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Tolero, mas não aceito

Por Rafael Castino (rafacastino12@gmail.com) e Victoria Martins (victoria.rmartins19@gmail.com) Quando pensamos em vício, as figuras mais presentes no imaginário social são as de bebidas alcoólicas e outras drogas psicoativas ilícitas. A todo momento, seja na televisão, na música ou na mídia, somos bombardeados pelas imagens que nos fazem associar esta pequena palavra às substâncias que, ao …

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Por Rafael Castino (rafacastino12@gmail.com) e Victoria Martins (victoria.rmartins19@gmail.com)

Quando pensamos em vício, as figuras mais presentes no imaginário social são as de bebidas alcoólicas e outras drogas psicoativas ilícitas. A todo momento, seja na televisão, na música ou na mídia, somos bombardeados pelas imagens que nos fazem associar esta pequena palavra às substâncias que, ao nosso ver, são as mais comuns no estabelecimento de comportamentos adictivos.

Conforme explica o psiquiatra Edgar Oliveira, especialista em dependência alimentar do Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso (PRO-AMITI) do Instituto de Psiquiatria do HC-USP, porém, “todo comportamento ou substância que nos traz prazer excita o nosso sistema de recompensa cerebral, e existem algumas pessoas, que têm alterações neurofisiológicas, nas quais essa excitação acaba acontecendo de uma forma excessiva”.

Desta maneira, entende-se que quaisquer ações podem ser a base para comportamentos viciantes, e que a adicção está inserida em um contexto muito maior que o senso comum da dependência química, tal como o texto do Laboratório explicita.

Ainda assim, o vício é uma situação sujeita a uma alta carga de julgamentos por parte dos diversos grupos sociais. Para os alcoólatras e usuários de drogas psicoativas, as estigmatizações acompanham suas vidas e a discriminação é constante. Porém, quando analisamos este comportamento, percebemos um nível mais profundo de preconceito associado ao vício – aquele destinado aos dependentes em substâncias que, ainda que reconhecidas como potencialmente viciantes, são encaradas como tabus.

Alimentos diversos, tecnologia, redes sociais, jogos, compras, sexo, todos estes se enquadram na definição supracitada. Ao mesmo tempo em que são vistos como comportamentos que podem causar vícios, são mais aceitos pela sociedade do que o alcoolismo, por exemplo. Neste sentido, acabam por, de um lado, fomentar uma tolerância institucionalizada, de modo que políticas públicas de auxílio aos seus usuários não sejam pensadas. De outro, como uma adicção em um deles é pensada como menor e mais facilmente evitável, um dependente passa por um preconceito velado, por ser considerado fraco demais a ponto de se deixar viciar.

Mais próximos de nosso cotidiano, os cigarros, o álcool, a dependência alimentar são bons exemplos. Em uma sociedade onde existem comportamentos que são, ao mesmo tempo, tolerados e discriminados, discutir os vícios socialmente aceitos é importante para que uma visão sobre as particularidades de cada adicção e, consequentemente, um pensamento sobre políticas públicas seja fomentada, afinal, ser legalizado não é sinônimo de ser inofensivo.

O cigarro: quem ganha com ele?

Atualmente, segundo a Vigitel (Vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico), 10,8% da população brasileira é fumante. Apesar de todas as tentativas de conscientização, como a proibição de campanhas publicitárias em mídias impressas ou digitais e o reconhecimento do produto como uma droga lícita, o governo nacional não chega nem perto da proibição do cigarro.

São 4.700 substâncias nocivas inaladas à cada tragada, e dentre elas encontramos a maior vilã: a nicotina. Responsável pela sensação de prazer, o elemento chega ao cérebro em no máximo 9 segundos, descarregando uma grande dose de dopamina. Com as mesmas proporções da elevação vem a queda: após meia hora, o “contentamento” passa, trazendo com ele a depressão e a fadiga. São necessárias doses cada vez maiores para alcançar a satisfação. A abstinência causa agressividade e nervosismo no usuário.

Os males do tabagismo são conhecidos. Pesquisas indicam que o cigarro está relacionado com 12 tipos de cânceres diferentes: boca, laringe, faringe, esôfago, pulmão, estômago, bexiga urinária, pâncreas, fígado, colo uterino, cólon e reto. Além da temida doença, esse tipo de vício também é responsável por problemas cardíacos como a angina e infarto do miocárdio, enfisemas pulmonares, bronquite, AVC (Acidente Vascular Cerebral), complicações na gravidez, aneurisma arterial, trombose vascular, úlcera do aparelho digestivo e impotência sexual masculina. Todos os prejuízos afetam também, em menor escala, os “fumantes passivos”.

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As carteiras de cigarros costumam trazer advertências do uso deste narcótico. (Foto: Pastoral da Sobriedade)

Em entrevista ao site Minha Vida, a psicóloga do Hospital do Coração de São Paulo, Silvia Ismael, explica a dificuldade de abandonar o vício: “O grande X da questão é que, além da dependência física, há uma dependência psicológica. As pessoas associam comportamentos e situações ao ato de fumar. A impressão é que tudo fica melhor com o cigarro”.

Os usuários têm dificuldade em associar o tabagismo a uma doença severa que necessita de tratamento. É preciso entender que há um tempo para se livrar do vício. Acompanhamento de profissionais e medicamentos são necessários. O tabagista não irá parar de um dia para o outro e, principalmente, ninguém poderá decidir parar de fumar por ele.

A redução é o segredo do sucesso neste caso. Especialistas indicam que a diminuição gradual reduz os sintomas de abstinência e os “fracassos” que ocorrem quando um fumante simplesmente interrompe o uso da nicotina. Tais fracassos são os maiores responsáveis pela desistência no tratamento, pois o usuário se vê incapaz de abandonar o vício e acaba por se entregar a ele.

Por se tratar também de um problema psicológico, estudiosos indicam que existem bons e maus momentos para tentar abandonar o vício. Períodos de stress, tristeza e de convivência em ambientes com diversos fumantes são péssimos exemplos para largar o cigarro. No entanto, as populares promessas são muito bem-vindas como incentivo. A luta contra a dependência é, em grande parte, mental.

Apesar do tabaco ser uma droga lícita, é impossível dizer que este vício é totalmente aceito pela sociedade. Muitas pessoas se mostram claramente incomodadas com a fumaça propagada pelo cigarro. As leis federais seguem a favor da redução do número de consumidores; além da proibição das propagandas já mencionadas, todo maço de cigarro contém uma publicidade “invertida”: figuras agressivas relatando problemas causados pelo fumo e indicação da quantidade de substâncias nocivas presentes são exemplos. Seguindo, desde 2011 está expressamente proibido fumar em locais fechados, hábito anos atrás comum no país. A glamourização do cigarro ficou no passado e parece estar dando certo: nos últimos nove anos, o número de usuários no Brasil caiu cerca de 31%.

Mesmo com toda redução de consumo, corte de publicidade, leis de proibição, o lucro com a venda de cigarros nunca foi tão alto no Brasil. Em aproximadamente 10 anos, o preço do produto subiu mais de 100%, o que acaba por sustentar as ações das empresas mesmo com o menor número de compradores.

No ano de 2011, o mercado do tabaco movimentava cerca de R$ 16 bilhões no país, sendo que R$ 9,3 bilhões iam para os cofres do governo em forma de tributos. O Brasil é o maior exportador da matéria prima e o segundo maior produtor, atrás apenas da China. Muitos acreditam que esse lucro exorbitante seja o motivo da legalidade do tabaco. Errado. Por ano, o governo brasileiro desembolsa cerca de R$ 21 bilhões no tratamento de doenças relacionadas ao tabagismo, mais que o dobro arrecadado.

Álcool, nosso maior problema

O consumo aceitável de bebida alcoólica gira em torno de no máximo 30 gramas/dia. Esse número equivale a uma taça de vinho, uma lata de cerveja ou 50ml de uísque. Além disso, é necessário que se dê um descanso de ao menos dois dias semanais sem a ingestão da substância, o que nos permite concluir que vivemos longe de uma sociedade que saiba conviver com os drinks. Apesar de ultrapassarmos as doses aceitáveis em uma ótica medicinal, existe uma grande diferenciação entre consumidores comuns e alcoólatras.  

Por definição, alcoolismo é o consumo de álcool periódico, permanente, habitual ou condicionado por uma dependência psicofísica. Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), 3% da população brasileira, um número correspondente a 4 milhões de pessoas, é alcoólatra. A partir do momento em que o cidadão perde o controle perante a bebida, deixando que ela afete suas relações pessoais e profissionais, podemos considerá-lo viciado. O descontrole é o fator que indica o vício.

Momentos de crise, depressão, tristeza são períodos propícios a desencadear a doença. As pessoas acabam buscando no álcool um refúgio para seus aborrecimentos. O famoso “beber para esquecer” é um risco enorme.

Estudos indicam que existe sim uma predisposição genética ao alcoolismo, por isso, caso haja problemas relacionados ao álcool na família, o cidadão deve dobrar a atenção. A facilidade de compra é o principal perigo: as bebidas são facilmente encontradas e o preço é acessível. A popular “cervejinha” está presente na mesa dos brasileiros e a diferença entre o prazer e o revés encontra-se na dosagem.

Quando o limite é excedido, o consumidor fica eufórico, excitado, desinibido e acaba tomando atitudes impulsivas, podendo-se tornar agressivo. Em um segundo momento, há a perda de equilíbrio e da coordenação motora, o que pode provocar quedas. A terceira fase é conhecida como a hipnótica, com muita confusão, dificuldade para raciocinar, sono, náuseas e vômitos. Caso o consumo seja realmente exagerado, os dois últimos momentos são muito graves e recomenda-se procurar um médico urgentemente: a consciência é perdida por completo, não há controle muscular e a respiração fica difícil, levando a choques cardiovasculares e paradas cardiorrespiratórias, muitas vezes resultando na morte do indivíduo.

A aparente inofensividade acaba por transformar o álcool em uma uma arma. Mesmo com a lei seca, instaurada com mais vigor em 2008 no Brasil, 31% dos acidentes fatais no trânsito têm a embriaguez dos motoristas como responsabilidade. Não é necessário ser viciado para causar uma tragédia deste tipo: uma leve deslizada e um consumo acima do aceitável podem resultar na morte, não direta, mas totalmente ligada às bebidas alcoólicas.

O consumo frequente de álcool afeta gravemente as funções cerebrais ligadas a mudanças de humor, controle de motricidade, reflexos e equilíbrio. A perda de memória, de autocontrole e da capacidade de concentração, assim como o transtorno do sono e a redução de vitamina B são retratos do alcoolismo. O aumento da atividade cardíaca, hipertensão e a debilitação do músculo cardíaco ocorrem, da mesma forma, por conta das toxinas encontradas nas bebidas alcoólicas.

O alcoolismo afeta todo o sistema digestivo, aumentando o risco de câncer e inflamação no estômago, laringe, esôfago e pâncreas. Há o surgimento de úlceras, predisposição a diabetes tipo II, hepatite e cirrose. Além disso, as funções renais são comprometidas gradualmente com o uso exagerado do álcool.

Como a grande maioria dos problemas, o alcoolismo tem tratamento, mas o usuário precisa estar disposto a parar. As soluções vão desde clínicas de reabilitação, terapias e associações como a dos alcoólicos anônimos até os medicamentos e homeopatias que, quando tomados, podem controlar a vontade de consumo e tornar o álcool uma substância estranha ao corpo, fazendo com que o usuário perca o prazer de beber seus drinks.

Mesmo sendo aceito e lícito, o álcool divide opiniões. Muitas pessoas sofrem com alcoólatras na família, problema que acaba enfraquecendo as relações por conta da agressividade e inconsequência dos usuários no momento de embriaguez. A mídia tentou retratar diversas vezes, por meio de novelas e programas, o comprometimento emocional causado pelo álcool. No entanto, as propagandas de cerveja e destilados ocupam cada vez mais os horários comerciais, a maioria de nossas celebrações conta com os drinks na mesa e, para muitos, diversão é sinônimo de consumo de bebida alcóolica.

Comida: um vício comum, um tabu

Para falar sobre como a adicção em alimentos ainda é considerada um vício socialmente aceito – no sentido de ser reconhecido, porém encarado como um tabu –,  o psiquiatra Edgar Oliveira nos relata uma pesquisa realizada com cidadãos da Austrália e dos Estados Unidos. Nesta, foi perguntado: “É um conceito aceitável pensar que algumas pessoas têm relação de dependência com a comida?”, e, entre 80 e 90% dos entrevistados responderam que consideram o vício em alimentos algo possível. Porém, em seguida, a pesquisa perguntou: “Tendo uma relação de dependência, você acredita que são necessárias políticas públicas para lidar com isso?”, e, para esta questão, a grande maioria das pessoas negou.

Para o psiquiatra, este resultado expressa alguns fatores que envolvem a questão da dependência alimentar. Primeiramente, revela um pensamento comum quando a sociedade considera a existência de vícios em alimentos: que este é um problema individual, de uma pessoa que tem um relacionamento difícil com a comida, e, portanto, que a regulamentação de práticas alimentares, por parte do Estado, deve ser evitada. Em segundo lugar, explicita o modo como a indústria alimentícia se envolve neste ambiente complexo: fatores econômicos também acabam por se inserir na equação, já que esse pensamento supracitado impede a inibição em relação à venda e a revisão das políticas das empresas na comercialização e na produção dos alimentos.

Segundo Edgar, a mentalidade da sociedade ao redor do dependente e a histórica questão econômica são fatores relacionados à epidemia de obesidade global e às maiores taxas de vício em alimentos diversos. Por um lado, ao individualizar a responsabilidade pela dependência e relacioná-la à falta de força de vontade, a sociedade nega a necessidade de se estabelecerem políticas públicas que auxiliem no tratamento e mesmo na não criação de um vício, como, por exemplo, a reeducação alimentar. Além disso, fomenta estigmatização e discriminação. Assim, os dependentes não se sentem amparados na luta contra seu vício, e, para além dos prejuízos nutricionais, ainda podem passar por problemas de autoestima e complicações nas suas relações sociais. Culpa e sensação de incapacidade se tornam constantes na vida destas pessoas.

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A alimentação também pode afetar o sistema de compensação do cérebro e causar vício. (Foto: Comece a Emagrecer)

Por outro lado, há uma clara intenção da indústria alimentícia em fazer as pessoas consumirem cada vez mais, sem preocupação com a saúde do consumidor. As políticas das empresas em relação às fórmulas alimentícias e opções de sabor (além das embalagens pensadas especificamente para chamar a atenção e criar uma sensação de necessidade pelo produto), direcionadas para fomentar o maior consumo, acabam por colocar no mercado cada vez mais alimentos ricos em sal, açúcar e gordura, que, segundo diversas hipóteses da área médica, são os maiores responsáveis pela existência desta adicção.

Pensada tanto em sua relação com padrões de beleza rígidos e com uma revolução em questões de saúde, quanto em sua inserção em uma lógica capitalista, a dependência alimentar se apresenta como um vício cada vez mais comum, mas que continua sendo banalizado, por ser considerado menos prejudicial que outras adicções, por ser visto como algo do qual é mais fácil se libertar e por não ser pensado como algo com raízes muito mais profundas, tanto no sentido já explicado como na própria ordem psicológica dos indivíduos, e que vão além do simples comer excessivo.

“Infelizmente, algumas pessoas ainda encaram o  ‘problema obesidade’ como uma simples falta de domínio da boca e preguiça em praticar atividade física”, explica Rita Pimentta, quando nós lhe perguntamos se ela acha que a dependência alimentar ainda é um tabu da sociedade. Vivendo e estudando o assunto durante muitos anos, ela é incapaz de negar essa questão.

Quando seu pai faleceu, Rita conta, sua mãe passou a viver junto com seu tio, irmão de seu pai, e este começou a abusar sexualmente dela. Sua mãe, ao invés de auxiliá-la e ampará-la, reagiu de maneira contrária: tentou calá-la e chantageá-la com doces. “Eu não tinha paz. Eu só pensava em comida. Eu acordava e dormia com o gosto de algo doce na boca. A comida foi a minha maior amiga e ao mesmo tempo a minha pior inimiga”, relata.

Além de comer compulsivamente, Rita desenvolveu uma obsessão pelo corpo perfeito: passou a tomar laxantes e remédios para emagrecer em demasia, praticava atividades físicas em excesso e vomitava após as refeições. Ela vivia um quadro de bulimia nervosa, utilizando a comida para aliviar a dor e buscar prazer em uma situação de vida péssima.

A partir dos 10 anos, passou a sentir mal consigo mesma, e aos 14 começou a beber e ingerir antidepressivos e analgésicos de maneira excessiva, a ponto de se viciar também nessas substâncias. Conviveu por muitos anos com a dependência alimentar e a bulimia, sempre sabendo que não tinha uma relação normal com a comida, mas apenas ao chegar a um grupo anônimo de compulsórios, após adoecer, encarou de frente sua situação e começou um tratamento psicológico. Ao reconhecer sua relação problemática com a alimentação e estudar sua situação, se descobriu uma nova mulher. “Hoje, me trabalho interiormente e me sinto bem comigo mesma”, revela.

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Rita Pimentta, após passar pela compulsão alimentar e pela bulimia, tem, hoje, uma relação saudável com sua alimentação. (Foto: Arquivo Pessoal)

Enquanto Rita apresentava uma dificuldade na sua relação com qualquer tipo de alimento, para Jaff Cunha o problema maior é com a cafeína, apesar de não se considerar tanto um viciado, pois, afirma, pode parar quando quiser. Pensa que alguns fatores, como o fato de o café ser uma bebida ótima para se socializar e de a cafeína não alterar o estado mental e apresentar efeitos colaterais fracos e pouco duradouros, contribuem para que o vício em cafeína seja menosprezado ou passe despercebido.

Começou a tomar café aos 10 anos, na casa da avó, relata. Na época, em pouca quantidade, pois não sentia muito prazer na bebida em si, mas gostava de “pescar” pedaços de queijo dentro dela. Aos 15, ao entrar no ensino médio, com a motivação de ter maior rendimento nos estudos, começou a ingerir energético. No mesmo período, passou a tomar cápsulas de cafeína e, juntamente ao copo de café diário, ingeria cerca de 650mg da substância ao dia.

No início da faculdade, cortou o uso das cápsulas, mas aumentou as doses de café e energético de maneira tal que, no fim de 2015, ingeriu em 10 dias o correspondente a 15 litros de energético e cinco litros de café, o que lhe fez tentar reduzir as doses da substância.

“Quando tomo menos cafeína que o meu normal, sinto dor de cabeça, dificuldade em me concentrar e me canso muito. Quando tomo mais do que o normal, sinto ansiedade, taquicardia, tremores, descompasso entre velocidade da mente e corpo. No dia a dia, com as mesmas doses, me sinto tranquilo,” relata. Nunca sentiu necessidade de procurar um psicólogo, e, ao ficar sem a substância, não teve recaídas. Em sua relação com o vício, diferentemente do que Rita conta, Jaff se sente muito bem.

Assim como Jaff, Nathália Kikuti também estabeleceu uma relação viciante por causa dos estudos. No caso dela, porém, o vício aconteceu em duas situações diferentes. Em um primeiro momento, “devido ao período de cursinho e estudos, havia a necessidade de ficar acordada e disposta para estudar durante 15h por dia, então recorri ao café,” ela relata. Chegou a consumir 500g de pó por dia, em 7 doses da bebida, mas, ao reconhecer o aparecimento de problemas relacionados ao consumo excessivo, decidiu deixar o café de lado.

Em um segundo momento, o vício apareceu em uma ocasião estressante, ao trabalhar e estudar simultaneamente. Desta vez, porém, a adicção foi em açúcar. Começou a comer chocolate diariamente, e, mesmo começando aos poucos, chegou a um ponto em que ingeria uma barra de chocolate por dia. Porém, quando este não era presente, revertia a ingestão de balas, sorvetes, bombons, ou qualquer outro alimento doce e que saciasse sua fome. “Foram meses em que não me senti no meu controle. Dependia do café para me manter acordada, e a tentação do açúcar me consumia, ficava inquieta e não pensava em outra coisa além de um doce após cada refeição enquanto não o comesse,” conta.

Nathália também nunca passou por tratamentos psicológicos. Ao reconhecer que ficava ansiosa e “claramente alterada” por não consumir açúcar, ela lidou com o vício à sua maneira, e, apesar da dificuldade para tal, conseguiu reduzir o consumo. Atualmente, ingere doces e cafeína de forma muito controlada, em uma quantidade que, segundo ela, “não chega nem perto do que consumia outrora.”

O psiquiatra Edgar Oliveira resume muito bem a situação da dependência alimentar quando perguntado sobre abstinência. “As pessoas ficavam esperando que, para considerar uma dependência, esta precisa ter uma relação parecida como é com a cocaína, que tem que ter uma degradação psicossocial por trás da dependência. A gente sabe hoje muito bem que isso não é verdade, que tem algumas substâncias que provocam prejuízo, mas que não nesse nível de gravidade. O tabaco é uma coisa pequenininha, fácil de comprar, mas que hoje, junto com o álcool, é um dos principais problemas de saúde pública no mundo. Então, será que a dependência de comida não está apresentando um padrão parecido com esse?” E completa, “a gente vai ficar esperando até quando, com essa pandemia de obesidade, para repensar a forma como a gente vê, comercializa, propagandeia e produz os alimentos?”

Como assim, socialmente aceitos?

Segundo Leonardo Mota, sociólogo estudioso de vícios e professor adjunto da Universidade Estadual da Paraíba, “para a sociologia, qualquer interpretação da realidade é uma construção social”. Porém, com o avanço da medicina, várias patologias acabaram por se ancorar em modelo biomédico que trata fenômenos sociais em termos biológicos. É neste modelo, nomeado pelo sociólogo como Medicalização dos Desvios, em que se enquadram os vícios. Nele, tem-se que, para qualquer comportamento desviante, a normalização do indivíduo é possível desde que este se submeta a um tratamento médico condizente ao seu distúrbio. Assim, segundo Leonardo, o vício deve ser encarado também em termos de construções sociais, e não apenas em um sentido médico.

Neste sentido, para além da definição médica de um comportamento que afeta o sistema de compensação de uma pessoa de maneira diferente da normal, o vício é algo que une fatores biológicos, psicológicos e sociais, o que explica por exemplo o desenvolvimento de adicções como compras compulsivas – uma espécie de resposta à pressão pelo consumo proveniente da indústria publicitária -, álcool, que pode ser relacionado à sua associação como um símbolo de virilidade e prazer, e tecnologia, que aparece em um tempo de incertezas em áreas diversas e mal-estar contemporâneo, de acordo com Leonardo Mota. Sobre este último tema, o sociólogo adiciona que “as mudanças ocorrem de forma muito rápida e seus efeitos são imprevisíveis. O vício, como é repetitivo e previsível, se apresenta para muitos como uma alternativa viável para lidar com estas incertezas.”

Deste modo, voltamos à concepção dos vícios socialmente aceitos. Como o aspecto social também se envolve nos problemas das adicções, tem-se que a eleição das dependências que serão consideradas pela perspectiva de um reconhecimento de suas potencialidades viciantes e, ao mesmo tempo, de um tratamento como um tabu, se dá à partir de padrões culturais de determinado tempo e local. Porém, apesar de a sociedade eleger seus vícios aceitos de maneira mais ou menos hegemônica, a escolha destes passa também por padrões de gênero, raça e classe, mudando levemente em cada parâmetro supracitado.

Conforme define Leonardo Mota, “os vícios mais estigmatizados são geralmente aqueles relacionados à moralidade burguesa”, ou seja, aqueles que mais afetam os padrões e regras impostas pela sociedade. O viciado em um vício socialmente aceito é, ao mesmo tempo, um desviante e um compulsivo em uma substância ou comportamento banalizado por esta mesma sociedade, o que acaba por reservar ao dependente uma discriminação e um preconceito de ambos os lados.

Apesar de impulsionar diversos inconvenientes, é importante ficar claro: o vício é um refúgio, uma consequência, seja de uma exclusão social ou de adversidades pessoais. Toda atenção e auxílio devem ser fornecidos pelas políticas públicas e pela sociedade que abriga tantos dependentes, pois muitas vezes, são elas também as responsáveis por construir estereótipos, metas e obrigar o cidadão a extrapolar seus limites emocionais para ser inserido. A falta de base leva muitos a procurarem o apoio que não tiveram em bebidas, cigarros, comidas, café, compras, redes sociais e tantas outras coisas que deveriam ser prazeres, mas acabam se tornando problemas, graves problemas que fogem de seu controle.

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