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Frida Kahlo: constelando imaginários

Como a trajetória da pintora marcou a arte, a cultura e a política

“Cada tic-tac é mais um segundo da vida que passou. Fugiu e não voltará. E já que a vida é intensa e com tantos interesses, o problema é descobrir como vivê-la.”

Frida Kahlo viveu uma vida curta. Nos seus 47 anos de vida, porém, a infinidade comprimida em cada um desses tic-tacs foi vivida ao máximo possível. Parece que, certa de que não teria tanto tempo na Terra, devido aos acidentes que sofreu e à sua saúde fragilizada, Frida queria viver toda a experiência humana. Os prazeres e as dores, estas que sempre se fizeram tão presentes. 

Ela nasceu no dia seis de julho de 1907, mas sempre dizia que tinha sido em 1910, junto da Revolução Mexicana. Os pais de Frida apoiavam os zapatistas que, sob o lema de “terra e liberdade”, lutavam contra os interesses da elite latifundiária, que concentrava as riquezas. Sua mãe cuidava dos feridos e dos famintos, o que fortaleceu o laço de Frida com as causas sociais.

“Ela e o México estavam num momento de reconstrução de suas identidades. Foi nessa época que emergiu o seu interesse pela política”, conta Marli Miranda Bastos, psicanalista autora do livro Frida Kahlo: Para-além da Pintora.

Separar o artista da obra é uma tarefa muito difícil (podemos questionar até se é uma tarefa possível), e, falando de Frida, é ainda mais complicado: a sua arte é a sua vida. Taxavam Frida de surrealista, mas ela dizia: “nunca pintei sonhos, pintava a minha própria realidade”.

[Imagem: Nickolas Muray, © Nickolas Muray Photo Archives]
Seus ideais, seus amores, suas tragédias: vemos tudo em suas obras. “O projeto da Frida era gigantesco, de restauração de um olhar sobre o mundo, de uma resistência e de uma proposta criativa muito forte”, conta Viviane Dias, autora da peça Frida Kahlo – Calor e Frio, “uma proposta estética de se recolocar no mundo através da sua arte e dos autorretratos”.

 

“Eu costumava achar que eu era a pessoa mais estranha do mundo, mas aí eu pensei: tem que ter alguém como eu, que se sinta bizarra e imperfeita, da mesma maneira como eu me sinto.”

Aceitando a sua bizarrice e imperfeição, Frida se consolida como uma das maiores artistas do século 20. Ela é vulnerável e, dessa forma, vulnerabiliza outras pessoas com a sua arte. Suas obras falam com pessoas que também se sentem bizarras e imperfeitas, que sentem dores e inquietações. Nesse sentido, a sua arte é política. Frida propõe uma maneira diferente de ver o mundo, constelando imaginários alternativos.

 

A Vida e a Arte

 Frida nasceu com espinha bífida, o que significa que os ossos da sua coluna não se desenvolveram apropriadamente. Como consequência, sofreu de escoliose e teve a perna direita atrofiada, que ficou mais fina e curta do que a esquerda. 

Para superar a doença, praticava esportes considerados masculinos: boxe, luta livre, natação. Em contrapartida, Frida se apresentava de forma considerada feminina: o batom vermelho e os longos vestidos floridos faziam parte do seu cotidiano.

Os vestidos floridos, porém, não eram só fruto da sua vaidade. Eles eram também uma maneira de Frida se apropriar da sua herança pré-colombiana, dos povos originários do México. “Quando a Frida pinta as indígenas, quando ela se veste como indígena, ela está se afirmando como pertencente da identidade americana antes da colonização. Vemos isso nas pinturas dela, no imaginário dela, na atuação política dela”, explica Viviane.

O quadro abaixo, por exemplo, pode ser interpretado como uma alusão ao México, seu país de origem, onde Frida fincou suas raízes. Mesmo tendo morado em outros lugares, como em Nova York, a mexicanidad sempre esteve presente nos seus trabalhos.

“Raízes” [Imagem: Frida Kahlo, 1943/Acervo pessoal]
“Nós, que somos colonizados, também temos um grande pé no que a Frida gostava de valorizar”, conta Viviane Dias, e exemplifica: “a cultura pré-colombiana, a relação com o inconsciente, o imaginário noturno, menos ligada à razão e mais ligada a ideia de ciclos, de uma conexão profunda entre o homem e a natureza, do inconsciente, dos sonhos, um mundo não tão racional”. Nesse sentido, conta, Frida era muito contrária à cultura hegemônica patriarcal europeia.

A ligação da arte de Frida com a ancestralidade foi inclusive uma das coisas que atraiu a autora da peça à artista. “Viajando pelo México e vendo o quanto a arte de Frida estava ligada à cultura, à ancestralidade, a uma voz pré-colombiana sufocada e calada pelos colonizadores, mexeu muito comigo”, conta.

Outra questão muito abordada na arte de Frida foi o acidente que sofreu na adolescência e as consequências que ele teve. O ônibus que Frida estava bateu em um bonde.

“O Ônibus” [Imagem: Frida Kahlo, 1929/Museo Dolores Olmedo]
“Fratura na terceira e quarta vértebras lombares, três fraturas na pélvis, onze fraturas no pé direito, luxação no cotovelo esquerdo, ferida profunda no abdome, produzido por uma barra de ferro que entrou rasgando o lábio esquerdo. Peritonite aguda. Cistite que exigiu o uso de sonda por muitos dias.”

Frida teve que ficar de cama por muitos dias e, mesmo assim, a dor do acidente a acompanhou por toda sua vida. Nesse momento obscuro, a arte cumpriu uma de suas muitas funções e tornou-se um refúgio: na cama, Frida passava horas pintando. No teto do quarto, sua mãe colocou um espelho, e daí nasceram os primeiros de seus famosos autorretratos. 

“Autorretrato com vestido de veludo” [Imagem: Frida Kahlo, 1926/Museo Dolores Olmedo]

“Diego, houve dois grandes acidentes na minha vida: o bonde e você. Você sem dúvida foi o pior deles.”

Frida conheceu o já famoso artista Diego Rivera em 1922 enquanto ele pintava um mural em um anfiteatro da escola que Frida estudava. Eles só ficaram juntos anos depois, próximo de quando Frida filia-se ao Partido Comunista, em 1928. 

O relacionamento de Frida e Diego foi muito conturbado, com os dois mantendo diversos casos extraconjugais. Eles se separam por um tempo, mas logo se casaram novamente.

Frida e Diego, fotografados por Nickolas Muray, um dos amantes de Frida
Frida e Diego, fotografados por Nickolas Muray, um dos amantes de Frida [Imagem: Nickolas Muray, © Nickolas Muray Photo Archives]
Um dos casos mais famosos foi entre Frida e Leon Trótski, durante a hospedagem do revolucionário bolchevique na Casa Azul, onde Frida e Diego moravam. 

Em relação à política de Frida, uma mulher de esquerda, “alguns autores dirão que o interesse de Frida Kahlo pelo comunismo tenha deslocado da consciência social para uma busca epistemológica, talvez religiosa, destinada a sustentar sua fé e sua crença na secular herança mexicana”, conta Marli. “Não concordava com a sede de sangue e a divisão de classe dos astecas, nem as práticas autoritárias e burocráticas de Stalin”. Em suma, Kahlo se interessava mais pelo social e pelo igualitário.

O quadro abaixo é um exemplo de como a arte de Frida era engajada politicamente: nele, Frida retrata a sua crença no comunismo. Vemos uma pomba branca, que costuma lembrar da esperança e fé. Marx também faz uma aparição no canto superior direito da tela e, com ajuda das mãos prestativas, Frida consegue andar sem muletas, referenciando o lado solidário com o qual a artista sempre teve tanto apreço.

“O marxismo dará saúde aos doentes” [Imagem: Frida Kahlo, 1954/Museo Frida Kahlo]
Em 1930, Frida se muda com Diego para os Estados Unidos. Apesar de fazerem fronteira um com o outro, os Estados Unidos e o México têm culturas muito diferentes. No quadro abaixo, vemos como Frida observava essa dicotomia: na direita, ficam fábricas e outras inovações tecnológicas, os Estados Unidos como um grande polo industrializado. À esquerda, vemos um monumento asteca, fazendo referência à herança pré-colombiana mexicana.

“Autorretrato na Fronteira entre o México e os Estados Unidos” [Imagem: Frida Kahlo, 1932/Detroit Institute of Arts]
Marli entende a obra de Frida como impressionista e afirma que ela é marcada por dor e por paixão. Ela ainda conta que “o vermelho é simbólico e marcante em sua pintura, pode ser visto no sangue de um aborto sofrido, na alegria de suas roupas, fitas e frutas”, explica. “Se no mito de Narciso é o espelho que lhe devolve a imagem perfeita de si que o fascina e o paralisa, levando-o a morte, em Frida, é a sua imagem real refletida no espelho que a impulsiona para a vida”.

Cultura mexicana influente

Antes de ir para o México durante seu mestrado, Viviane conta que tinha “um certo preconceito” com o pouco que conhecia sobre Frida Kahlo, e que isso mudou quando entrou em contato com a força cultural que os trabalhos da artista e de seu companheiro possuem no país.

Em um mundo em que as produções culturais de maior influência são majoritariamente desenvolvidas nos Estados Unidos, a cultura tradicional mexicana, que remonta às origens pré-colombianas, acaba sendo invisibilizada. Apesar de vizinhos, os dois países carregam enormes diferenças, e Frida tinha consciência disso, como se pode perceber pelo quadro, já tratado anteriormente, Autorretrato na Fronteira entre o México e os Estados Unidos

Viviane explica que as obras do casal eram muito marcantes para a cultura do local e que estavam muito ligadas “a uma profunda contestação cultural dessa cultura hegemônica” vinda do país vizinho. A América Latina não teve sua cultura muito valorizada fora de seus países, pois os polos que “ditam as regras” da arte sempre estiveram centrados na Europa ou nos Estados Unidos. Mas mesmo que muitas pessoas não saibam, o México foi e ainda é um espaço muito rico para o desenvolvimento artístico que Viviane chamou de “caldeirão cultural”.

“Autorretrato con collar de espinas y colibrí” [Imagem: Frida kahlo, 1940/Flickr]
O potencial cultural que existiu no México durante a vida de Frida se relaciona diretamente com a data que ela escolheu como seu nascimento, a Revolução Mexicana. A revolução socialista valorizava a pintura e o desenvolvimento das artes, o que levou a uma atmosfera artística. Viviane explica que esses pintores não estavam preocupados em apenas reproduzir a cultura europeia, mas também influenciar outros artistas fora da América Latina.

Ela conta que essa influência chegou a diversos artistas conhecidos internacionalmente, como os poetas Antonin Artaud e Vladimir Maiakovski e o cineasta Serguei Eisenstein. Essa atmosfera, na qual Frida tem grande importância, foi marcada por seu envolvimento político, segundo Marli, ela “estava sempre pensando na cultura e no social, tinha um modo todo seu de fazer política”.

A relação da artista com seu pai se mostra influente e significativa para que esse desejo artístico pudesse florescer: ele foi o principal fotógrafo do governo, o que familiarizou Frida tanto com a expressão através da arte quanto com o envolvimento político. Marli conta que seu pai “estimulou-a a leitura de autores clássicos alemães e filósofos, também ensinou-a a usar a máquina fotográfica, a revelar, retocar e colorir fotografias, experiências que viriam a ser muito úteis para a sua carreira de pintora”.

A forte ligação com seu pai se deu pois, segundo Marli, sua mãe precisou se dedicar a outra gravidez enquanto Frida tratava da poliomielite, e como ele era um homem muito ligado à política, Frida também se envolveu com tais questões. “Era a filha mais curiosa com ideias diferentes das irmãs que pensavam em casar e ter filhos, ela queria primeiro estudar e se profissionalizar” conta a psicanalista.

 Essa relação com o meio político foi essencial para determinar a maneira única com que ela pintava, pois, como dito anteriormente, o simbolismo e envolvimento com a cultura local são características muito marcantes de suas obras.

Viviane aponta que a cultura mexicana que a envolveu e pela qual se encantou deveria ser mais valorizada, mas que isso não ocorre por conta dos padrões colonialistas em que o mundo ocidental está inserido. “Esse olhar da cultura europeia, com ênfase extrema na razão, descaracteriza tudo que não é o pensamento europeu, branco, iluminista”, e para ela Frida representa, justamente, esse “olhar diferente” sobre a arte e a cultura e que se volta às tradições “pré-coloniais, indígenas e pré-colombianas”.

 

Frida e o feminismo

O legado de Frida na arte é inegável, mas sua influência transpassa o universo cultural e se mostra muito presente em movimentos políticos e sociais. Talvez o feminismo seja um dos mais notórios espaços em que a artista se destaca sem estar diretamente ligada às suas obras. Apesar de nunca ter se denominado feminista, Viviane explica que “ela constela um imaginário que é transgressor em relação ao patriarcado, porque é o imaginário de um mundo antes do patriarcado, e daí vem muito da sua força”.

Essa força é reivindicada por diversos grupos feministas que enaltecem a história de resistência e conquista da artista para declará-la um ícone do movimento. É o caso da página Filhas de Frida, fundada por Eduarda Porcino.

Perfil “Filhas de Frida”, no Instagram [Imagem: Reprodução/Instagram]
Ela conta que conheceu o feminismo ao lidar com a exposição de conversas íntimas na internet e que, nesse momento, percebeu a força do machismo que a cercava. Na época, ela criou a página, que atualmente leva o nome da artista, para produzir conteúdos sobre o movimento. A escolha do nome “Filhas de Frida” é bastante simbólica, pois, devido ao acidente com o bonde, a artista não pôde gerar filhos, e as mulheres que se identificam e acompanham a página “são as filhas simbólicas que, infelizmente, ela não pôde ter”, conta Eduarda.

A arte de Frida também retratou muitas questões da vida de mulheres. Diversas pinturas contêm órgãos e ferimentos, o que foi muito criticado por pessoas que diziam que “os quadros dela pareciam referências ginecológicas, e as pessoas diminuíam isso, como se fossem ‘menos artísticos’”, explica Viviane. A realidade feminina sempre foi uma questão muito importante para Frida, por isso, apesar de não se considerar feminista, suas obras são tão significativas. 

“Hospital Henry Ford” [Imagem: Frida Kahlo, 1932/Em Museo Dolores Olmedo Patiño]
Casos como o da pintura Unos cuantos piquetitos (1935) são ótimas representações de como a arte de Frida era engajada. Em um caso de violência doméstica, uma mulher foi assassinada a facadas por seu companheiro que alegou serem “alguns pequenos cortes” frase que deu nome à obra. 

“Unos cuantos piquetitos” [Imagem: Frida Kahlo, 1935/Museo Dolores Olmedo Patiño]
Questionadora, Frida não tinha intenção de ter o destino convencional das mulheres de sua época. Um pequeno exemplo disso, é que ela  foi vista vestindo calças em diversas ocasiões, fugindo do que eram os trajes femininos comuns. Posturas como essa  se assemelham a alguns questionamentos típicos do feminismo. 

Apesar da importância da disseminação da figura de Frida, existe uma preocupação a respeito da popularização de uma imagem sem significado. Eduarda ressalta “o quanto é perigoso nós banalizarmos esses conceitos” ao lembrar da comercialização de produtos com as flores e a típica monocelha. 

Outro fator importante em relação ao esvaziamento das questões sociais levantadas por Frida é o fato, muitas vezes ignorado, de que ela foi uma mulher com deficiência. Marli conta que por causa da poliomielite “foi estigmatizada pelos colegas com a alcunha de “Frida da Perna de Pau”, mas Frida não buscava esconder as dificuldades locomotoras que tinha. Sua cadeira de rodas aparece representada em algumas pinturas e até mesmo os moldes de gesso que já envolveram seu corpo para se recuperar de traumas foram cobertos por seus traços e cores. 

“A Coluna Partida” [Imagem: Frida Kahlo, 1944/Museo Dolores Olmedo]
Atualmente, pessoas com deficiência utilizam o termo “capacitismo” para descrever nossa sociedade que trata como inferiores, menos capacitados e dignos de pena ou chacota, pessoas com alguma diferença em sua formação física ou mental. E em uma sociedade capacitista, a deficiência de Frida deve ser escondida para que a artista possa ser, de fato, um símbolo de luta, força e resistência. Entre os diversos produtos que são comercializados com sua imagem, raramente a cadeira de rodas aparece ou fazem referência a sua “coluna cheia de pinos”, como diz Viviane, ou à amputação que sofreu.

 

“Pés, para que os quero, se tenho asas para voar”

A força de Frida talvez seja o que há de mais marcante em sua trajetória, ela exerceu diversas funções e não aceitou os limites que a sociedade e seu corpo pareciam impor. Uma parte de sua carreira pouco mencionada foi o período em que foi professora de pintura e “trabalhava com afinco mesmo depois de ter passado por cerca de trinta e quatro cirurgias”, como explica Marli. Quando sua saúde ficou mais debilitada, Frida teve que se afastar da escola, mas continuou lecionando em casa para os quatro alunos que permaneceram com ela, eles ficaram conhecidos como “Os Fridos”. 

Essa frase tão conhecida atualmente mostra o porquê de a artista permanecer inspirando tantas pessoas. Suas atitudes eram coerentes com o que dizia, Frida não precisou de um corpo sem deficiência para ser conhecida e influente mundialmente. Ela se tornou um ícone que transcende a área que teria sido seu maior interesse, a figura de Frida Kahlo é até hoje sinônimo de arte, política e força.

 

Créditos das imagens

Arte de capa:
[Imagem: Nickolas Muray, © Nickolas Muray Photo Archives]

Linha do tempo:
[Imagem Revolução Mexicana (Emiliano Zapata): Reprodução / Wikipédia]
[Imagem Frida comunista: Reprodução / www.socialistamorena.com.br]
[Imagem Frida e Diego (desenho): Steven Zucker / Flickr]
[Imagem Frida e Trótski: reprodução / Flickr]
[Imagem Frida e Diego divórcio: reprodução / Wikipédia]
[Imagem Frida e Diego casamento 2:colaboradora Roberta Pinheiro/ gpslifetime.com.br ]
[Imangem museu: Museu Frida Kahlo / Divulgação]

 

 

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