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O Escapismo Nostálgico de ‘Era Uma Vez… em Hollywood’

A experiência de assistir um filme é sempre moldada pelo contexto. O período, cultura e as experiências pessoais do espectador informam e influenciam a maneira como uma obra é recebida.  Em alguns casos, cineastas bastante autorais e populares se tornam seu próprio contexto. À medida que a audiência vai se familiarizando com o estilo próprio …

O Escapismo Nostálgico de ‘Era Uma Vez… em Hollywood’ Leia mais »

A experiência de assistir um filme é sempre moldada pelo contexto. O período, cultura e as experiências pessoais do espectador informam e influenciam a maneira como uma obra é recebida. 

Em alguns casos, cineastas bastante autorais e populares se tornam seu próprio contexto. À medida que a audiência vai se familiarizando com o estilo próprio e maneirismos singulares de um criador, o simples nome dele ou dela já cria certas expectativas na pessoa entrando na sala de cinema. 

Quentin Tarantino é um desses cineastas.

 

Quentin Tarantino [Imagem: Reprodução/Sony France]
Quentin Tarantino. [Imagem: Reprodução/Sony France]

Um dos diretores mais populares da contemporaneidade, ele construiu uma marca bem específica ao longo de sua carreira. Violência, diálogos sagazes e referências à outros filmes, por exemplo, são algumas das características mais comumente associadas com seu trabalho.

Ao se tentar compreender completamente os mecanismos internos de Era Uma Vez… em Hollywood (Once Upon a Time… in Hollywood, 2019), é útil olhar para os padrões de como certos temas e ferramentas narrativas são utilizados em seus filmes anteriores.


Parte I: Vingança

 

Uma Thurman em Kill Bill, de Tarantino. [Imagem: Reprodução/Miramax Films]
Uma Thurman em Kill Bill. [Imagem: Reprodução/Miramax Films]

Vingança é um tema cativo na filmografia de Tarantino, tanto que um de seus filmes mais famosos, Kill Bill (2004), é um grande pastiche de diversos clássicos de vingança. Mas, talvez o exemplo mais iluminador de como ele o utiliza em sua obra está no longa seguinte à saga de Beatrix Kiddo, À Prova de Morte (Death Proof, 2007).

Death Proof é um suspense de slasher sobre um dublê, Mike McKay, que assassina jovens mulheres em acidentes automobilísticos forjados usando seu carro “à prova de morte” (apenas para o motorista). 

Ele começa apresentando ao espectador um grupo de mulheres que seguimos enquanto conversam e vão até um bar comemorar o aniversário de uma delas, Julia. Mike as segue por um tempo e interage com elas um pouco. Então, mais ou menos na metade do filme, passa por cima delas com sua arma em forma de carro, provocando as mortes brutais que a câmera faz questão de nos mostrar detalhadamente.

O filme então vai para um grupo completamente diferente de mulheres, entre elas Zoë Bell (a dublê de Uma Thurman em Kill Bill, interpretando uma versão fictícia de si mesma). Elas também são perseguidas por Mike, mas são capazes de lutar contra ele e o matam.

A estrutura não convencional desse roteiro – algo que nunca foi novo para Tarantino, que já usava narrativas não lineares em seu primeiro filme –, que introduz aquelas que são essencialmente as protagonistas da história só depois de quase metade da duração, faz muito sentido quando se analisa a forma como o diretor está usando a identificação ali.

Tradicionalmente, a teoria básica de roteiro diz que a audiência é capaz de se identificar com qualquer personagem, independentemente do caráter, desde que ele tenha duas coisas: um desejo claro (eles querem algo) e agência (a capacidade de influenciar a trama com suas ações).

Em geral, filmes sobre vingança usam o sofrimento durante a primeira parte do filme (ou flashbacks) para injetar no protagonista o desejo bem específico de fazer os antagonistas sofrerem, ao mesmo tempo em que a agência para fazê-lo lhe é negada.

Em Oldboy (Oldeuboi, 2003), de Park Chan-Wook, por exemplo, Oh Dae-su passa o primeiro ato preso, completamente impotente, simultaneamente desejando escapar para se vingar de quem o colocou ali e matou sua esposa. Quando ele finalmente é libertado, esse desejo finalmente pode se manifestar numa caçada sanguinária por seus captores.

Existem dois tipos de violência na obra de Tarantino: a intensamente desconfortável, que os antagonistas infligem nos protagonistas, e a catártica, que é realizada em retribuição pela primeira. 

Para fazer com que o espetáculo escatológico realmente funcione, que o público fique genuinamente eufórico quando os vilões, seja o assassino em série de Death Proof, os nazistas de Bastardos Inglórios (Inglorious Bastards, 2009) ou os escravocratas em Django Livre (Django Unchained, 2012), são brutalmente mortos pelos heróis, o diretor passa a primeira parte da história estabelecendo e enfatizando visualmente o quão cruéis eles são, de forma que o público chegue ao final desesperados para que qualquer um faça essas pessoas terem o que merecem.

É por isso que Death Proof consegue trocar o elenco de protagonistas no meio e funcionar mesmo assim. Porque a primeira metade não é sobre desenvolver as protagonistas para o público ficar do lado delas. É sobre desenvolver o vilão para que o público fique do lado de qualquer um que se oponha a ele.


Parte II: História Alternativa

 

 Jamie Foxx em Django Livre, de Tarantino  [Imagem: Divulgação/Columbia Pictures]
Jamie Foxx em Django Livre.  [Imagem: Divulgação/Columbia Pictures]

Em 2012, em entrevista em uma cabine de imprensa de estreia de Django Livre, Tarantino expressou um desejo de fazer, além de Bastardos Inglórios e Django Livre, um outro filme explorando uma “atrocidade histórica”:

“Isso de fato parece pedir por algum tipo de trilogia, eu não deveria parar em só dois, deve haver pelo menos mais um em que eu possa fazer das vítimas os vitoriosos e vitimizar os vitimizadores.”

Nesses dois filmes, Tarantino vai além da exploração do sentimento de retribuição das narrativas de vingança pessoal para explorar algo mais amplo. 

A História, mesmo a versão hegemônica e muitas vezes incompleta com a qual a maior parte das pessoas tem contato através da escola, é marcada por diversos horrores, tragédias e opressões. 

A maior parte das pessoas sente um incômodo vago em relação a isso, uma sensação angustiante de impotência frente à violência e injustiça que marcam o passado (assim como o presente) do mundo em que vivemos.

Esses longas capitalizam em cima dessa sensação. O que eles vendem é a oportunidade de, do conforto de suas cadeiras, através da ficção, ter a catarse de viver em uma realidade mais agradável. Uma realidade em que o bem vence no final, um grupo de judeus metralha a cara de Hitler e bota fogo num cinema com um monte de nazistas dentro, um homem negro escravizado se rebela e massacra os captores de sua esposa.

Apesar de também ser ambientado em um período histórico dos EUA cheio de tensões, o pós Guerra de Secessão, o filme que sucedeu Django Livre, Os Oito Odiados (The Hateful Eight, 2015), não se encaixa exatamente nesse padrão para ser o terceiro dessa trilogia. Ele só viria quatro anos depois, com…


Parte III : Era Uma Vez… em Hollywood

Em 8 de agosto de 1969, quatro membros da Família Manson, seita liderada por Charles Manson, foram até a casa da atriz Sharon Tate, grávida de 8 meses na época, e assassinaram brutalmente ela e seus quatro amigos que estavam na residência.

Quando foi anunciado que o nono filme de Quentin Tarantino se passaria nesse mesmo ano, e que Margot Robbie havia sido escalada para interpretar Sharon Tate, os fãs automaticamente começaram, apesar das objeções do próprio diretor, a pensar nele como o “filme do Tarantino sobre o Charles Manson” ou “filme do Tarantino sobre o Caso Tate-LaBianca”.

E, considerando essa temática e a tendência que ele vinha estabelecendo com Bastardos Inglórios e Django Livre, a expectativa óbvia era que a conclusão da trama envolveria uma alteração da história real, em que Tate sobreviveria à horrível noite. 

Porém, diferente desses outros dois, aqui não é a própria vítima que vira a mesa e catarticamente inflige violência sobre aqueles que, no mundo real, cometeram uma violência terrível contra ela.

E o motivo é que esse não é um filme sobre Sharon Tate.

 

Margot Robbie como Sharon Tate. [Imagem: Reprodução/Sony Pictures]
Margot Robbie como Sharon Tate. [Imagem: Reprodução/Sony Pictures]

Muito pelo contrário, o longa parece bastante desinteressado nela. Das 2 horas e 40 minutos de duração, Tate aparece apenas em mais ou menos 30 minutos,  durante os quais tem pouquíssimas falas.

Não, o interesse de Tarantino na vida (ou, mais precisamente, na morte) de Sharon Tate não reside na história ou na identidade dela enquanto pessoa, mas no que seu trágico fim representa.

Os anos 1960 foram uma década conturbada nos Estados Unidos, marcados pelos protestos pelos direitos civis de pessoas negras, a Crise dos Mísseis, a Guerra do Vietnã e a oposição à guerra dos movimentos de contracultura.

Esses temas estão, na maior parte, ausentes de Era Uma Vez… em Hollywood. Em vez de grandes mudanças e tensões políticas, o elemento mais proeminente da cultura dos EUA sessentistas é a estética do cinema e da televisão da época, apreciadas com a nostalgia cinéfila recorrente na obra de Tarantino.

A morte de Tate, uma personalidade icônica desse meio, bem no final da década, a levou a um status mitológico de representação do espírito de uma geração, e é esse o papel que ela exerce nesse filme. Sua sobrevivência fictícia é não só a de um indivíduo, mas a realização da fantasia de que esse passado idealizado nunca acabou a realidade alternativa em que os “bons e velhos tempos” continuam eternamente.

O personagem de Leonardo DiCaprio, Rick Dalton, vizinho de Tate e real protagonista da história, personifica muito bem essa recusa a aceitar a mudança e a passagem do tempo: um ator que já passou pelo auge da sua fama e frustrado com o fato de não ser mais o astro que já foi.

 

 Leonardo DiCaprio e Brad Pitt como Rick Dalton e Cliff Booth [Imagem: Reprodução/Sony Pictures]
Leonardo DiCaprio e Brad Pitt como Rick Dalton e Cliff Booth. [Imagem: Reprodução/Sony Pictures]

Ele possuiu um desgosto pessoal pelos “hippies”, ou melhor, a versão dos seguidores de Manson, que apesar de terem apropriado a estética, não tinha realmente muito em comum com os grupos de jovens de esquerda que protestavam contra a guerra no Vietnã. 

A única faceta dos diversos movimentos de contracultura que se popularizaram no período presente de fato na trama é que eles representam a juventude e as mudanças sociais e políticas da época, que irritam Rick e seu apego ao passado.

Na conclusão da trama, quando a fatídica noite do assassinato chega, os membros da Família Manson erram o endereço e acabam na casa de Rick ao invés da de Tate, e ele e seu amigo e dublê os matam antes que tenham a oportunidade de sequer tocar em Sharon.

De forma contrastante ao que o diretor havia feito anteriormente, dessa vez a reviravolta que diverge dos fatos na realidade não é a vítima retribuindo aos seus algozes a violência que sofreu, e sim a vítima nunca sendo vítima para começo de conversa.

Ainda assim, a explosão catártica de violência continua presente. A forma como Cliff e Rick matam os quatro invasores é gráfica, escatológica e com requintes de crueldade.

E não funciona tão bem quanto a violência tarantinesca costuma funcionar.

Mesmo que a audiência em geral saiba que aqueles quatro representam pessoas reais que deram 16 facadas (muitas na barriga) em uma mulher grávida e talvez esteja mais do que disposta a se divertir vendo elas sofrerem, no universo do filme, eles não são mostrados fazendo nada realmente cruel, como é o caso de um Hans Landa [de Bastardos Inglórios] ou Mike Mckay [de Death Proof].

Então, a sensação de observar essas pessoas, três delas garotas bem jovens, serem violentamente assassinadas acaba sendo muito pouco parecida com euforia e muito mais com choque e desconforto.

Apesar disso, essas cenas se encaixam adequadamente com as linhas temáticas do roteiro. Com o mesmo lança-chamas mostrado em uma das imagens dos seus tempos de glória que busca preservar, Rick mata uma das executoras do crime que, simbolicamente, acabou com a era de Hollywood pela qual o filme é extremamente nostálgico.

Através de sua história alternativa, Era Uma Vez… em Hollywood cria um mundo em que é possível realizar o desejo no fundo das fantasias nostálgicas: parar o tempo.

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