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A indústria dos jogos no Japão

Como o país conquistou seu espaço e se tornou uma potência nos jogos

O Japão, um país com uma cultura única e repleto de tradições milenares, demonstra ao mesmo tempo um incrível desenvolvimento industrial e tecnológico. Templos tradicionais e grandes arranha-céus coexistem e ambos possuem o seu valor na sociedade japonesa, em que há espaço para a tradição e para o progresso. Entre os setores industriais japoneses que mais se destacam, está a indústria dos games — mais rentável que as do cinema e da música juntas —, responsável pela produção de consoles e jogos que conquistaram o mundo inteiro. 

Em entrevista ao Sala 33, Alexandre Uehara, membro do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Língua, Literatura e Cultura Japonesa da Universidade de São Paulo (USP), conta um pouco sobre a história da industrialização japonesa e os motivos que levaram o Japão a despontar como polo tecnológico.

A relação do Japão com a industrialização tem início em meados do século 19, durante a Segunda Revolução Industrial, que foi acompanhada pela expansão do neocolonialismo por parte das potências europeias. Ao contrário de seus vizinhos, o Japão permaneceu independente e sem influência direta dos europeus e “percebeu a necessidade de investir [tecnológica e armamentisticamente] para não ser colonizado como as nações vizinhas”, segundo Alexandre. 

Essa autonomia, aliada às políticas de modernização da Era Meiji (1868-1912), foi fundamental para o nascimento dessa indústria, a única em toda a Ásia. Entretanto, o país acabou por participar da Segunda Guerra Mundial (1939-45) e sofreu graves prejuízos. Para Alexandre, estes problemas foram contornados, em parte, pela ajuda dos Estados Unidos — que fora inimigo durante a Guerra —, pois o país americano, “após romper laços com a China de Mao, passou a tentar revitalizar a economia japonesa com o intuito de fazer frente aos comunistas na Ásia”, em um contexto de Guerra Fria (1947-1991). Após um acelerado processo de reestruturação, nos anos 1970 o país já se encontrava entre as maiores economias do mundo. Nesse mesmo período, surgiram os primeiros consoles para jogos eletrônicos.

 

Um pouco de história

O conceito de “videogame” pode até ter nascido há cerca de uma década e meia antes do advento dos consoles, como fruto de experiências feitas pelo físico estadunidense Willy Higinbotham, que desenvolveu um apetrecho curioso e o nomeou osciloscópio — haja criatividade. No entanto, nem a revolucionária engenhoca de Higinbotham ou até mesmo a célebre criação do primeiro fliperama — denominado Computer Space — pelo fundador da Atari, Nolan Bushnell, conseguiram marcar tanto a humanidade quanto a invenção do engenheiro germano-americano Ralph Baer: o console Magnavox Odyssey.

O lançamento ocorreu no ano de 1972 e mudou para sempre o rumo de toda uma indústria do entretenimento. A popularidade foi tanta que em poucos anos o produto atravessou o mundo até chegar ao Japão. Por lá, quem ficou responsável por distribuir o console foi a tradicional empresa de baralho artesanal, Nintendo. Este foi o primeiro passo para a ascensão do mercado de jogos em solo japonês. Até o final da década de 1970, quem dominava a indústria dos consoles era o imbatível Atari 2600, produzido pela estadunidense Warner — que havia comprado a Atari pouco antes. 

Entretanto, no início dos anos 80, uma grave crise atingiu o mundo dos jogos e quebrou suas maiores produtoras. A cultura do videogame chegou à beira da extinção, mas  no meio da crise, entre os anos de 1983 e 1985, a indústria pôde ver uma luz no fim do túnel. Esta luz provinha de um sol ardente, vermelho — originava-se do Japão. Foi neste momento em que a tradicional empresa de baralhos artesanais, a Nintendo, transformou-se na maior potência mundial dos videogames. 

Com o lançamento internacional do NES (Nintendo Entertainment System) em 1985, a casa do bigodudo mais famoso dos jogos — Mario — havia salvado todo um mercado e, por conseguinte, dominado-o. Ao se estabelecer no topo da indústria, a Nintendo fechou contratos de exclusividade com as maiores empresas do setor e pôde assim produzir uma vasta gama de jogos para preencher a biblioteca de seu console. Todavia, não demoraria muito para que seu posto hegemônico fosse contestado. 

Surge aí a segunda grande potência japonesa no mundo dos jogos, a SEGA. Após lançar seu primeiro console — Master System — e não conseguir fazer frente com a Nintendo, os criadores do Sonic se prepararam para revolucionar o mercado em 1988 com o anúncio  do ilustre Mega Drive. Assim, a SEGA tomou, pela primeira vez na história, a posição da Nintendo no topo do mundo e despertou uma rivalidade que prosperaria por gerações. Fato é que o Japão, representado por um encanador bigodudo italiano radicado em Nova York e por um ouriço azul de luvas e sapatos vermelhos, virou praticamente sinônimo de videogame.

Super Nintendo e Mega Drive, consoles que marcaram uma era [Imagem: Reprodução]
Super Nintendo e Mega Drive, consoles que marcaram uma era [Imagem: Reprodução]

 

Produtoras e desenvolvedores japoneses

Além da SEGA e da Nintendo, em 1994 a Sony decidiu produzir seu próprio console, o PlayStation. Dessa forma, durante a quinta geração, haviam três grandes produtoras de consoles que disputam o mercado. Contudo, a SEGA decidiu deixar de lado a produção de consoles e passou a priorizar o desenvolvimento de jogos e softwares, abrindo espaço para a Microsoft, que, em 2001, lançou o XBOX, para competir com o PlayStation 2 e o Gamecube. Essas três empresas dominam o mercado de consoles até hoje.

A Nintendo é mundialmente conhecida como uma desenvolvedora que preza muito pelas suas tradições, mas que, em contraponto, sempre busca pensar fora da caixa. Essa dualidade pode ser enxergada, por um lado, na valorização dos personagens clássicos da marca, e pelo outro, na produção de consoles ousados, como o Wii — que baseia-se na captura dos movimentos do jogador — e o recente Nintendo Switch — com o novo conceito de console híbrido: portátil e estático. 

Ademais, é indispensável tratar, mesmo que brevemente, do maior produtor de jogos da história: Shigeru Miyamoto. Este homem foi simplesmente o responsável por emplacar franquias como Super Mario, The Legend of Zelda, Donkey Kong, Metroid e Star Fox. Em outras palavras, Miyamoto foi um dos principais agentes que ajudaram a evitar a precoce morte dos videogames.

A Sony atualmente mantém o foco no mundo ocidental, onde estão concentrados seus principais estúdios produtores de jogos de grande orçamento, além da produção e gerenciamento da PlayStation, mas ainda mantém profundas relações com sua origem japonesa. A trilogia de Fumito Ueda — ICO, Shadow of the Colossus e The Last Guardian — é uma das grandes contribuições japonesas para o estúdio, com histórias enigmáticas e trabalho artístico impecável.

Outra grande produtora do Japão é a Capcom, responsável por franquias como Resident Evil, Devil May Cry e Street Fighter, referências nos gêneros em que se encaixam. A Capcom também soube diversificar bem a produção, tendo representado e agradado ao mercado japonês e ao ocidental. Dentre seus títulos, Resident Evil possui um forte apelo ao Ocidente, Okami é uma ode à mitologia e à arte japonesa e Devil May Cry utiliza personagens que lembram animes, mas também  a tradição cristã, pouco presente no Oriente.

A Konami, por sua vez, é responsável por importantes franquias, entre elas estão Castlevania, Silent Hill e Metal Gear. Essa última merece destaque para Hideo Kojima, a mente por trás de toda saga. O autor é aclamado pela sua criação de narrativas complexas. Porém, após confusões nos bastidores, Kojima se separou da Konami e produziu Death Stranding, jogo que dividiu a crítica e o público, mas que ainda assim manteve as características do produtor japonês e suas narrativas um tanto confusas.

Hideo Kojima, em sua pequena participação no seu jogo Metal Gear Solid V: Ground Zeroes [Imagem: Reprodução/Konami]
Hideo Kojima, em sua pequena participação no seu jogo Metal Gear Solid V: Ground Zeroes [Imagem: Reprodução/Konami]

 

O Japão e o Ocidente

Após anos de hegemonia no mercado de games, a indústria japonesa vem disputando espaço com a indústria estadunidense. A própria saída da SEGA e entrada da Microsoft no setor representou uma redução de espaço nunca enfrentada pelas produtoras japonesas. Além da Microsoft, produtores ocidentais como Ubisoft, EA, Bethesda e Take-Two já possuem um espaço enorme no mercado. Além disso, a Sony “ocidentaliza-se” cada vez mais, adotando um caminho diferente da Nintendo, que se mantém fiel ao Japão. 

O conceito de imperialismo americano, aliás, também pode ser observado no segmento dos jogos, pois, devido ao seu desenvolvimento tecnológico e à presença de um mercado interno aquecido no segmento, a indústria cresceu e se espalhou para o resto do mundo, como qualquer outra linha de entretenimento norte-americano. 

Mesmo assim, em se tratando de exportar entretenimento, o Japão se mostra uma potência, ainda que menor que os Estados Unidos. Além dos jogos, os mangás e suas adaptações em animes, por exemplo, são um sucesso mundial, e chegam a rivalizar com os quadrinhos e animações de super-heróis americanos. Alexandre Uehara acredita que isso ocorre porque “o Japão foi o primeiro a ocupar esse mercado por possuir uma boa base de indústria”.

A representação da tradição japonesa também não poderia faltar nessas mídias. Quando se pensa no imaginário popular sobre a terra do sol nascente, certamente são pontos de destaque a qualidade de vida, desenvolvimento, tecnologia e as tradições culturais —entre elas, a rica história japonesa, que possui figuras importantes como ninjas e samurais. Tais guerreiros viveram durante o Japão Feudal (1185-1868) e todo universo que os cercavam se mantém presente em diversas produções da cultura popular. Nos jogos, a franquia Ninja Gaiden e o jogo Sekiro: Shadows Die Twice — eleito o jogo do ano de 2019 pelo Game Awards — acompanham a jornada de ninjas. Entre os samurais, Nioh e Ghost of Tsushima são os destaques (este último inclusive homenageia o cineasta Akira Kurosawa — responsável por dirigir diversos filmes com samurais — inserindo um modo preto e branco para o jogo).

Aproveitando o clima olímpico, vale ressaltar que o Japão já sediou duas Olimpíadas, que foram, cada uma de sua forma, muito importantes para a construção e fixação da imagem do país mundo afora. Esse fenômeno, que ocorre por meio da disseminação da cultura — e não da guerra — é chamado Soft Power. Em termos gerais, o Japão, após sair derrotado na Segunda Guerra Mundial, perdeu sua força militar, denominada Hard Power, e passou a produzir ferramentas culturais que pudessem dominar o mundo por meio da admiração e do vínculo ao invés das armas e do poder. 

Os Jogos Olímpicos de 1964 são um exemplo perfeito do domínio do imaginário global através da admiração. Segundo Alexandre Uehara, “a Olimpíada de 64 teve essa ideia da ‘fênix japonesa’, o renascimento do Japão”, representado simbolicamente pelo acendimento da pira olímpica por Sakai Yoshinori, o homem que nasceu na província de Hiroshima — em Miyoshi — no dia 6 de agosto de 1945, data do bombardeamento atômico de sua cidade.

Sakai Yoshinori, o “bebê Hiroshima”, acendendo a pira olímpica nos Jogos de 1964. [Imagem: Reprodução/COI]
Quanto aos efeitos do Soft Power, conforme Uehara, a grande questão está no fato de que “o Japão conseguiu utilizar deste evento para mostrar o quanto havia se recuperado econômica e tecnologicamente da Segunda Guerra”. Para Alexandre, a Olimpíada significou “um relançamento do Japão para o mundo”. O país já havia atingido o patamar de referência tecnológica, contudo, ainda faltava o reconhecimento internacional deste feito. Portanto, pode-se afirmar que foram os Jogos de 1964 os responsáveis por substituir a imagem de um Japão abalado pela guerra por um Japão potência. Foi este o evento que fez com que o mundo, por conta própria, pudesse admirar a terra do sol nascente. Ainda que recente, os jogos de 2021 — a segunda Olimpíada japonesa — possuíram essa mesma ideia de promoção, mas no quesito sustentabilidade. No entanto, essa questão acabou ofuscada pela pandemia da Covid-19, que roubou o brilho e atenuou a festa em Tóquio.

Entretanto, não foi apenas com a admiração promovida pelas Olimpíadas que o Japão pôde construir e espalhar sua imagem, poder e influência pelo planeta. O vínculo presente nas mais diversas produções culturais japonesas, destacadas ao longo do texto, são igualmente essenciais para a abrangência do Soft Power japonês. Foram justamente os grandes símbolos dos videogames, como Mario e Sonic, e outros símbolos culturais que levaram o Japão para os quatro cantos do globo. A influência dessas produções — como animes, mangás e jogos — tornaram-se tão presentes no imaginário que hoje representam tanto o seu país quanto a própria bandeira. Prova viva deste fenômeno foi — de volta às Olimpíadas — o até então primeiro ministro japonês, Shinzo Abe, ter aparecido em pleno Maracanã, na cerimônia de encerramento dos Jogos Olímpicos Rio 2016, trajado de chapéu do Mario. Portanto, pode-se dizer que a desmilitarização japonesa ao final da Segunda Guerra não significou uma derrota para o ambicioso imperialismo japonês. Muito pelo contrário, foi a partir deste ponto que as armas foram substituídas pelo encanto contido em cada pedaço de entretenimento pronto para, através do vínculo, dominar o mundo.

Shinzo Abe, então primeiro ministro japonês, com o chapéu do Super Maria durante as olimpíadas de 2016, uma forma de Soft Power [Imagem: Reprodução/Wikimedia]
Shinzo Abe, então primeiro ministro japonês, com o chapéu do Super Mario durante as olimpíadas de 2016, uma forma de Soft Power [Imagem: Reprodução/Wikimedia]
Entre jogos, entretenimento, indústria, cultura e tradições, o Japão conseguiu sua enorme influência em diversas áreas, firmando-se como um país de destaque na política, economia e cultura. É difícil encontrar alguém que não possua alguma memória afetiva que envolve a terra do sol nascente, por mais diferentes gostos e preferências pessoais, o que mostra o poder desta nação que encanta o mundo.

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