Por Caio Mattos e Renato Navarro (renatonavarro@usp.br)
Restavam apenas nove minutos mais os acréscimos. Falta pela lateral direita, próxima à grande área pontepretana. Zé Maria vai para a cobrança. Bola alta na grande área. Basílio tenta de cabeça. Vaguinho chuta a sobra. Na trave. De cabeça, Wladimir no rebote. No zagueiro. Pegou Basílio de primeira. Gol.
23 anos em 7 segundos: O gol da história de um clube.
Dulcídio apita o fim do jogo, e o Corinthians é pela 16ª vez campeão paulista. Mas este não é mais um texto sobre a vitória corintiana. A pauta é a perda do time de Campinas.
A Associação Atlética Ponte Preta, equipe tradicional de Campinas, contava com uma de suas melhores gerações em campo — a melhor de todas para grande parte da torcida. Considerada favorita para muita gente, especialmente por causa da qualidade técnica de seu esquadrão, a derrota é sentida até hoje.
Para compreender melhor aquele período e a aura que cercava os profissionais e torcedores que vivenciaram a decisão, o Arquibancada conversou com pontepretanos envolvidos de diversas formas nesse episódio emblemático.
Geraldo Tadeu, torcedor
Aos 56 anos de idade, o aposentado Geraldo Tadeu Pozo é apaixonado pela Ponte Preta desde a infância. Seus pais eram torcedores moderados, diferentemente de seu irmão, que levava o menino consigo para o Moisés Lucarelli nos dias de jogos.
Com 16 anos na época, Geraldo se recorda muito bem da expectativa que tinha para com a Macaca, que, além de um grupo entrosado, apresentava diversos talentos individuais, formando não só o melhor time do Paulista de 1977 mas de toda a história da Ponte, em sua opinião. “Ela era favorita, pois além de ter jogadores talentosos que se destacavam no cenário nacional — Carlos, Oscar, Polozzi, Odirlei, Rui Rei — tinha um tripé no meio de campo formado pelo experiente Vanderlei, o maestro do time, Dicá, e um Marco Aurélio que desempenhava diversas funções dentro do campo”, diz.
Geraldo conta que a tensão envolvendo não só a Ponte, mas também o Corinthians, era enorme. Se por um lado tinha a qualidade e o jogo bonito a favor, o outro contava com a cobrança de uma enorme torcida e dos meios de comunicação. “A imprensa paulistana estava fazendo uma pressão absurda… No estádio, a torcida do Corinthians, por ter praticamente 100% das acomodações do Morumbi, acabou criando um clima de agora ou nunca em cima deles. Se eles não ganhassem daquela vez, não sei o que poderia ter acontecido no estádio e também fora dele, mesmo a Macaca sendo reconhecidamente superior. No segundo jogo, no qual a Macaca venceu, o clima fora do estádio após o jogo foi de uma total preocupação. Torcedores e a imprensa da capital ficaram com aquela sensação de que mais uma vez a vaca iria pro brejo… Havia um clima muito tenso lá em São Paulo e muito confiante aqui em Campinas para a decisão, no terceiro jogo”, relembra.
Campinas, aliás, acabou não sediando a final devido à capacidade do Moisés Lucarelli. Segundo Geraldo, o estádio seria fundamental para uma conquista. “Eu nunca tive dúvidas que seria diferente sim se tivesse um jogo aqui em Campinas, pois naquela época a Macaca não perdia em casa mesmo. Os jogadores jogavam por música, e nos jogos aqui a torcida era fantástica. O clima no Moisés era indescritível em jogos da Macaca. Naquele mesmo campeonato, a Macaca já havia vencido o próprio Corinthians por 4 a 0 em um jogo do primeiro turno no Moisés Lucarelli.”
A polêmica envolvendo o mando de jogo não foi a única a qual Geraldo acha que a Ponte foi prejudicada. Ao seu ver, a saída de Rui Rei para o Corinthians meses após a final foi estranha. “Muitos até hoje falam que foi normal a negociação, mas para mim foi a confirmação de uma suspeita que se tornou verdade: ‘Pagamento por serviços prestados’”, afirma. A atuação do árbitro Dulcídio Boschilia no último jogo também levanta suspeitas: “Para mim, até hoje acredito em encenação dos dois… Até hoje não engulo essa expulsão. Valia tudo para sair da fila. Para mim, Dulcídio e Rui Rei estavam ‘comprados’.”
Vanderlei Paiva, meia e capitão
Vanderlei Paiva chegou na Ponte Preta em junho de 1976, com 27 para 28 anos. “Naquela época, com 27 para 28 anos, eles falavam que a gente tava praticamente na descendente”, recorda. Mas, a experiência de Vanderlei, que fora campeão brasileiro em 1971 pelo Atlético Mineiro, foi importante no seu papel como capitão da equipe.
“Confesso para vocês que foi a maior frustração da minha vida. O vice-campeonato em 1977. Isso me frustrou muito como atleta profissional”, assume. “A equipe da Ponte era infinitamente superior. Nós jogamos sete vezes contra o Corinthians. Ganhamos cinco. E perdemos as duas que não poderíamos ter perdido”, completa.
O reconhecimento daquela equipe, por outro lado, o anima: “É um negócio gratificante para a gente que participou dessa jornada. Se você perguntar para qualquer um aqui, eles vão dizer a escalação da Ponte do 1 ao 11. Só que a Ponte não tinha somente do 1 a 11. A Ponte tinha um elenco.” Vanderlei então relembra o jogo contra o Palmeiras ainda na fase regular da competição: “O último jogo da fase de classificação foi contra o Palmeiras, em São Paulo. A Ponte se deu ao luxo de poupar quase a totalidade dos titulares. A Ponte foi lá e ganhou de 1 a 0.”
Ao comentar sobre a experiência em jogar aquela decisão, Vanderlei lamenta a falta de imersão na decisão: “Naquela ocasião, quem tinha disputado título até então eram poucos jogadores”. Vanderlei complementa: “Não deixaram a gente vivenciar. Vivenciar o clima do jogo. Você não pode se omitir. Se você vai pra guerra, você tem que levar um revólver, pelo menos. E você ir pra guerra, e não saber o que tá do outro lado… Não conviver com aquilo que você vai enfrentar é meio complicado. É meio cruel. E isso aconteceu.”
Vanderlei tem cautela ao falar sobre Dulcídio: “É muito difícil você falar de uma pessoa que não pode se defender. O Dulcídio já morreu.” O ex-capitão reproduziu então a conversa que teve com o falecido árbitro no terceiro jogo:
“O Dulcídio falou comigo: ‘Vanderlei, vocês não vão fazer comigo o que fizeram com o Romualdo’, que ele achou que a gente tinha pressionado o Romualdo [no jogo anterior]. ‘Se fizer, eu mando para fora por isso, por isso, por isso…’. Eu falei: ‘Calma. Um minutinho só. Você não vai falar nada com o pessoal do Corinthians?’ […] ‘Calma, calma, vamos pro jogo’. Não adianta brigar com ele antes do jogo”. Vanderlei se recusa a afirmar se Dulcídio tinha sido comprado: “Não digo também que houve dinheiro. Não vou afirmar isso, porque não tenho certeza.”
Vanderlei também defende seu ex-companheiro de equipe Rui Rei, muito acusado de ter forçado a sua própria expulsão no último jogo. “O Rui foi vítima da maneira de viver dele. Até hoje, se você encontrar o Rui na rua e olhar o Rui conversando com uma outra pessoa a dez metros, você vai achar que ele tá brigando com a pessoa. É a maneira dele de ser. Ele é extrovertido. E ele foi vítima desse tipo de coisa”, argumenta. O capitão ainda reafirma sua opinião: “Eu defendo e vou defender ele até o final com unhas e dentes, porque eu conheço a índole dele. Ele seria incapaz de fazer o que alguns julgam que ele fez.”
Peri Chaib, diretor de futebol
Peri Chaib era diretor da Ponte e testemunhou de perto os bastidores daquela final. Ele fez questão de se apresentar com a constatação de que “Rui Rei não se vendeu.”
Para defender isso, Peri deslocou o cerne da questão para Dulcídio. O ex- diretor comparou a final de 1977 ao tetracampeonato do Gazeta na várzea campineira. A relação se concentra em dois pontos: a influência dos bastidores na arbitragem e a rigorosidade dos apitos. “Dulcídio [tinha o] gênio igual ao do Brandão [árbitro na Liga Campineira]”. Peri desenvolve: “[Certa vez] O Brandão disse: ‘Cuidado comigo no jogo’. Deu doze minutos de jogo, ele marcou uma falta. O jogador falou ‘Oh, Brandão, não foi’. Rua pro jogador.”
Percebe-se uma semelhança com o árbitro paulista e com o cenário do terceiro jogo. Dulcídio, segundo Peri, “foi industriado e preparado pelo Corinthians para expulsar Rui Rei e Dicá”. Peri tinha os alertado antes do jogo, na boca do túnel. “Falei: ‘No último jogo, vocês dois fizeram os gols. Vocês dois estão manjados para ser expulsos. Cuidado’.”
Peri, entretanto, acredita que Dulcídio não se vendeu. “Não estava vendido. Entrou em parte política”, revelando um suposto “quebra galho” que se faria ao também PM, o qual teria cinco processos por comportamento violento.
Ele ainda relembra que teve uma relação muito amigável com Dulcídio que datava desde antes daquela final, quando Peri foi julgado pelo seu comportamento — e Dulcídio o defendeu — no jogo da segunda rodada daquele Paulista contra o Palmeiras, e que perdurou após a perda do título: “Ficou meu amigo. Meu amigo de fé muitas vezes. […] Eu nunca achei que o Dulcídio era venal. Não foi isso que fez a Ponte perder. Foi a pressão que foi impossível de segurar.”
O ex-diretor retoma a questão da pressão sofrida pelo time diversas vezes ao longo da entrevista. Ele comenta como o presidente do Corinthians apareceu na televisão, após o segundo jogo, para “reacender a chama corintiana”. A solução para Peri foi esconder o time das câmeras, levando-o para uma colônia de férias. O diretor chegou a cogitar levar o time de helicóptero para o Morumbi no terceiro jogo, mas a comissão técnica vetou, pensando na desconforto para os jogadores.
Até mesmo ao buscar a água na fonte Santa Tereza, em Valinhos. Por lá, tinha passado uma van do Timão, que também buscara água na mesma fonte. A pressão estava em todos os lugares. Peri brinca, até certo ponto: “Ai se eu soubesse que o Corinthians ia buscar água no mesmo lugar. Essa água poderia… né?! Mas nem eles fizeram nada na nossa água, nem nós na deles. Mas era um handicap favorável.”
A forte presença de PMs também foi criticada por Peri: “O chefe do policiamento foi na concentração do São Paulo, onde a Ponte estava, querendo entrar e explicar aos jogadores se houvesse invasão de campo. Tentou amedrontar. Falei: ‘Aqui você não vai falar isso. Eu sou o chefe da delegação e você não vai falar isso’”. Ele descreve o cenário de pressão: “Os jogadores saiam da concentração para ir ao vestiário e tinham oito PMs juntos no elevador. Oito PMs. Não é proteção. É Coação.”
Sobre a derrota, Peri lamenta: “Eu achei que seria difícil depois de tudo que sofremos lá… Seria difícil a Ponte ser campeã novamente. Eu achei porque nós fizemos o possível e o impossível para segurar os jogadores a nível de seleção e manter o time bom. Mantivemos no ano seguinte. O time que disputou o Campeonato Paulista de 81 era muito bom, mas não tinha a experiência necessária para ser campeão.” Embora fique orgulhoso, assim como Vanderlei, por nunca ter visto “um vice-campeão ser tão bem comentado como aquele da Ponte.”
Uma hipotética realidade formada a partir do título da Ponte foi projetada pelo ex-diretor: “A Ponte iria virar time grande. Tinha mentalidade para isso. O título daria um status. A Ponte teria mais dinheiro, mais patrocínio e mais imprensa em cima.”
O exemplo de administração daquela Ponte Preta, que conseguiu formar um grande time e segurar por muito tempo jogadores de seleção como Carlos e Oscar, foi comentado por Peri. O ex-dirigente aponta o então técnico Zé Duarte e Cilinho (Otacílio Pires de Camargo) como fundamentais na construção do time da Macaca de 1977.
Ao ser perguntado sobre o comportamento da mídia na cobertura da final, Peri desabafou: “A mídia deveria ter transmitido algo no sentido de melhorar o futebol brasileiro. Melhorar a técnica. Muita gente da imprensa privilegiou a guerra, a raça, a pressão, quando deveria privilegiar, para o futebol brasileiro, a técnica.” A raça corintiana emanada tanto pelos jogadores quanto pela torcida foi, de maneira inegável, muito repercutida e valorizada pela mídia esportiva.
Stephan Campineiro, jornalista, historiador e torcedor
Nascido logo após à final de 1977, o autor dos livros “Ponte Preta: a torcida que tem um time” e “Mestre Dicá” não testemunhou o auge da equipe. No entanto, seu avô e seus primos pontepretanos o cativaram a torcer pela Macaca, acompanhando-o em suas primeiras idas ao estádio.
Stephan conta que, sem ter condições de disputar financeiramente com os times da capital, os rivais campineiros utilizaram os talentos revelados por suas bases para formar algumas das equipes mais fortes de suas histórias. Os resultados não tardaram a aparecer. Em 1978, o Guarani foi campeão brasileiro com nomes como Zenon e Careca, crias do time. A Ponte, por sua vez, já vinha mantendo seus talentos desde 1974 e reforçou essa equipe entrosada com uma importante dupla de meio-campistas: o experiente Vanderlei Paiva, vindo do América de Rio Preto, e Dicá, maior jogador da história do time, que retornou após passagem pela Portuguesa.
Apesar do grande futebol apresentado pela Ponte, sua campanha não foi linear: “A campanha no Paulista de 1977 teve seus altos e baixos, mas em sua segunda metade o desempenho do time se estabilizou em um alto nível”, pontua Stephan. Com diversos jogadores que facilmente figuram na seleção do melhor time pontepretano de todos os tempos, tecnicamente a Macaca era uma equipe melhor que o Corinthians. Porém, por causa da cobrança dos torcedores e da imprensa rondando o rival, o jornalista é claro: “a Ponte chegou na final com o único time que não podia”.
Dentre as histórias que rondam aqueles jogos, ele crê que apenas uma de fato prejudicou deliberadamente os jogadores: o alerta da Polícia Militar para que, em caso de confusão, ele permanecessem juntos e corressem para a saída, pois corriam risco. “Um aviso desse tipo deixa os jogadores preocupados desde o início, é algo que não é necessário ser dito”, declara.
Quando perguntado sobre outras questões polêmicas, Stephan esclarece que nem todas fazem sentido. A primeira é o fato dos três jogos ocorrerem no Morumbi: “Não faz sentido a reclamação, pois desde o princípio, quando o regulamento da competição foi estabelecido, estava presente a condição de que o mando pertencia à Federação. Se alguém tivesse que se opor, isso deveria ser feito antes do início do campeonato.”
A reclamação quanto à arbitragem do terceiro jogo também não procederia, pois Dulcídio havia sido aprovado para apitar o terceiro jogo após o bom desempenho no primeiro, em que o Corinthians ganhou por um a zero e ele teve participação discreta.
Por fim, no que diz respeito à ida de Rui Rei para o Corinthians, Stephan esclarece que o próprio jogador era polêmico, falador e provocador. Além disso, os próprios ex-colegas defendem sua honestidade, pois um time não compraria um jogador que entregasse uma partida e comprometesse sua equipe.
Apesar da final de 1977 ser “a final de maior repercussão, pois nem finais de Copa do Mundo são tão faladas mesmo após 40 anos”, ela não foi a que o time chegou mais próxima de um título. Segundo o jornalista, na final do Paulista de 1981, contra o São Paulo, a Ponte não jogava contra um time tão pressionado. O Moisés Lucarelli não tinha a capacidade para receber a final, assim como em 1977. Logo, tentaram levar o jogo para o Brinco de Ouro da Princesa, estádio do Guarani. No entanto, o clube alegou que o gramado seria reformado nessa data, e o jogo foi realizado no Morumbi novamente.
Stephan é enfático: para ele, o fato do jogo ocorrer em Campinas poderia ter sido decisivo na segunda partida, assim como foi na conquista do Brasileiro de 1978 pelo Guarani. Porém, devido a não permissão do maior rival, a possibilidade não se concretizou.