Jornalismo Júnior

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A vida que transita entre os rios 

A trajetória dos rios demonstram as fases da vida de uma jovem que enfrenta as adversidades e a correria do cotidiano paulista
Por Emmanuelita Emmanuel (emmanuelitaemmanuel@usp.br)

Quando Dará era pequena, a sua avó, dona Eliene, contava quase todas as noites a história de “Tamara, a corredora”. Tamara era uma jovem de 14 anos, que fazia de tudo para se tornar a mais rápida entre todos os corredores do seu vilarejo. Em um dos seus treinos coletivos, a garota sentiu um mal-estar e ficou para trás, enquanto que seus colegas seguiram em direção a linha de chegada. 

A menina foi até o Rio Ocamandei passar água no rosto, um curso d’água conhecido por suas águas cristalinas e longa extensão. Chegando lá, ela se abaixou na beira da água e berrou ofensas contra ele, dizendo que era um pedaço ridículo de água, como poderia ser rápido e cheio, ao mesmo tempo em que ela era devagar e pequena. O rio respondeu, mas não com palavras que se podem ouvir, e sim como se conseguisse se comunicar diretamente com a alma da menina. 

Ele falou que levou milhares de anos para ser rápido e cheio. Foi uma junção de fatores. Os seus bisavós estavam cheios de mágoas, e em alguns períodos, eles não aguentavam mais o silêncio e começavam a discutir. Essas brigas eram resultados de grandes tensões, e por consequência, faziam chover. Essas chuvas atravessaram o solo e formaram os seus avós, conhecidos como lençóis freáticos. Após um tempo, não havia mais espaço para essas formas de água ocuparem, então elas afloraram formando os seus pais, as nascentes. Se espelhando nos pais, Ocamandei logo buscou independência, e começou a correr pelo vilarejo como rio principal. Os seus primos, conhecidos como afluentes, são menores, por isso sempre procuram Ocamandei para guiá-los. 

Sobre o seu volume, Oca explicou que pode ser cheio, mas tudo depende da época que os olhos da menina estiverem observando. Tem meses em que ele está magrinho e calmo, tem outros que está gordinho e furioso. Entretanto, independente do período, ele está sempre conectado a partes dos seus parentes, e por consequência, todos fazem parte dele. No final da história, dona Eliene dizia que ele tem a responsabilidade de guiá-los para a liberdade, o mar. Porém, Dara nunca ouviu essa parte, porque pegava no sono antes da história terminar. 

12 anos depois, no fim da tarde do dia primeiro de outubro, Dara estava esgotada. O seu dia havia começado cedo. Primeiro, ela ajudou seu amigo Beckham a se mudar para uma república, onde moraria com outros quatro estudantes. Em seguida, ela foi correndo para o seu estágio. Às 17h se despediu de sua colega Beatriz, e pegou um ônibus para a faculdade. Estudante de Oceanografia, o seu sonho é descobrir os segredos dos oceanos, desde sua composição até os animais que vivem em suas profundezas. 

Com o fone de ouvido no pescoço e a mente transitando por sua lista de afazeres — que toda noite terminava incompleta — Dara não percebeu que passou do seu ponto de ônibus. Quando se deu conta, já estava a alguns minutos de seu destino: então, ela apertou o botão e desceu em uma rua estranha. Olhou ao seu redor e não reconheceu nada, porém sabia que não estava longe porque à sua frente estava o Rio Tiête. Atravessou a rua e ficou esperando o ônibus para retorná-la ao seu destino. 

Parada ali, cansada e somente com a companhia do rio, Dara se sentiu sozinha, e isso fez com que ela se lembrasse da sua avó (uma mulher muito inteligente e paciente). Dara sorriu: ela era o oposto da paciência, estava sempre correndo atrás de alguma coisa, tinha urgência em tudo. Depois de 5 minutos, sozinha em um local iluminado apenas pelo poste ao seu lado e a lembrança constante deixada pelo odor do rio Tiête, Dara se perguntou se o rio falaria com ela. Mas também não se interessava muito pelo o que ele teria a dizer, afinal, ele não era glorioso como Ocamandei — na verdade, era o contrário; chato, quase sem movimento e fedorento.

Ainda na espera pelo ônibus, a garota sentou-se em um dos bancos e encostou a cabeça no vidro. Fechou os olhos, e por mais que tentasse ficar acordada, o cansaço a venceu. Sem querer, ela cochilou por três minutos. Três longos minutos… 

Ela sonhou, ou pelo menos acredita que foi um sonho, com o Rio Tiête. Ele falava que tinha demorado séculos para crescer, teve que se aventurar por ladeiras e buracos profundos. Após décadas, começou a competir com o sol para ver quem era o mais grandioso; uma competição difícil, mas as suas criaturas aquáticas e os humanos em suas águas eram competidores de ponta contra a bola gigante de calor. Depois dessa parte, o rio continuou sua história evocando tristeza em seus movimentos. Disse que algumas pessoas tinham inveja das suas curvas, diziam que elas traziam doenças e enchentes, e mesmo assim queriam se aproveitar da sua grandiosidade, mas apenas para benefício próprio. Segundo os impostores, essa seria a mudança que o local precisava para se tornar grande e incrível. Então, começaram a empurrá-lo, e empurrá-lo, e empurrá-lo, até que ele ficasse reto. Até o seu melhor amigo, o Rio Pinheiros, não conseguiu escapar: passou de ter curvas invejáveis a ser tão chato como o Tietê.  

rio pinheiro
Rio Pinheiro com barreiras ao seu redor [Imagem: Acervo Pessoal/Emmanuelita Emmanuel]

Depois disso, tudo piorou. Algumas das criaturas marinhas fugiram e outras não sobreviveram à mudança: a perda da autenticidade do Tietê também significou o fim delas. Os visitantes terrestres, que costumavam se aventurar todos os dias em suas águas, já não apareciam mais. Hoje em dia, quando passam por cima dele em seus carros, fecham as suas janelas rapidamente para não sentirem nem um pingo da sua presença. 

A chuva, que antes passava por vários lugares, atualmente transita com dificuldade. Por causa do asfaltamento, ela vai direto em direção aos afluentes, aos rios ou outros cursos de água. Mas, quando há alguma barreira, lotação ou impedimento para a sua passagem ou no local onde desaguam, essas gotas se juntam, e se juntam, e se juntam, podendo se tornar uma enchente ou alagar o local. Todo esse drama quando apenas estão tentando voltar para casa. A casa que antes as águas podiam atravessar em uma dança, passando pela Anhangabaú, Tamanduateí, Água Branca, Ipiranga e muito mais. Agora são como visitantes, com um lugar designado para transitar. 

Para não viver na tristeza, o Tiête tentou se conformar, tentou esquecer suas raízes, e se comportar como os engenheiros o projetaram. Porém,essa tentativa foi inútil, porque a sua alma apenas é incapaz de fugir do instinto de seguir a natureza. Por isso, ele continua buscando as suas curvas, sempre lutando para ser o que era antes. 

Dara acordou, seu ônibus estava chegando. Sentou-se no assento ao lado da janela, e começou a se questionar se estava vivendo ou apenas sobrevivendo. Ela havia passado os últimos quatro anos pensando em como ser uma pessoa melhor, e nunca se perguntou quem era naquele momento, nunca parou para apreciar as coisas incríveis das quais já participou ou o que criou até ali. 

Dara respirou fundo, abriu seu caderno de afazeres, folheou quase até o final para achar uma página em branco e começou a escrever.

*Imagem de capa: Emmanuelita Emmanuel

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