Pela simplicidade e fé religiosa, Aguazul poderia ser qualquer cidade pequena do interior brasileiro, se não fosse por todo o mistério que a torna esquisita e assustadora. É nesse cenário que se desenvolve a trama do primeiro suspense brasileiro da Netflix. O Escolhido, dirigida por Michel Tikhomiroff, é uma adaptação de um seriado mexicano, Niño Santo (2010). A premissa é a mesma: uma equipe médica viaja até uma vila remota com o objetivo de vacinar a população. De uma hostil recepção à insistência dos jovens médicos, se conhece um misterioso culto chefiado por um líder curandeiro, capaz de realizar o que aparentam ser milagres.
A equipe médica, originalmente instalada em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, é formada por Lúcia (Paloma Bernardi), Damião (Pedro Caetano) e Enzo (Gutto Szuster). Quando a tentativa de estabelecer contato com Aguazul falha, os três são enviados ao local para vacinar a população contra uma nova mutação do vírus da zika. Ao chegar à região, eles conhecem Silvino (Francisco Gaspar), um local que os alerta sobre o isolamento da cidade, alegando que a única forma de acesso seria pela água.
Ao chegarem no povoamento, são expulsos com furor e seus medicamentos são tratados como veneno. Eis que chega Mateus (Mariano Martins), que se apresenta como uma espécie de líder, esbanjando gentileza e repreendendo o comportamento da população. Ele se mostra pronto para cooperar com os médicos — até que isso comece a ameaçar o isolamento de Aguazul e do Escolhido.
Entre mentiras e omissões, os médicos têm contato com o poder de cura dessa entidade, que se revela uma espécie de líder espiritual muito respeitado pelos habitantes, como um enviado direto do que eles consideram Deus. Cada vez mais, torna-se difícil os médicos escaparem da cidade e suas particularidades.
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Ciência versus Fé
No primeiro reconhecimento da localidade, os médicos se deparam com os dizeres “medicina traz morte”, marcados na parede do posto de saúde abandonado. Essa mensagem vai guiar o debate que se estabelece logo nos primeiros episódios. De um lado, há os três médicos preocupados em cumprir sua função e vacinar os habitantes — em alguns momentos apelando para certa autoridade que, fora da ficção, não seria plausível. De outro, apresenta-se Mateus e toda a população de Aguazul, guiados pelas ordens do Escolhido e pela crença no tratamento milagroso a seu dispor.
Apesar da ficção e do misticismo envolvido, o debate levantado faz lembrar dos movimentos antivacina ocorridos pelo mundo atualmente, como uma extensão da negação da ciência e dos avanços tecnológicos — não, necessariamente, pautados por motivações religiosas. Até que ponto deve-se respeitar a crença alheia quando se trata de colocar vidas em risco? Toda crença significa ignorância? Para o trio de médicos, a vacina da zika deveria ser aplicada a todo custo, mesmo que os habitantes de Aguazul se sentissem desrespeitados e vítimas de uma intoxicação. Embora perca força em alguns pontos, a divergência ciência versus fé permeia toda a narrativa e marca partes cruciais dela.
Representatividade que fica na intenção
Nos primeiros diálogos da série percebe-se a existência de uma preocupação com a representatividade feminina e negra, a partir de conversas tidas entre os próprios personagens. Lúcia é uma mulher no comando de uma equipe formada por homens. Apesar de cumprir, em um primeiro momento, o papel da mulher forte, determinada e independente, a construção da personagem no enredo falha. Por diversas vezes, Lúcia fica à mercê de situações geradas pelos homens, ou precisa ser salva por algum deles. Outras personagens femininas, como Angelina (Alli Willow) e Zulmira (Tuna Dwek), ainda que menos desenvolvidas que a protagonista, também retratam a submissão da mulher promovida pelo roteiro. Eis uma infortune contradição: a narrativa que sinalizava a intenção de combater o machismo acaba por reforçá-lo.
O Escolhido conta com outra minoria como protagonista secundário, sendo Damião um homem negro. Embora seja apontado pela personagem em alguns momentos, o racismo não é explorado com a profundidade necessária. Levantar uma problemática de extrema importância para tratar dela com superficialidade de nada colabora para trazer mais representatividade ao cenário audiovisual.
Profundidade dos personagens compensa enredo confuso
Para o curto tempo disponível — apenas seis episódios —, a série consegue proporcionar o bom desenvolvimento de seus principais personagens. A construção de flashbacks colabora para apresentar o passado desses e suas motivações na trama, principalmente no que diz respeito aos três médicos e a confiança na medicina, mesmo diante à curiosidade do místico.
Talvez por conta da divisão em poucos capítulos, a velocidade com que o mistério se desenvolve é incômoda, e a pressa em solucionar todos os problemas que se aglomeram acaba produzindo um ritmo demasiadamente acelerado e confuso. Apesar disso, a direção é muito boa, a fotografia é envolvente, e as atuações são satisfatórias, com alguns destaques. Silvino, por exemplo, é interpretado com maestria por Francisco Gaspar, sendo praticamente impossível não desenvolver simpatia pela personagem.
Dentre algumas inconsistências no roteiro e falhas de representatividade, O Escolhido, com seu suspense e mitologia, é envolvente, e entrega uma boa temporada. É importante reconhecer a qualidade de uma produção brasileira diante do longo catálogo da Netflix, recheado de produções estrangeiras claramente com maior investimento. O seriado se despede com um gancho, que acena para as possibilidades de renovação da série e o retorno do espectador para a excentricidade de Aguazul.