O protagonista de Simpatia pelo demônio (Companhia das Letras, 2016), um homem de meia idade identificado pelo apelido pejorativo de Rato, vive de modo extremamente hostil — funcionário de uma agência humanitária, seu trabalho consiste em negociar paz em áreas de conflito — mas isso não o impede de ser profundamente vulnerável. Nem de ser completamente ignorante sobre a própria fragilidade. E por isso ele paga um preço caro: nas mãos do chihuahua — outro apelido pejorativo, propositalmente no minúsculo —, um neurocientista manipulador e narcisista, ele é sabotado repetidamente ao longo do livro. E, leitor ou leitora, como ele sofre. Chega a dar pena. Mas o coitado quase sempre volta atrás de mais dor. E te adianto: ele não morre, mas nem por isso sobrevive.
Temos aí o tema central do livro: a desilusão amorosa como consequência da busca por validação pessoal e por querer fugir da solidão. Já sabemos que é uma temática banal, isso faz parte do imaginário popular. Mas o grande diferencial do romance é o modo como Bernardo Carvalho trata disso. A primeira parte de um total de quatro dá a entender que se trata de um romance de guerra, mas vemos rapidamente o assunto esmaecer e passar ao segundo plano. A guerra, compreendemos após certo tempo, é uma alegoria para o relacionamento tempestuoso dos personagens — onde o confronto não é a exceção, mas o estado normativo.
Essa é, inclusive, a tese do doutorado que eleva Rato ao patamar do prestígio acadêmico internacional: de que “a paz é um estado temporário de exceção”, um “cansaço da guerra”, de que a barbárie sempre retorna. A tese está certíssima, e talvez nunca tenha feito tanto sentido como no contexto atual de fim do mundo; faltou ao Rato aplicá-la na vida pessoal. Como avisa o narrador onisciente, bem no começo, “é possível visitar o horror alheio e sair ileso; no entanto, ninguém escapa ao próprio horror.” É em cada recaída do protagonista que exploramos os nuances desse horror com riqueza de detalhes. O formato de lista e os parágrafos curtos empregados pontualmente funcionam bem, e frequentemente contém um mundo de significado.
Vale pontuar que não é um romance de tese — ao menos não a meu ver —, mas um romance com teses. A academia tem papel importante na trama e os teóricos de várias áreas são citados com frequência, mas a premissa básica de contar uma história não é prejudicada no processo. No campo das referências, é muito feliz a escolha dos romances de Bataille para ilustrar vários aspectos da ruína das relações humanas, esta sempre motivada pelo desejo. Se a guerra é o relacionamento, a violência é o sexo — também explorado brilhantemente. Simpatia pelo demônio é um livro muito bom. Você deveria lê-lo.
Por Laura Castanho
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