Quando o tecido da realidade se despedaça diante de nossos olhos, é difícil saber em quem confiar. Essa é a premissa de Meu Pai (The Father, 2020), filme que marca a estreia do dramaturgo francês Florian Zeller como diretor de cinema. A trama nos apresenta o dilema de Anthony (Anthony Hopkins), que, aos 81 anos, se vê diante de circunstâncias cada vez mais incertas após sua filha, Anne (Olivia Colman), informá-lo de que deixará Londres para viver em Paris. Com a mudança, Anne precisa encontrar alguém para assumir os cuidados diários de seu pai, mas ele reluta em aceitar a incapacidade de se cuidar sozinho. Fatos estranhos começam a acontecer e Anthony não sabe ao certo se o problema está em sua própria mente ou em um plano de sua filha para livrar-se dele e roubar seu apartamento.
A produção inova ao colocar o espectador na perspectiva de Anthony, o que alimenta uma crescente dúvida em quem assiste: seria o personagem um simples narrador não confiável ou estaríamos sendo enganados como ele? Para construir o clima de suspense, Meu Pai explora alterações sutis de cenário, trocas inesperadas de atores e cortes secos que delimitam uma narrativa circular, com cenas que se repetem, mas nunca da mesma forma.
O filme, nesse sentido, permite nuances mais finas do que sua versão original, pensada para o teatro, onde mudanças de cenário geralmente exigem um fechar e abrir de cortinas. Apesar disso, talvez em uma homenagem ao universo teatral, o cenário é reduzido e as portas do apartamento cinematográfico muitas vezes se abrem e fecham como marcas importantes do enredo. A adaptação para as telonas se baseia na peça O Pai (Le Père, 2012), de autoria de Zeller, e é fruto da parceria do francês com o dramaturgo e roteirista inglês Christopher Hampton (Ligações Perigosas).
Além de aumentar o suspense, a construção da narrativa pelo olhar de Anthony nos aproxima do drama vivido pelo protagonista. É impossível conter a emoção diante da performance espetacular de Hopkins. O ator transita por variações de humor com a mesma rapidez com que a realidade parece mudar no filme. E é justamente no jogo entre lucidez e confusão, alegria e raiva, que a produção traz pequenos momentos cômicos e leves — um respiro necessário tanto na obra quanto na vida.
A decadência progressiva do Anthony personagem é espelhada nos mínimos detalhes pelo Anthony ator e evidencia a dor de juntar os fragmentos de uma mente que se esvai. A interpretação impecável rendeu a Hopkins sua sexta indicação ao Oscar, quase trinta anos após ele ter levado a estatueta de melhor ator por seu papel como Hannibal Lecter em O silêncio dos inocentes (The Silence of the Lambs, 1991).
Mas a angústia na trama não se restringe ao octogenário. Embora Anthony seja a estrela, a obra é também uma ode às pessoas que convivem com ele, especialmente Anne. Do ponto de vista da filha de meia idade, uma decisão difícil se impõe: até que ponto cuidar da vida do pai a impede de cuidar da própria vida? A reflexão independe de ela estar casada, divorciada ou no início de um novo amor, algo que só fica claro ao fim da história. Aliás, a compreensão sobre a real condição amorosa de Anne exprime de forma avassaladora os custos que a demência traz às relações de todos os envolvidos.
Colman representa com maestria as contradições inerentes à posição de sua personagem. De um lado, a atriz entrega a delicadeza exigida pelo amor e pelo cuidado com alguém querido. Já em outras cenas, impacta-nos ao expressar a profundidade do sofrimento e do desconcerto quando Anthony deprecia as conquistas de Anne, acusa-a de más intenções ou — o que mais dói — simplesmente não a reconhece.
A força da atuação de Colman lhe garantiu uma indicação ao Oscar como melhor atriz coadjuvante. É a segunda indicação de sua carreira. Em 2019, ela já havia vencido como melhor atriz ao interpretar uma personagem também chamada Anne, no caso rainha da Inglaterra, em A Favorita (The Favourite, 2018).
Quando a mente se torna inimiga e a vida é um labirinto de incertezas, não há espaço para a teimosia, mas sim para o medo e a solidão. Por isso, Meu Pai é um lembrete de que é preciso gentileza e paciência com quem enfrenta as limitações irreversíveis impostas pelo correr do tempo. Tudo isso sem desrespeitar a condição adulta do outro e sem minimizar os desafios e limites de quem é responsável pelo cuidar.
Para reforçar essa mensagem, é importante a oposição entre os comportamentos do suposto marido de Anne (Mark Gatiss e Rufus Sewell) e das cuidadoras Laura (Imogen Poots) e Catherine (Olivia Williams). O genro protagoniza momentos de impaciência e até eventos de maus tratos, sejam eles reais ou não, enquanto as cuidadoras utilizam uma abordagem mais amena, mas quase infantil, ao lidar com as confusões de seu paciente.
Como a produção reflete cruamente medos e dores reais, é difícil classificá-la como drama, suspense ou um daqueles filmes que nos assombram por semanas, ainda que não sejam de terror. Seja qual for a classificação escolhida, a obra é, acima de tudo, um retrato universal de como somos um grande emaranhado de memórias, sem as quais só nos resta perguntar: “Quem sou eu, exatamente?”.
Indicado a seis categorias do Oscar, incluindo melhor filme, Meu Pai se junta a Amor (Amour, 2012) no panteão de produções belas, tristes e inesquecíveis sobre o cotidiano da senescência.
A estreia brasileira do filme está prevista para 09 de abril, por meio das plataformas digitais Now, Apple TV e Google Play. Confira o trailer legendado:
*Imagem de capa: Reprodução/YouTube/California Filmes