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Parada LGBT: problemas, méritos, contradições

A comercialização da representatividade e a ocupação dos espaços em um dos maiores eventos LGBT+ do mundo

A 23ª Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo contou com mais de 3 milhões de participantes, segundo os organizadores. A estimativa de movimentação econômica para a prefeitura é de cerca de 403 milhões de reais. Mas para onde vai esse dinheiro? De que forma essa minoria recebe investimentos estatais e apoio de grandes empresas por ter sua imagem associada a campanhas tão lucrativas?

Somos uma mulher bissexual e um homem homossexual. No dia 23 de junho, saímos do metrô Brigadeiro e caímos numa avenida Paulista banhada por cores e representatividade. Conversamos com Camila, Sofia e Alex. Camila e Sofia são mulheres bissexuais, Alex é um homem homossexual. Essas vozes vão se misturar às nossas para contar o que vimos na Parada LGBT+.

Era nítida a intenção das empresas em mostrar seus maiores esforços para se aproximar da comunidade LGBT+ e enfatizar  todo o apoio à sua causa. Grandes bandeiras, letreiros, produtos de edição limitada e itens carnavalescos desfilavam em meio a uma multidão emocionada pela chance de ser o que é em plena luz do dia. O potencial mercadológico que ressurge todo mês de junho não esconde a real intenção das grandes corporações, mascaradas por uma festa lúdica e, supostamente, diversa.

Boné que mistura o símbolo da marca de aparelhos eletrônicos Apple e a bandeira do orgulho LGBT+ a venda na Av. Paulista [Imagem: Laura Toyama]
Enquanto caminhávamos pela avenida, era impossível não pensar em pink money. O termo foi cunhado para designar esse potencial de consumo da comunidade LGBT+, que agora vê perspectivas de identificação num mercado que sempre a marginalizou. Durante os meses de junho tudo é feito para nós: o milk-shake, a camiseta, o boné, o copo, o comercial na TV, a própria Paulista. 

Essa é a manobra comercial que mais se observa num novo horizonte de liberdade sexual e comportamental que veio do fim do século passado. Ainda sem muitas perspectivas de mudança numa sociedade homofóbica e transfóbica, o mercado se demonstra a única área onde essas minorias são bem vindas e aceitas. A representatividade se tornou carta na mão de quem viu a oportunidade de surfar na onda de uma desconstrução que desponta, e joga para baixo do tapete toda a violência e discriminação que ainda existem. 

Camila, que estava em sua primeira parada em São Paulo, comentou como a questão das empresas é complicada, que a maioria delas quer apenas lucrar e que precisamos estar sempre atentos. “Não adianta apoiar um dia e ter atitudes homofóbicas o resto do ano.” Alex disse que é importante existirem empresas apoiando a causa, mas que logotipos coloridos não são o suficiente. “Precisamos de pessoas representando a bandeira dentro e fora da empresa, para não passarmos apenas como um produto a ser consumível em uma época do ano.” Sofia ainda comentou o caso de um gerente do Banco Itaú que foi demitido por falta de conduta após postar foto com seu noivo. Sofia critica o fato de o banco, em junho, mostrar-se como apoiador da causa LGBT+. 

Diante desse aproveitamento da causa pelo mercado, é válido questionar: para quem é a Parada LGBT+ de São Paulo? É certo que a festa acontece em um local público, mas, se ela articula-se em torno de um ideal de consumo, é razoável pensar que é feita para aqueles que podem consumir. Fizemos questão de reparar nisso durante nossa passagem: a grande maioria das pessoas era branca, provavelmente de classe média-alta, e de fato estava consumindo os artigos com arco-íris que eram vendidos pela Paulista, desde as bandeiras que poderiam ser compradas por cerca de 20 reais na saída das estações, até promoções de comidas que vinham coloridas. Tudo gerava muita foto, muito espetáculo em cima das mercadorias. Elas foram feitas para isso, afinal.  

Alex comentou como o meio LGBT+ deveria ser inclusivo, mas que, ainda assim, é preconceituoso contra quem não é alto, branco e malhado, o que poderia ser visto claramente nos trios. “Deveria haver algum equilíbrio nos trios onde cada um pudesse se identificar com sua etnia, corpo e orientação sexual, e até que nesse ano houve uma maior preocupação com isso.” Camila disse ter se sentido representada, que houve uma preocupação por parte da organização de colocar vários integrantes das bandeiras em cima dos trios. Sofia falou sobre como a comunidade LGBT+ é carente de representatividade e, assim, nos apegamos a qualquer coisa. Para ela, mesmo sendo por dinheiro, ainda é uma representatividade. Afinal, o que não é por dinheiro?

Os investimentos que poderiam ser direcionados a essa causa, pelo Estado, são desacelerados pelo embate entre o interesse no apoio de uma população cada vez mais consciente e os antigos valores de uma elite conservadora no comando de São Paulo. Não é novidade a falta de importância dada pela maioria dos representantes políticos ao direcionamento de verbas para causas sociais, sobretudo aquelas que ainda se vêm envoltas numa camada de preconceito e desigualdade, como a dos LGBT+. Exigida pela primeira vez em 2006, a Lei de Criminalização da Homofobia só foi aceita pelo Supremo Tribunal Federal (STF) 15 anos depois, e exemplifica bem esse descaso e essa contradição.

Apoio ao mês da visibilidade LGBT+ nos letreiros das ruas de São Paulo [Imagem: Laura Toyama]
O sinais de pedestre foram alterados pela prefeitura e mostram casais homoafetivos no lugar do símbolo tradicional nos faróis de trânsito [Imagem: Laura Toyama]
Este ano, esse jogo de interesses veio a público pela divulgação, no dia 19 de junho, do corte de verbas para o Centro de Referências e Defesa da Diversidade (CRD), projeto que ajuda gays, travestis, transsexuais em situação de vulnerabilidade. Em funcionamento desde 2008, é um importante órgão de resistência e de acolhimento. Num intervalo de uma semana, na qual acompanhamos a Parada, a prefeitura se reuniu (28 de junho) para revogar a decisão e manter a secretaria em funcionamento. O contraste entre a vibrante festa que prestigiamos, financiada pelo governo, e a farsa que se revelou no corte de projetos dessa relevância tornaram o ambiente contraditório e artificial. 

Além do Estado, as empresas também marcaram presença, no dia 23, na disputa pelo público alvo que consumiria sua representatividade. Era de saltar aos olhos como um espaço diariamente acinzentado e abarrotado de carros podia se transformar num mar de gente vestida e travestida de suas verdades para gerar dinheiro a grandes corporações. Os 19 trios elétricos que rasgaram a avenida Paulista, em meio ao mar de gente que nos embalava durante a tarde daquele domingo, foram financiadas por dezenas de empresas interessadas em vender o espaço que concederam às minorias.

Rede de mercados Carrefour muda suas cores no mês de junho para celebrar o orgulho LGBT+ [Imagem: Laura Toyama]
É interessante perceber como antes a Parada  tinha um teor político muito mais presente — usando um jargão gay, causava. Em 2015, por exemplo, uma mulher transexual gerou polêmica nas redes sociais ao subir em um carro elétrico crucificada como Jesus para representar a dor da população trans. Hoje, quem sobe nos carros elétricos são, em suma, cantores pop. A Parada em si tornou-se pop. Tão pop que tivemos grandes dificuldades de andar pelo evento que bateu recordes: segundo levantamento da Prefeitura de São Paulo, houve um lucro 40% maior que no ano passado e um público que superou em 78% o número de visitantes de 2017, último ano que se fez esse tipo de sondagem. 

 A vulgarização da representatividade se demonstrou no volume de produtos à venda nas calçadas da famosa avenida e na falta de ações concretas para melhorar a vida dessa população no dia-a-dia. A representatividade sem luta é apenas mais uma estratégia mercadológica, baixa até para os outros artifícios do capitalismo. A busca constante pelo lucro transformou um dia de celebração e resistência numa vitrine de acessórios coloridos e vazios de significado. 

 

Nem só de pink money vive a Parada

Há mérito, no entanto, naquelas 3 milhões de pessoas que saíram de casa e caminharam ao nosso lado pelo direito de existir. Apesar do carnaval que foi feito às custas de nossa luta, o espaço ocupado ainda fala mais alto que os interesses rasos de quem não sente na pele o abandono, o ódio e a violência. Se, por um lado, a Parada pode ser entendida como um “carnaval do pink-money”, por outro, ela pode ser vista simplesmente como um carnaval de pessoas que não costumam se expressar e ocupar o espaço público nas proporções desse 23 de junho. 

Bandeiras do orgulho voam sobre as pessoas que ocupam o espaço da avenida [Imagem: João Mello]
Enquanto íamos à Parada, encontramos diversas pessoas “vestidas a caráter”. Para o mundo, elas pareciam dizer “sim, eu sou LGBT, eu existo, eu estou aqui”. Tanto nas ruas próximas à Avenida Paulista quanto nas estações e nos vagões do metrô, as pessoas não tinham receio de esconder quem eram e se preparavam com animação para mais uma parada. Talvez a grande vitória do evento esteja nas pessoas, não na organização em si.

Para muitos, a festa é uma oportunidade única de se expressar. Outras grandes festas de rua, bares e praças podem se mostrar lugares perigosos para uma pessoa LGBT+. Andar de mãos dadas com alguém do mesmo sexo, usar um certo tipo de roupa ou ter uma atitude que desvia da dita normalidade pode representar um risco de morte, a depender da situação. Enquanto a Paulista é Parada, esse risco parece diminuir: pressupõe-se que aqueles que estão na rua são adeptos da mesma causa, falam de amor, de compreensão. Alex nos falou sobre esse sentimento: “sinto que eu estou sendo acolhido diferente do que sinto na minha família, é um dia muito especial pra mim, onde posso ver que eu não sou um monstro ou um erro como tantos dizem que somos”.

Parece existir uma certa cumplicidade entre as pessoas nesse tipo de ocasião. Enquanto estávamos sentados vestidos com nossos devidos trajes coloridos esperando alguns amigos chegarem, um senhor se ofereceu para tirar uma foto nossa, porque, segundo ele, nós e a luz estávamos bonitos, um cachorro passou com uma bandeira LGBT+ amarrada ao pescoço e nos tirou suspiros, diversos casais compostos por pessoas do mesmo sexo passavam sem fazer a mínima questão de se esconder e nos tirou orgulho. 

Enquanto íamos de metrô, pela linha 5, pusemos nossos olhos sobre uma senhora que parecia exalar desagrado. Cogitamos o fato dela estar incomodada com a quantidade de pessoas aparentando sua “sexualidade não-hetero” no transporte público. Imaginamos o que estaria se passando pela cabeça dela naquele momento. Ela estaria incomodada com o agito incomum no metrô, semelhante ao que acontece no carnaval, ou por que essa movimentação incomum vinha de pessoas LGBT? Camila ofereceu uma outra visão nos contando como a própria experiência de chegar até a Paulista, com todo mundo colorido, cantando e se divertindo já tem uma energia muito boa. 

Na Paulista, cores do arco-íris tremulavam sobre os prédios e ornamentavam os ombros. Em tempos nos quais o presidente critica o STF por ter aprovado a lei anti-homofobia ou faz declarações como que nunca passou por sua cabeça ter um filho gay porque seus filhos tiveram uma boa educação, é importante ter essas bandeiras erguidas por mais de 3 milhões de pessoas na mais importante avenida do país, que já sediou atos e protestos fundamentais para a definição da conjuntura política do país. 

Rapaz à caráter saindo da estação Brigadeiro em direção à Parada [Imagem: Laura Toyama]
Por isso, é extremamente simbólico que, religiosamente todos os anos, a Parada continue a acontecer e as pessoas façam questão de sair de suas casas para dizer que são LGBT+. Porém até que ponto pode-se observar na Parada um local de luta? Talvez ela não o seja. Mas ela pode ser um lugar para questionar o que estamos fazendo como movimento. Queremos a atenção do mercado ou queremos o direito de andar na rua em dia comum sem sermos agredidos? Queremos uma bandeira no milk-shake ou que a bandeira sirva para representar todos os LGBT+, de todas as classes, de todas as cores?

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