contudo, não acelerou, e, em Goiânia, o juiz marcou um pênalti contra o Internacional. A todos aqueles que alimentam a polêmica da relação entre o Corinthians e a arbitragem, ela nunca foi tão desarmoniosa quanto naquela ocasião.
Paulo Baier, veterano aposentado em 2016, que já tinha perdido um pênalti contra o Timão em 2007, foi quem cobrou. E perdeu. Mas antes mesmo que agradecêssemos às forças superiores, o bandeirinha apontou o goleiro do Inter adiantado, e a penalidade foi cobrada pela segunda vez. Abalado psicologicamente, Baier decidiu ceder a segunda chance a Elson, que converteu, às 17h38.
A relação com o tempo é muito particular e se inverte de maneira muito abrupta. Em questão de minutos, nunca desejei tanto que o relógio congelasse, mas ele parecia correr na velocidade da luz. Até Felipe foi para a área gremista, em um gesto típico de um time de desesperados. Foi a coroação de uma série de erros administrativos. Foi o momento mais baixo da história do Corinthians, que representou também a abertura de portas para uma reestruturação, mesmo por vias um tanto polêmicas, personalizadas em Andrés Sanchez — figura nada unânime entre torcedores e direção do clube. Em uma ascensão meteórica, menos de 5 anos depois, o Timão conquistava a América.
A visão política e relativista das coisas pouco passava pela cabeça de uma pequena torcedora de 10 anos, e acredito que também não era preocupação dominante da maior parte da Fiel. Enfrentamos a queda com dignidade, só que era impossível calar os gritos ofensivos ecoando na vizinhança. No cômodo vizinho. No apito do celular. Era impossível fechar os olhos às manchetes que lotavam os jornais, ensurdecer o destaque dos noticiários esportivos dos dias seguintes. Era impossível fingir um calendário diferente do determinado para 2008. Era preciso sentir a realidade da série B, e não se apequenar diante dela.
Mesmo depois das glórias, ainda amargamos um suposto triunfo dos rivais são paulinos: o de nunca terem sido rebaixados. Continuo a ouvir o chavão do “time gigante não cai”. A grandiosidade limitada a uma temporada. A típica provocação vazia.
Não fui representada pelo desempenho amador de Finazzi, nem pelas lágrimas —creio sinceras— do zagueiro Betão, integrante do Corinthians desde os tempos de MSI. Não porque os condeno individualmente, mas porque eles não são o objeto da torcida. Os gritos, o choro, a decepção, o aperto e a sede de recomeçar, é tudo pelo símbolo na camisa. Aliás, para além daquele brasão, a miscelânea de sentimentos vai para uma entidade inexplicável que apenas um aficcionado por futebol pode entender.
Quem derrubou meu time? A MSI, Dualib, Finazzi, o técnico Nelsinho Batista, o juiz, o bandeirinha, o Inter, o Goiás? Todos juntos? Pouco importa. Uma derrocada do tipo não tem seu desfecho em uma narrativa maniqueísta, com apenas um vilão e um mocinho. O Corinthians não foi vítima. E a partir do momento em que começou a encarar, mesmo com falhas, a seriedade de construir um projeto que condissesse com o tamanho de sua marca, e seu valor para a torcida, barreiras foram superadas.
Mesmo diante de outra diretoria duvidosa, tradição de uma gestão de clubes pouco empresarial, a Fiel continua a articular seus cantos. A massa que se reúne em prol dessa mesma paixão, em toda sua quantidade e vontade, é nela que mora a grandiosidade do Corinthians.
“Eu nunca vou te abandonar
Porque Eu te Amo
Eu sou Corinthians”