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A volta de The Handmaid’s Tale: bendita seja a resistência feminina

A segunda temporada de The Handmaid’s Tale estreou com dois episódios perturbadores na última quarta-feira (25) na plataforma de streaming Hulu. A série é baseada no livro homônimo de Margaret Atwood e teve a sua primeira temporada exibida no ano passado, tornando-se um fenômeno entre os críticos e sendo considerada por muitos como a melhor …

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A segunda temporada de The Handmaid’s Tale estreou com dois episódios perturbadores na última quarta-feira (25) na plataforma de streaming Hulu. A série é baseada no livro homônimo de Margaret Atwood e teve a sua primeira temporada exibida no ano passado, tornando-se um fenômeno entre os críticos e sendo considerada por muitos como a melhor produção de 2017.

“Eles nunca deveriam ter nos dado uniformes se não quisessem que fossemos um exército”; dita no início do episódio final, a frase narrada por June (Elisabeth Moss) dá o tom do que está por vir. O clima de união e resistência feminina foi construído aos poucos durante a primeira temporada e promete exercer um papel de destaque na trama a partir de agora.

Carregada de um tom sombrio, a série volta fazendo jus ao que mostrou em sua temporada inicial: o desconforto pela proximidade do universo distópico com a realidade faz-se presente em seu retorno, causando arrepios em quem ousa traçar paralelos com a atualidade.

“June”: perguntas e respostas

Deixado com June dentro de um carro desconhecido, o espectador compartilhou da angústia da protagonista quanto ao seu destino incerto: para onde levaram a aia? O que farão com ela? Nick é confiável? Quem dirige o carro? Com tantos ganchos a serem respondidos, o primeiro episódio da temporada, “June”, surge rodeado de expectativas e entrega como resposta um misto de horror, medo, confusão e esperança ainda nos primeiros minutos de exibição, causando um nó na garganta já tão característico de The Handmaid’s Tale. A incapacidade de entrar na narrativa e intervir na situação desespera aos que se colocam no papel das personagens, ao ponto de ser difícil separar a impotência sentida pela ficção do mundo real.

O ato de rebeldia demonstrado pelas aias ao se recusarem a apedrejar Janine (Madeline Brewer) até a morte coloca as mulheres em uma posição de eminência punitiva. O resultado dessa ação gera revolta com o seu desfecho baseado em um terror psicológico cruel, que faz o espectador mergulhar no clima de desespero da cena. A trilha sonora cumpre o papel de trazer à tona fortes emoções: “This Woman’s Work”, de Kate Bush, toca ao fundo e funde-se ao choro e respiração pesada de mulheres que se veem como ratos acuados, sem qualquer chance de resistência. Nesse cenário,  a gravidez de June, descoberta no final da temporada passada, é um ponto crítico na definição do seu futuro. Em uma sociedade abatida por uma onda de esterilidade – onde bebês são considerados milagrosos e fruto do poder divino – gerar uma criança pode ser a diferença entre a vida e a morte, o castigo e o cuidado, e June tem consciência de sua posição.

O caminho até a resistência: Simbolismos

Na temporada passada, acompanhamos a evolução de June e a sua transformação em aliada da resistência. Os novos episódios vêm para consolidar a força revolucionária da protagonista e alguns elementos simbólicos nos levam à essa conclusão.

Ao final do primeiro episódio vemos a aia abrindo mão de suas vestimentas. As roupas, no contexto da série, definem a sua posição na sociedade. No caso das aias, as vestes vermelhas e o chapéu branco simbolizam toda a opressão a que elas foram submetidas, por isso a queima é tão simbólica. Ao atear fogo na representação do seu sofrimento, June se liberta do controle que era exercido sobre ela, ganhando a força necessária para lutar contra os opressores. O fogo, historicamente carregado do misticismo da purificação, foi muito usado na Idade Média para executar mulheres na fogueira como forma de expurgá-las do pecado, trazendo um significado ainda mais relevante para a cena.

Outro fator simbólico é o corte do cabelo da protagonista. Tido como o ápice da feminilidade e cultuado pela religião, o cabelo longo traz todo o peso do lugar da mulher na distopia. Cortá-lo é mais do que uma forma de disfarce, mas uma resposta às regras sociais impostas. Ao fazê-lo ela mesma, June toma o controle da situação para si e assume o protagonismo de sua narrativa.

Em uma das cenas mais fortes do episódio, e também com um grande teor simbólico, June corta a própria orelha a fim de livrar-se no chip implantado nela. A sequência é angustiante, repleta de sangue e expressões de dor e a coragem da aia é admirável. Ao final, a protagonista aparece com a blusa branca coberta de vermelho, em uma imagem marcante que contrasta com a expressão de alívio no rosto por finalmente sentir-se dona de si.

Há de se exaltar aqui a atuação de Elisabeth Moss. Em uma de suas mais brilhantes performances, a atriz transmite no olhar sentimentos complexos que interagem entre si, tarefa difícil para qualquer ator mas que ela realiza com maestria, em um claro momento de ouro em sua carreira. Moss molda seu rosto e dá ao espectador a real magnitude da cena, transmitindo um misto de raiva, determinação, dor e alívio em cada linha de expressão. A atriz é brilhante durante todo o tempo dos episódios, mas o destaque fica para o momento em que ela finalmente abre mão das correntes simbólicas que a prendiam, adentrando de vez na resistência feminina com uma força admirável.

“Unwoman”: As colônias pelo olhar de Emily

Em “Unwoman”, segundo episódio, temos um foco maior em Emilly (Alexis Bledel). Capturada por seu envolvimento com a resistência e condenada e mutilada por “traição de gênero” (homossexualidade), a personagem nos introduz ao universo das colônias de mulheres. Em um ambiente hostil, permeado por solos contaminados por radiação, as condenadas são colocadas sob um regime de trabalho forçado e sofrem uma série de punições físicas e psicológicas. A lógica das colônias se assemelha muito a dos famosos campos de concentração nazistas, onde os enviados eram forçados a trabalhar em situação degradante até à morte.

Por sua formação científica, Emily exerce um papel de cuidadora, reduzindo na medida do possível o sofrimento das demais mulheres. Entretanto, a chegada de uma esposa condenada pelos “pecados da carne” revive nela a revolta contra um sistema cruel e opressor e a membro do mayday (resistência) mostra à que veio de forma surpreendente.

A atuação de Alexis Bledel também merece destaque. Bledel brilha dos flashbacks às cenas atuais, trazendo à tona toda a personalidade que a personagem exige. A atriz tem seu momento de glória nas cenas da colônia, ao passar para o espectador toda a raiva e frieza que a narrativa pede.

A fotografia aqui compõem o clima de forma magistral. Com cenas permeadas por tons terrorosos pesados e verdes sujos, as colônias chegam à nós como o ambiente insalubre que são, trazendo à tona toda a sensação de sufocamento e humilhação que o cenário exige. O espectador não assiste à cena indiferente, mas é imerso em um ambiente caótico e doloroso. A imagem, fazendo uma referência religiosa, remete à um mundo pós apocalíptico, onde mulheres se amontoam entre névoas tóxicas e solos contaminados.

Flashbacks: a escalada conservadora

Intercalados com o tempo linear, os flashbacks seguem em alta na nova fase da produção. O retorno ao passado visa mostrar a nós como se deu o processo de mudança de uma sociedade democrática para a autocracia religiosa em que a história se passa, e é justamente aí que os paralelos com o cenário atual tornam-se assustadores.

Nos flashbacks, vemos June como uma mulher de negócios independente, mas também como mãe e esposa, situação padrão de boa parte das mulheres no século XXI, que conciliam diariamente a vida pessoal e profissional. Emily, por sua vez, é um professora universitária e pesquisadora. Abertamente homossexual, a mulher é legalmente casada, e assim como June, concilia sua rotina de mãe, esposa e profissional, nada muito diferente do que vemos hoje com a regularização do casamento homoafetivo.

A Gilead pré golpe, assustadoramente, mostra os EUA em uma situação bem semelhante à vivida hoje, o que causa medo em relação ao futuro. A ascensão do conservadorismo deu-se de maneira gradual, culminando em um cenário extremo, mas com discursos que identificamos constantemente nas redes sociais e até mesmo nas ruas do Brasil.

Retirada de Direitos e o Feminismo

O sucesso da série se deu em boa parte por conta de suas críticas sutis ou violentas à assuntos atuais, e a segunda temporada segue pelo mesmo caminho. Ao abordar a gravidez de June, a produção coloca em foco o valor de cada vida sob o ponto de vista religioso. Após ser estuprada em nome da lei divina vigente, ela não tem humanidade, mas sim é uma incubadora humana, valorizada exclusivamente em função do embrião que carrega em seu ventre – embrião este que também não é considerado dela, mas de seu comandante e sua esposa. Nesse momento, June não é apenas uma personagem, mas a representação de todo um grupo de mulheres violentadas por uma mentalidade conservadora crescente. O feto é a prioridade e a vida de quem o gera fica em segundo plano, idéia bem próxima ao discurso de grupos “pró-vida” que vem ganhando força no cenário mundial.

Nos EUA, o aborto é permitido por lei desde 1973, quando um precedente despenalizou o procedimento sobre a premissa de que a criminalização era inconstitucional por ir contra o direito à privacidade. Entretanto, com o passar dos anos, cada estado legislou sobre a questão, criando regras e restrições próprias e tornando o acesso mais difícil. Atualmente, com Trump sendo abertamente contra a legislação vigente, o discurso reproduzido na série de retirada de direitos femininos ganhou força entre os conservadores americanos. Já no Brasil, o procedimento é permitido apenas em casos de estupro, anencefalia ou risco de vida da mãe. Entretanto, projetos liderados pela bancada religiosa, como a PEC 181 (cavalo de tróia), se aprovados, colocam em risco o direito até nos casos já considerados legais.

Ainda na temática feminista que permeia a série, por meio de flashbacks a problemática “Maternidade x Carreira” é colocada em pauta. June é constantemente questionada quanto à sua capacidade de cuidar da filha Hannah e ter uma vida profissional bem sucedida, chegando a ser julgada como uma mãe inadequada e relapsa que não coloca a criança como prioridade. O curioso é que a mesma cobrança não é feita ao pai da menina, situação bem próxima do que acontece na realidade. Mulheres são vistas como as únicas responsáveis pela criação dos filhos e, por isso, têm sua capacidade profissional e a maternidade questionadas inúmeras vezes. Segundo estudo realizado pelo portal Trocando Fraldas com 11.000 mulheres de todo o Brasil, 56% delas acredita que a ascensão profissional é dificultada pela chegada dos filhos, em função do olhar negativo do mercado para com a maternidade. A pesquisa mostra ainda que a chance do pai ficar em casa com a criança doente é 9 vezes menor do que a da mãe, acúmulo de função que gera a cobrança unilateral mostrada na série.

Casamento, homofobia e retrocessos

Outro ponto de crítica levantado em seu retorno é a escalada da homofobia difundida por fundamentalistas religiosos e a consequente falta de segurança dos direitos conquistados pela comunidade LGBTQ+.

Nos flashbacks, fomos apresentados à vida passada de Emily: conceituada professora universitária, a jovem mulher passa a ter sua vida acadêmica ameaçada em função de sua orientação sexual, sendo forçada por seu chefe (também homossexual) a abandonar suas aulas em função da pressão popular, que alega a imoralidade de sua estrutura familiar. Após deparar-se com um episódio traumático no ambiente de trabalho, Emily pressente o risco e decide viajar para Montreal com sua esposa e filho. Entretanto, ao chegar no aeroporto, é impedida de embarcar porque a validade de seu casamento foi revogada pelas novas leis (divinas).

O discurso da imoralidade das relações homossexuais é facilmente encontrado , até mesmo difundido em estados supostamente laicos, com base em regras religiosas. Emily é a representação crítica de um preconceito ainda presente na sociedade moderna.

Legalizado em todo o território nacional apenas em 2015, o casamento homoafetivo nos EUA sofre uma série de críticas pela parcela conservadora da população. No mundo, em 2017, as Ilhas Bermudas tomaram a inédita decisão de revogar a legalidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo, proibindo-o novamente. A série, assim, busca mostrar que nenhum direito é garantido, criticando de forma direta o ataque fundamentalista contra as garantias conquistadas pelas minorias.

Resistência: a distopia e a realidade

É inevitável ver a transformação social ocorrida ao longo dos episódios e não pensar no caminho que a humanidade está tomando. Protestos como o de Charlottesville, apoiados por políticos influentes e que levantam bandeiras contra mulheres, negros e homossexuais, tornam a identificação ainda mais fácil. A segunda temporada vem pra mostrar que nenhum governo totalitário se instaura do nada, assim como nenhuma distopia é longe o suficiente da realidade para ser inalcançável.  Ao ser perguntado sobre a influência de Donald Trump na segunda temporada da série, o produtor executivo Warren Littlefield não titubeou ao afirmar: “nós nos vemos como parte da resistência. Encontramos mulheres pelos EUA e pelo mundo vestindo as roupas das aias. É uma forma de protesto. É uma honra. Nós queremos contar nossa história sobre como resistir e sobreviver”.

Os próximos episódios de The Handmaid’s Tale vão ao ar toda quarta feira no serviço de streaming Hulu. Nolite Te Bastardes Carborundorum!

Por Amanda Capuano
amandacapuano@hotmail.com

1 comentário em “A volta de The Handmaid’s Tale: bendita seja a resistência feminina”

  1. Pingback: The Handmaid's Tale e o direito da mulher | Sala33 - Jornalismo Júnior

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