Por Eduardo Passos e Tiago Medeiros
30 de novembro de 2003, esse foi o dia que marcou a conquista heroica, e inédita no cenário brasileiro, da Tríplice Coroa pelo time da Raposa. O Arquibancada relembra todo o caminho percorrido pelo Cruzeiro há 15 anos, desde o começo de 2003, com a conquista do campeonato estadual, passando pelo título da Copa do Brasil e chegando, enfim, ao título do Campeonato Brasileiro. As dificuldades e incertezas que rondaram Belo Horizonte até que o feito fosse concretizado foram destrinchadas e analisadas, a fim de verificar como a Raposa conseguiu ser o único time até os dias atuais a conquistar esses títulos em um mesmo ano.
Preparativos para o ano especial
O planejamento que permitiu com que o Cruzeiro pudesse alcançar tantas glórias em 2003 ocorreu antes mesmo do início da temporada, no final de 2002. No ano do pentacampeonato da seleção brasileira, o time mineiro conseguiu feitos não muito altos, ficando restrito à conquista da Copa Sul-Minas. O time acabou por bater na trave no campeonato nacional, ficando na nona colocação, uma posição abaixo da zona de classificação para o mata-mata.
A eliminação também foi marcada pela derrota do Atlético para o Grêmio, na última rodada da primeira fase. Com o resultado, o time gaúcho ascendeu aos 41 pontos, deixando a Raposa de fora e incitando a ideia de que o Galo entregou a partida para prejudicar o rival.
Além disso, o Cruzeiro já havia perdido os outros dois caminhos para a Libertadores. A equipe foi eliminada nas oitavas de final da Copa do Brasil pelo Corinthians, futuro campeão daquele ano. A dor maior, porém, veio com uma inesperada queda para o Paysandu na final da Copa dos Campeões, onde os comandados de Marco Aurélio erraram as três cobranças de pênalti da disputa e viram o Papão se sagrar campeão.
Essa série de frustrações foi o pontapé inicial para que houvesse mudanças para o ano seguinte. No caso do comandante, a diretoria do time mineiro tratou de trazer um técnico de ponta em nível nacional, e, em agosto de 2002, Vanderlei Luxemburgo trocou o Palmeiras pela Raposa. Assim, o professor participou ativamente da montagem do time para a temporada que vinha pela frente.
A chegada de um “pacotão” de reforços na Toca da Raposa II (centro de treinamento do elenco profissional) no início do ano fez a torcida cruzeirense se animar com o que poderia acontecer, e logo permitiu com que Luxemburgo pudesse colocar peças de alto calibre em sua equipe. A chegada do lateral-direito Maurinho (ex-Santos, campeão brasileiro em 2002), do zagueiro Edu Dracena (ex-Olympiacos-GRE), do meio-campo Martínez (ex-Guarani) e dos atacantes Aristizábal (ex-Vitória), Deivid (ex-Corinthians, campeão da Copa do Brasil em 2002) e Mota (ex-Ceará) fizeram com que o Cruzeiro tivesse um elenco invejável e altamente letal. Essa característica ficou exposta, e logo deu resultados já no primeiro desafio do ano.
Campeonato Mineiro
Disputado em formato de pontos corridos, característica que não é usual em campeonatos estaduais, a competição contou com 13 equipes e ocorreu de janeiro a março daquele ano. A fase única da disputa foi feita em um só turno, em que todos jogaram contra todos, e, após as 12 rodadas, o Cruzeiro sagrou-se campeão de forma invicta e com um jogo de antecedência.
A equipe somou 32 pontos, com dez vitórias e dois empates, campanha praticamente irretocável e perfeita para começar uma temporada de sucesso. O meio-campo Alex foi o artilheiro do time, com 9 gols na competição, e começou aí a ser protagonista e se destacar, ao dar mostras do ano fantástico que ele teria em 2003.
O jogo do título para a Raposa aconteceu em 16 de março, na cidade de Patos de Minas, contra o time da URT. O Cruzeiro não tomou conhecimento da equipe da casa e aplicou uma goleada de 4 a 0, com gols de Deivid, Aristizábal, Alex e Maurinho. Esse jogo apenas reforçou a dominância demonstrada durante todo o campeonato pelo Cruzeiro, que não deu chances ao arquirrival Atlético Mineiro na disputa pela taça. A diferença entre os dois ao final da competição ficou em sete pontos e o clássico entre as duas equipes acabou por favorecer a raposa que levou o confronto por 4 a 2.
Em meados de fevereiro, durante a disputa do Campeonato Mineiro, houve o início da Copa do Brasil, em que o Cruzeiro começou a mostrar, em níveis nacionais, o seu poderio e todo o perigo que a equipe poderia oferecer aos seus adversários.
Copa do Brasil
A segunda conquista do time celeste foi a Copa do Brasil, e a caminhada até o título teve início ainda com o Mineirão em andamento. O quarto título da competição na história da Raposa começou com uma vitória fora de casa sobre o Rio Branco-ES, no dia 19 de fevereiro. Ao fim da partida, o placar marcava 4 a 2 favorecendo a equipe mineira e eliminando a necessidade de um jogo de volta em Belo Horizonte, por conta da vitória por dois gols de diferença.
Na próxima fase do campeonato, o Cabuloso teve como adversário o Corinthians-RN que, diferentemente do primeiro adversário, dificultou a vida do Cruzeiro no primeiro jogo. Um empate em 2 a 2 no Estádio Senador Dinarte Mariz, localizado na cidade de Caicó, Rio Grande do Norte, exigiu que houvesse uma nova partida no Estádio do Mineirão para decidir qual time caminharia rumo à próxima fase. Em seus domínios, o Cruzeiro não tomou conhecimento de seu adversário e aplicou uma sonora goleada de 7 a 0, espantando qualquer fantasma de eliminação e chegando às oitavas de final.
O time da Raposa teve pela frente, então, o primeiro adversário goiano, o Vila Nova. Dessa vez, com o primeiro jogo no gigante da Pampulha, o time mineiro fez um bela partida e, sem sustos, conseguiu levar para a capital goiana um resultado de 2 a 0 a seu favor. No Estádio Serra Dourada, mais uma vitória da equipe celeste: 2 a 1 e vaga garantida na próxima fase da Copa do Brasil.
Nas quartas de final, um time carioca colocou-se como postulante a frear o embalado Cruzeiro. O Vasco da Gama era quem encarava esse grande desafio. Novamente com o jogo de ida sendo disputado no Mineirão, o Cruzeiro saiu de campo levando vantagem para o jogo na Cidade Maravilhosa, um 2 a 1 que aumentou o tabu de sete confrontos sem perder para a equipe carioca na competição nacional.
No jogo da volta, um confronto de extremos, um tempo de domínio para cada lado. Na primeira etapa, o time azul mandou no campo de São Januário, várias chances foram criadas e muito trabalho foi dado ao goleiro Fábio, o mesmo que anos depois foi vestir a camisa celeste e defende as cores da equipe mineira até os dias atuais, sendo um grande ídolo da torcida cruzeirense. Alex, depois de algumas tentativas frustradas, em chute cruzado de perna canhota colocou o time mineiro à frente e levou para o vestiário uma vantagem de dois gols de diferença.
Porém, quem voltou animado para a segunda etapa foi a equipe do Vasco, muito por conta da expulsão do volante Augusto Recife, fazendo com que o Cruzeiro tivesse que se fechar no campo de defesa e permitindo um bombardeio de chutes ao gol e extensa pressão. O time carioca conseguiu seu gol com Souza e assim precisava de apenas mais um tento para levar a partida para as penalidades, contudo, os comandados de Antônio Lopes não conseguiram furar o bloqueio do Cabuloso que segurou o empate e conquistou a classificação.
Chegavam as semifinais, e mais um time goiano colocava-se a frente do Cruzeiro, o Goiás. No confronto de ida no Serra Dourada, uma vitória suada por 3 a 2, e, mais uma vez, a decisão para ver quem iria para próxima fase começaria com vantagem para o Cruzeiro em seus domínios. A vitória por 2 a 1 no confronto da volta deu muita confiança para o time mineiro, que chegou à decisão da Copa do Brasil muito motivado.
O adversário da finalíssima seria um gigante do futebol nacional, o Flamengo, time da maior torcida do Brasil que se postulava para bater o time do Cruzeiro na grande decisão, porém acabou por ser vencido na somatória dos dois jogos e viu o time mineiro levantar a taça dentro do Mineirão. No primeiro embate, 1 a 1 dentro do saudoso Maracanã. Alex abriu o placar para os cruzeirenses em gol antológico de letra e Fernando Baiano empatou o jogo nos minutos finais da partida.
Para o jogo da volta, quase 80 mil cruzeirenses lotaram o Gigante da Pampulha para ver Alex e companhia erguerem a segunda taça do ano. Nos 90 minutos, o Cabuloso venceu a partida por 3 a 1, encerrando a campanha na competição de forma invicta. A imensa superioridade técnica fez-se valer durante todo o campeonato, e premiou com o caneco o time que jogava o melhor futebol do Brasil, dando mostras do que viria a seguir no Campeonato Brasileiro.
Brasileirão
Em um então inédito formato de pontos corridos, o Campeonato Brasileiro de 2003 começou excepcionalmente cedo, em 29 de março. Isso deveu-se às longas 46 rodadas que seriam disputadas pelos 24 postulantes ao título. Ainda que em boa fase e invicto no ano, o Cruzeiro iniciou a competição como favorito não-absoluto. Logo na primeira rodada, então, as dúvidas aumentaram, com um empate em casa diante do São Caetano. Apesar do resultado, porém, o jogo teve um dos gols mais bonitos do ano, marcado por Alex, encobrindo o goleiro Sílvio Luiz.
Recuperado do susto, o Cruzeiro então engatou sua primeira sequência de vitórias: São Paulo, Ponte Preta, Coritiba e Goiás foram as primeiras vítimas do time, que parecia não ligar para o mando de campo. A equipe celeste seguiu variando entre vitórias e empates até sofrer a primeira derrota da temporada: 2 a 1 para o Vitória, no Barradão, em 25 de maio.
Se a invencibilidade estava acabada, a vontade de vencer não, e o Cruzeiro seguiu líder, apesar de um voraz Santos na sua cola. No primeiro duelo entre os postulantes, o time de Luxemburgo obteve um resultado impactante, e venceu os campeões brasileiros por 2 a 0 na Vila Belmiro.
O clima na Pampulha era bom, e mesmo os tropeços não pareciam atrapalhar o destino vitorioso que se reservava. Até quando o artilheiro do time, Deivid, deixou Belo Horizonte e rumou para o exterior no meio da temporada, o impacto foi pequeno, muito por conta da ascensão do jovem Mota. Outros jogadores como Luisão, Marcelo Ramos e Jussiê também deixaram a Toca da Raposa II durante o campeonato, mas não abalaram o clima dentro do clube. A diretoria cruzeirense tratou de reforçar o elenco com as chegadas de Maldonado, Felipe Melo, Zinho e Márcio Nobre, assim como a promoção dos jovens Irineu e Gladstone vindos das categorias de base da Raposa. A lua de mel com a torcida também era intensa, e o Mineirão seguia cheio, lotando cada vez mais à medida que somavam-se títulos e vitórias na temporada.
No caminho para o fim do campeonato, uma final antecipada ocorreu quando os dois líderes se reencontraram, no returno, para o jogo em BH. Já vencedor do confronto na Vila, o Cruzeiro mostrou não temer o Santos, e aplicou um sonoro 3 a 0 num estádio lotado. O resultado poderia ser ainda mais elástico, não fosse a grande atuação do arqueiro santista, Fábio Costa. O resultado deu forte ânimo ao Cruzeiro, que disparou rumo à taça. O Santos, abatido, perdeu força e viu o título cada vez mais distante.
Essa certa superioridade do time mineiro, em relação às outras equipes, chegou até a levantar questionamentos em relação ao novo formato da competição. Alguns comentaristas esportivos à época, observando a disparada cruzeirense, apontavam o formato de pontos corridos como algo chato, que retirava a emoção do campeonato.
Naturalmente, o Cabuloso chegou ao momento de confirmar a Tríplice Coroa. Desse modo, o azul-celeste encontrou o azul-claro do Paysandu. Com gols de Zinho e Mota – Aldrovani diminuiu para os paraenses –, o Cruzeiro fez sua parte. Os mais de 70 mil presentes, então, foram à loucura quando a famosa voz do sistema de som do Mineirão anunciou que o Santos perdia por 3 a 0 para o Goiás, em Goiânia.
O apito final representou, acima de tudo, a redenção do time do bairro do Barro Preto, que, desde 1971, esperava conquistar o Campeonato Brasileiro – ainda que a Taça Brasil de 1966 viesse, posteriormente, a ser reconhecida pela CBF como mais um nacional dos celestes. A inédita Tríplice Coroa também virou motivo de orgulho da China Azul, e a coroa símbolo da conquista consta no escudo do clube. Além do mais, o feito eliminou qualquer dúvida quanto ao elenco, e poucos duvidam que esse foi o melhor time brasileiro do século 21.
O mesmo Paysandu, que em 2002 impôs uma dolorosa e constrangedora derrota ao Cruzeiro, agora permitia que a Pampulha visse, pela primeira vez, o troféu de campeão brasileiro. O objeto chegaria pouco depois, no duelo contra o Fluminense, onde os cariocas foram anulados com um sonoro 5 a 2.
Por fim, o Cruzeiro mostrou que não cansava de assustar os espectadores. Assim, na última rodada do campeonato, o clube que possuía o melhor ataque, melhor saldo, mais vitórias e menos derrotas, aplicou também a maior goleada: 7 a 0 no Bahia, com 5 gols de Alex na Fonte Nova. O time encerrava a maravilhosa temporada com 102 gols marcados e 47 sofridos. Além disso, muitos foram os recordes batidos pelo time na temporada, como o de ataque mais prolífero da história do campeonato brasileiro até então.
Alex tornou-se, com 23 gols, o maior artilheiro do Cruzeiro em uma edição de Brasileirão, e Aristizábal bateu números de estrangeiros na competição e dentro do time da Raposa. Ele foi o não-brasileiro com mais gols na história do campeonato nacional, com 41 tentos, e também o maior goleador nascido fora do Brasil de toda a vida do Cruzeiro, até aquele momento. Até hoje, nas ruas de Belo Horizonte, os atletas que revisitam a cidade são recebidos como heróis, e não há torcedor algum que viveu esse mágico ano sem se lembrar dos grandes momentos que os comandados de Luxemburgo promoveram.
Curiosidades e peculiaridades da Tríplice Coroa
Apesar do ano de muitas glórias do time cruzeirense, nem só de vitórias viveu o time da Raposa no ano de 2003. O time azul de Minas Gerais não conseguiu sucesso na Copa Sul-Americana. Nesse campeonato, a campanha cruzeirense foi freada ainda na fase preliminar, a partir de um regulamento que colocou, em um mesmo grupo, as equipes do Palmeiras, São Caetano e o time de Belo Horizonte. A eliminação precoce da Raposa – a vaga única do grupo ficou com o Azulão do ABC Paulista –, que não conseguiu alçar grandes voos internacionais no ano de 2003, foi, provavelmente, a única ressalva da temporada do Cabuloso.
A Tríplice Coroa conquistada pelo time do Cruzeiro, ainda nos dias atuais, figura-se como inédita, uma vez que nenhum outro clube brasileiro conseguiu tal feito. O conceito de Tríplice Coroa consiste, basicamente, na conquista de três títulos de expressão em um único ano. Em ordem cronológica, a equipe, como fez o time da raposa em 2003, deve conquistar o campeonato estadual e, posteriormente, deve levantar uma taça em esquema de mata-mata. Atualmente existem duas opções para sanar esse ponto, a Copa do Brasil ou a Taça Libertadores da América, sendo que a primeira possui âmbito nacional e a segunda tem o caráter continental. Para finalizar, o time deve conquistar o campeonato nacional, o Brasileirão, para encerrar de forma hegemônica a temporada.
Se no Brasil só o Cruzeiro tem a conquista da Tríplice Coroa, em outros países há times que também esbanjam esse feito em suas salas de troféus. Com um conceito adaptado ao futebol europeu, dez oportunidades foi realizado o feito, que no caso do velho continente consiste na conquista do campeonato nacional, da copa do país e o título do torneio em formato de mata-mata europeu, a atual UEFA Champions League ou a UEFA Europa League. As equipes que esbanjam esses títulos são: Barcelona-ESP (2008/09 e 2014/15); Celtic-ESC (1966/67); Ajax-HOL (1971/72); PSV Eindhoven-HOL (1987/88); Manchester United-ING (1998/99); Internazionale-ITA (2009/10); Bayern de Munique-ALE (2012/13) e FC Porto-POR (2002/03 e 2010/11).