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Observatório | Tragédia no RS: desastre climático ou político?

Entenda as causas ambientais e políticas que levaram ao desastre no Rio Grande do Sul
Alagamentos no Rio Grande do Sul

Por Maria Eduarda Lameza (duda.lameza@usp.br), Maria Luiza Negrão (marialuizacnegrao@usp.br) e Regina Lemmi (regina_lemmi@usp.br)

No dia 27 de abril, o Rio Grande do Sul registrou as primeiras inundações na região do Vale do Rio Pardo. Até o momento, já são 161 óbitos confirmados, 85 desaparecidos e 581.633 pessoas desalojadas de acordo com o último boletim da Defesa Civil.

Fatores ambientais

O agravamento das mudanças climáticas pode ser apontado como a principal causa ambiental das enchentes na região. Isso faz com que fenômenos climáticos extremos ocorram com maior intensidade e frequência. Além disso, o fenômeno El Niño, associado com as condições climáticas atuais, também é um determinante para a alta pluviosidade.

O El Niño, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (INMET), é um fenômeno meteorológico caracterizado pelo aquecimento anormal contínuo das águas do Oceano Pacífico que pode durar de seis meses a mais de dois anos. No Brasil, ele provoca seca nas regiões Norte e Nordeste e muita chuva na região Sul.

Outro agravante para as chuvas foi a presença de uma massa de ar quente nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, que impediu a dispersão de uma frente fria do Sul para o resto do país. Esse impedimento gerou uma intensa concentração de chuva no Rio Grande do Sul, e impediu que ela se alastrasse para outras regiões.

Mapa de precipitação acumulada nos últimos 30 dias no Brasil
Enquanto o resto do país acumulou quantidades razoáveis de chuva em um período de 30 dias, no Rio Grande do Sul (região azul na parte inferior do mapa) a pluviosidade foi muito mais elevada. [Imagem: Divulgação/INMET]

Para esclarecer questões relativas a fatores climático-ambientais das enchentes no Rio Grande do Sul, a Jornalismo Júnior entrevistou a pesquisadora Elaine Santos do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP). Segundo ela, os governos municipais devem se preparar para tragédias como essa: “Acredito que, infelizmente, veremos mais tragédias deste tipo, daí a importância da conscientização e preparação”.

A pesquisadora cita, ainda, os Planos de Ação Climática (PAC), documentos que reúnem medidas para reduzir os impactos das mudanças climáticas nos municípios. Além de  definirem estratégias a serem tomadas em momentos de calamidade. “Dentro destes planos são pensadas ações políticas e estruturais, e aqui podemos falar em estruturas resilientes, como a construção de sistemas de drenagem, diques e barreiras, e que estes [projetos] tenham manutenção”, afirma Elaine. Nas cidades afetadas pelas enchentes, os PACs ainda não foram estabelecidos.

As ações humanas no território também exercem um grande papel no agravamento das mudanças climáticas. “No caso do Rio Grande do Sul, acredito que exista uma combinação de fatores relacionados ao elevado nível de precipitação, somada à ocupação desordenada e intensiva do solo”, explica Elaine. A retirada da vegetação para a ocupação urbana pode intensificar as chances de inundações, por diminuir a absorção natural da água pelo solo. Com esse impedimento, a água tem a tendência de acumular na superfície e dificuldade para chegar nos rios, o que aumenta a chance de alagamento.

Moradores de Porto Alegre levam pessoas e mantimentos de barco
Mercado Público de Porto Alegre embaixo d’água. [Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil]

Fatores políticos

No dia 9 de maio, uma semana após o Rio Grande do Sul ter decretado calamidade pública, o instituto Genial/Quaest divulgou uma pesquisa revelando que 68% dos entrevistados acreditam que o governo estadual tem muita responsabilidade pela tragédia. Esse resultado questiona se tamanha catástrofe é produto exclusivo das mudanças  climáticas ou se houve também alguma negligência política.

O geógrafo Neil Smith, no artigo “Não existem desastres naturais” (2006), defende que esses eventos trágicos são socialmente construídos, e as ações dos governos, ou a falta delas, contribuem para suas construções. Essa análise foi feita, inicialmente, em 2005, quando o furacão Katrina destruiu parte dos Estados Unidos. Agora, no cenário brasileiro, tal crítica foi resgatada por ativistas após o governador Eduardo Leite e a Câmara dos Deputados terem engavetado o Plano de Prevenção de Desastres, elaborado em 2017, mas nunca efetivado. Em 2019, também cortaram 480 pontos do Código Ambiental. E, em 2023, o orçamento da Defesa Civil do Estado foi reduzido.  

Em entrevista para a Jornalismo Júnior, a professora de direito ambiental da USP, Ana Maria Nusdeo, explicou que uma das alterações feitas  no código ambiental passou a permitir o autolicenciamento— autorização para que empresas consigam sua licença ambiental sem passar por uma avaliação técnica oficial. Para ela, essa prática busca atender aos interesses do agronegócio da região, que acredita ser impossível o crescimento econômico com sustentabilidade, “o que não é verdade, pelo contrário, agora estamos vendo o resultado”. 

“Quando as legislações ambientais são enfraquecidas, estamos mais expostos aos riscos e aos impactos de desastres”

Ana Maria Nusdeo
Governador do Rio Grande do Sul Eduardo Leite
Governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, afirma que “não é hora de apontar culpados”. [Foto: Fábio Pozzebom/Agência Brasil]

Ana Maria ainda explica que, segundo a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDEC), criada pela Lei nº 12.608/2012, devem existir quatro  etapas contra desastres: prevenção, preparação, resposta e recuperação. O Governo Federal declarou auxílio ao Rio Grande do Sul nas duas últimas etapas, por meio da suspensão da dívida do estado pelos próximos três anos e do “Auxílio Reconstrução”, que pagará R$5.100,00 para 240 mil famílias afetadas pelas chuvas.

A catástrofe pelo olhar de uma vítima

A Jornalismo Júnior entrevistou também uma vítima das enchentes no Rio Grande do Sul. Astrion Matteo de Oliveira morava em Porto Alegre com a família e planejava se mudar para São Paulo para iniciar seus estudos na Universidade Federal do ABC (UFABC).

“Parecia um filme de terror. Era um breu completo, você não enxergava nada, nem o nível da água e aquilo gerava uma angústia tão grande. Havia um silêncio total durante a noite. Você só ouvia os gritos de socorro das pessoas.”

Astrion Matteo de Oliveira

“O que foi passado pelo prefeito da cidade e até pelas mídias, na época, foi que a água ia baixar em dois, três dias, no máximo em uma semana.” Publicado e atualizado diariamente pela Defesa Civil do RS, o alerta vermelho das chuvas começou dia 29 de abril, e seguiu até sexta-feira, dia 17 de maio. As chuvas impactaram 93% das cidades durante esse período. 

Sem água, sem energia e com alimentos apodrecidos, ele e a família ficaram confinados por dias em seu apartamento, no bairro Humaitá em Porto Alegre, até serem resgatados às pressas. “A cidade acabou. Ou tu sai, ou tu vai morrer.”, disse o socorrista a eles. 

A violência em Porto Alegre aumentou exponencialmente após a tragédia. Os moradores da cidade relataram os delitos nas redes sociais. De acordo com as informações dadas pelo Governo Estadual do Rio Grande do Sul, a Brigada Militar e a Polícia Civil prenderam 54 pessoas em oito dias, 11 delas por crimes sexuais dentro dos abrigos.

Há, em média, 76.000 pessoas em 839 abrigos. Alguns dos problemas referidos aos alojamentos foram as disputas pelos recursos e roubo de doações e suprimentos por alguns voluntários. Outro desafio enfrentado pelos gaúchos são as prateleiras vazias nos mercados e a falta de água, já que as rodovias e os portos do estado estão submersos. Isso gera um aumento do preço dos alimentos, o que implica diretamente no crescimento da insegurança alimentar.

O gaúcho também comentou sobre a falta de manutenção do Sistema de Proteção Contra Cheias— originalmente criado para impedir a entrada de água do Rio Guaíba na capital. Uma das comportas se rompeu dia 3 de maio: “todos os projetos de conserto foram completamente descartados”.

Rua de Porto Alegre alagada
O centro histórico de Porto Alegre continua inundado. [Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil]

Após o resgate, Astrion e sua família foram levados para um ponto de triagem, onde ele destaca a situação precária das doações e do local. Segundo ele, não havia roupas do seu tamanho e os sapatos disponíveis eram inutilizáveis. “Não era um lugar nada salubre. Tinha umas pessoas fazendo comida entre cachorros e pombos. O equipamento médico ficava todo aberto, jogado por cima de uma mesa de metal.” 

Agora, a família vive temporariamente no município de Não-Me-Toque, localizado no Planalto Médio do Rio Grande do Sul. “As coisas já estão se tornando uma guerra civil em Porto Alegre, ouvimos até tiros”, acrescenta.

Junto à família, ele vem arrecadando dinheiro em uma vaquinha online para tentarem sair dessa situação. A USP está arrecadando água potável e material de limpeza para ajudar às vítimas da inundação gaúcha. Confira aqui informações sobre como doar.

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