Por Bernardo Carabolante (bernardonm0411@usp.br) e Matheus Ribeiro (matheus2004sa@usp.br)
No dia 24 de maio de 2014, há exatos dez anos atrás, Real Madrid e Atlético de Madrid protagonizaram, no Estádio da Luz, em Lisboa, um episódio que marcou a história do futebol. Disputada por rivais da mesma cidade, a final da Champions League de 2013/14 é um dos maiores símbolos da tradição e poder do Real Madrid. O time merengue conquistou seu décimo título do campeonato, a “La Décima”, em uma partida considerada milagrosa, impressionando os admiradores do esporte bretão. Em entrevista ao Arquibancada, Leonardo Bertozzi, comentarista da ESPN, relembra: “Era uma final muito importante para ambos se (re)estabelecerem na Europa”.
Com o título, o Real Madrid se tornou o único clube a ter dez conquistas na história da competição [Reprodução/X: @realmadrid]
Trajetória até a final
Os rivais espanhóis percorreram um caminho semelhante para chegar na tão sonhada final, deixando adversários poderosos pelo caminho.
O Real Madrid, fez uma campanha invicta na fase de grupos, classificando em primeiro lugar e conquistando 16 pontos dos 18 possíveis. Criou enorme vantagem em relação ao segundo colocado, o Galatasaray, e não deu chance aos eliminados Juventus e Copenhagen.
Nas eliminatórias, teve confrontos apenas com times alemães — dois dos quais eliminaram os Merengues em edições recentes. Nas oitavas de final, passou com facilidade pelo Schalke 04. Nas quartas, o Borussia Dortmund, finalista e carrasco do Real Madrid na última temporada, foi eliminado após quase empatar o confronto. Nas semis, Bayern de Munique, o atual campeão e responsável por derrotar o gigante espanhol na mesma etapa da edição de 2012/13, caiu após ótimas atuações do time madrilenho.
Na semifinal contra o Bayern, Cristiano Ronaldo bate o recorde de mais gols em uma única edição da Champions (16) [Reprodução/X: @ChampionsLeague]
O Atlético de Madrid teve desempenho parecido na primeira fase da competição. Líder invicto do grupo, deixando para trás Zenit, segundo colocado, Porto e Austria Viena, fora da etapa seguinte.
O mata-mata dos Colchoneros também foi marcado por disputas difíceis. Nas oitavas de final, eliminaram o gigante italiano, Milan. Nas quartas, passaram pelo Barcelona, em uma época em que o time catalão vinha embalado para disputar o título europeu, com dois dos maiores talentos da geração: Messi e Neymar. Nas semifinais, derrotou o Chelsea de virada, na Inglaterra, após ter empatado a primeira partida do confronto na Espanha. O Atleti chegou à final espanhola invicto, tendo sido vazado apenas seis vezes durante toda a competição.
<blockquote class=”twitter-tweet”><p lang=”es” dir=”ltr”>9 de abril de 2014, el Atlético de Madrid se mete en semifinales de Champions League eliminando al Barça.<br><br>9 años de aquella locura. <a href=”https://t.co/UtZE5rjI88″>pic.twitter.com/UtZE5rjI88</a></p>— hugogrinann 💙🤍 (@hugogrinann) <a href=”https://twitter.com/hugogrinann/status/1644988972991496192?ref_src=twsrc%5Etfw”>April 9, 2023</a></blockquote> <script async src=”https://platform.twitter.com/widgets.js” charset=”utf-8″></script>
Rivalidade em campo
O clássico Madrilenho teve início 111 anos atrás, em 1903, quando jovens bascos fundaram o Atlético de Madrid, ainda como uma filial do Athletic Club de Bilbao, para disputar com o então Madrid Football Club. O primeiro confronto entre os rivais ocorreu em 1906, porém foi apenas após a emancipação do Athletic de Madrid em relação ao clube de Bilbao, em 1913, que os embates se tornaram constantes. Enquanto o Madrid F.C. tinha o apoio das elites, o Athletic se vinculou a uma raiz mais próxima do povo e dos trabalhadores
Em 1920, o Madrid passou a ser o Real Madrid: a Casa Real Espanhola — do então Rei Afonso XIII, que reinou o país de seu nascimento (1886) até sua abdicação em 1931 — concedeu ao clube o título de “Real” após uma mudança no antigo estádio da equipe. Com o início da Guerra Civil Espanhola, em 1936, o Madrid teve de tirar a alcunha de “Real”, e teve seu presidente destituído do cargo por ser contra as ideias franquistas. Já o Athletic de Madrid perdeu membros mortos em conflitos.
Durante toda a ditadura franquista, existiam boatos de favorecimentos para os clubes da capital espanhola, porém foi o Real quem se tornou a potência na época, muito graças à lenda Di Stéfano. Depois da derrota do Atlético na final da Champions League de 1974 e do fim da ditadura, o abismo entre os rivais só aumentou nos anos 1980, e os holofotes se voltaram à nova maior rivalidade, Real Madrid contra Barcelona. Sobre a rivalidade de Madrid, Leonardo Bertozzi comenta: ”As diferenças entre Atleti e Real começam a aparecer em questões políticas. O “Real” vem de ser o favorito do rei e isto gerou uma dissociação, o time do poder contra o que desafia o status quo.“ Entre 1999 e 2013, Atlético de Madrid ficou sem vencer o rival, até que a chegada de Diego Simeone equilibrou a disputa, com vitórias para ambos os lados.
Pré-Jogo
Após duas trajetórias difíceis que seriam definidas por um dos maiores clássicos do continente, não havia como imaginar que a final seria algo fácil. Além disso, cada equipe possuía questões próprias que aumentariam a tensão pelo confronto.
O Atlético não só tinha que administrar a pressão de uma possível conquista inédita na sua história, mas também o fato de disputá-la contra seu maior rival. time ótima fase, com a conquista recente de outros títulos europeus, como a Europa League e a Supercopa Europeia em 2012, além do campeonato espanhol da temporada 2013/14, que quebrou um jejum de 18 anos.
Entretanto, alguns dias antes da final, uma notícia preocupou os Colchoneros. Diego Costa, atacante brasileiro — naturalizado espanhol pouco tempo depois —, que vinha sendo o principal jogador do Atleti na temporada, sofreu uma lesão na coxa. Tratamentos intensos foram realizados de última hora como forma de recuperar o atleta, até mesmo usando a polêmica placenta de égua, mas o jogador ainda era dúvida na decisão.
Com gol de Godín, contra o Barcelona, o Atlético sacramentou a conquista de La Liga 2013/14 [Reprodução/X: @Atleti]
O Real Madrid também enfrentava fatores que aumentavam o nervosismo por trás da final. Além do peso do clássico, a equipe vinha pressionada para encerrar um jejum de 12 anos sem conquistar a “orelhuda”, sendo, inclusive, a primeira decisão que enfrentaria desde 2002, ano da última conquista madrilenha da Champions. Nesse intervalo, o clube colecionou seis eliminações nas oitavas, uma nas quartas e quatro nas semifinais, junto do fracasso da primeira era dos “Galáticos”, projeto de contratação de estrelas para a formação de um elenco badalado, com nomes como Ronaldo “Fenômeno”, David Beckham e Zidane, cuja principal meta era a conquista da Liga dos Campeões. “O time não era mais visto como ‘de chegada’. Foram muitas eliminações precoces para times inferiores”, comenta Bertozzi.
Além disso, havia a ameaça de ter seu posto de maior campeão europeu tomado. Com nove títulos à época, o Real disputava esse mérito com o Milan, campeão sete vezes, e via seu maior rival, o Barcelona, com quatro conquistas, sempre figurando entre os favoritos.
Escalações
Real Madrid
O Real foi preparado em um 4-3-3, com um elenco repleto de estrelas. No gol, contava com a lenda do clube e da seleção espanhola, o goleiro e capitão Iker Casillas. Na defesa, Carvajal, Sergio Ramos — outro ídolo vencedor da Copa do Mundo pela Espanha e zagueiro artilheiro —, Varane e Fábio Coentrão. O meio de campo era composto por Sami Khedira, atuando na contenção, Luka Modric criando as jogadas e o habilidoso Di María. O ataque era o ápice da grife madrilenha, com Benzema, e duas das transferências mais caras do futebol na época: o craque Cristiano Ronaldo, que estava batendo o recorde de gols marcados em uma única edição da competição europeia, e Gareth Bale, recém chegado ao clube. O time era administrado pelo experiente Carlo Ancelotti, já campeão da Champions League, e tinha Zinedine Zidane como seu auxiliar.
Os Merengues tiveram desfalques importantes para a partida: Pepe, zagueiro brasileiro naturalizado português, que foi titular na campanha, mas teve uma lesão na panturrilha que o deixou de fora; Xabi Alonso, peça importante no esquema de Ancelotti, que estava suspenso por acumular cartões amarelos nas fases passadas; Marcelo, lateral brasileiro que estava no Real há sete anos e começou no banco por opção técnica, já que o treinador avaliou, inicialmente, que a propensão ofensiva do jogador não poderia ser positiva à equipe, algo que seria provado o contrário ao longo do jogo.
Atlético de Madrid
Escalado em um 4-4-2, o Atleti tinha como proteção ao gol um jovem e talentoso goleiro: o belga Thibaut Courtois. O sistema defensivo, principal arma dos Colchoneros para o jogo, era composto por Juanfran, Godín — já campeão pelo clube e ídolo da torcida —, e os brasileiros Miranda e Filipe Luís. No meio, Gabi, experiente jogador e capitão do time, Koke, Tiago e Raul Garcia. O ataque possuía David Villa, outro vencedor da Copa do Mundo pela Espanha em 2010, já distante de seu ápice, e, surpreendendo muitos que acompanharam as notícias que antecederam a final, Diego Costa, artilheiro do time no ano e principal jogador. O tratamento aparentava ter surtido efeito. Esse plantel foi comandado por Diego Simeone, “El Cholo”, que ocupa o cargo até hoje e é responsável pelos maiores títulos recentes da história do clube. “Ele mudou o patamar do time”, diz Leo.
Dessa forma, os times estavam preparados para protagonizar uma das finais mais icônicas da história do esporte.
A partida
O jogo começou quente. De início, ambas as equipes demonstraram o que sabem de melhor: o Real, a criação e a imprevisibilidade de seu elenco estrelado; o Atleti, sua segurança e bom uso de contra-ataques.
Não demorou muito para a tensão dominar o jogo, algo comum em uma final, já que ninguém quer perder o título. Com isso, foi estabelecido um equilíbrio entre os times, com poucas chances criadas e muitas faltas cometidas — clima que perdurou por toda a primeira etapa.
Antes de completar os primeiros dez minutos, surgiu uma má notícia aos Colchoneros, Diego Costa sentiu sua lesão na coxa e, aos 9’, precisou ser substituído. Esse problema não só afetou o ataque do Atlético, mas obrigou Simeone a gastar uma substituição logo no começo do jogo, a qual fez falta nos minutos finais.
Em outras ocasiões, o atacante manifestou seu arrependimento no tratamento realizado antes do jogo. Além de ter sido um processo desgastante e ineficaz, Diego afirmou que ele contribuiu para outras lesões em sua carreira.
35’- Ídolo do Atleti Desequilibra
Após um escanteio batido por Gabi, aos 35’, a bola viajou à área e foi afastada por Varane; Juanfran, livre e fora da área, aproveitou a sobra e lançou a bola à área novamente. Godín, ídolo colchonero, subiu mais que a marcação e cabeceou para o gol, encobrindo Casillas, que estava mal posicionado.
O goleiro merengue ainda tentou correr atrás de seu erro, chegando a tirar a bola de dentro do gol. Contudo, foi tarde demais, já que a bola havia ultrapassado por completo a linha da meta, abrindo o placar da partida a favor do Atleti.
Durante os últimos minutos do primeiro tempo, o Atlético fez o que faz de melhor: se defender e contra-atacar. E não parecia ser uma tarefa tão difícil, já que o ataque adversário estava pouco inspirado, além de abalado pela derrota momentânea. Por mais que tivesse uma estratégia reativa, a equipe de Simeone liderou em estáticas ofensivas, como o número de finalizações, em que o Real teve duas, enquanto o Atleti, cinco.
Bale e Cristiano Ronaldo não faziam uma boa atuação, desperdiçando chances aos Merengues — a estrela portuguesa, ainda, jogava com uma proteção na coxa, reclamando de dor durante o jogo.
No começo da segunda etapa, o cenário final do primeiro tempo se manteve. Aos 58’, as primeiras alterações são feitas no Real, com destaque para a entrada de Marcelo e Isco e saída de Coentrão e Khedira. A partir desse momento, o ataque merengue ganhou mais força, com uma mudança no ritmo de jogo. Muitas chances foram criadas, mas quase todas foram paradas pela defesa, quase perfeita, do Atlético. As bolas que conseguiam romper o bloqueio foram jogadas para fora ou defendidas por Courtois.
Parecia que aquela não era a noite do Real Madrid, mas nem por isso seus jogadores desistiram. Pelo contrário, continuaram lutando até o final.
Da tranquilidade ao desespero
Já no final dos 90 minutos, com o acréscimo de cinco anunciado, o Real partiu para a estratégia de lançar inúmeras bolas na área, na esperança de alguém cabecear.
Nessa situação, uma bola saiu pela linha de fundo. Aos 90+3’, após 28 cruzamentos mal sucedidos, Modric cobrou o escanteio e encontrou Sergio Ramos. O jogador, já amado pela torcida, conseguiu tornar sua idolatria ainda maior ao cabecear precisamente contra o gol de Courtois, empatando a partida em seus últimos momentos.
O elenco e a torcida merengue explodiram em felicidade, ao mesmo tempo que a colchonera se calou ao ver o placar de 1 a 1 nos minutos finais da partida. Simeone ainda tentou animar seu time, os orientando para manter o foco, mas o gol também foi um grande baque para os jogadores.
“Esse gol entrou para o folclore do torcedor”
Leonardo Bertozzi, comentarista da ESPN
Na prorrogação, ao contrário do que costuma-se ver em situações como essa, o Real parecia pouco afetado pela fadiga de um jogo inteiro, o que foi mostrado na vontade do time em virar o jogo, se impondo totalmente. O Atlético, por sua vez, já destruído física e mentalmente, só pôde continuar em seu jogo reativo, esperando a disputa de pênaltis.
Em ritmo semelhante ao da primeira etapa do tempo extra, aos 110’, Di María partiu da ponta esquerda à área em jogada individual, deixou dois marcadores no chão e ficou cara a cara com o gol. Courtois defendeu o chute, mas a bola sobrou para Bale, que mandou o rebote de cabeça ao gol. Ao virar o jogo para 2 a 1 e acabar com a esperança do Atleti, Bale conseguiu sua redenção de uma partida cheia de chances perdidas.
A situação ficou pior quando, aos 118’, Marcelo, alteração essencial aos Merengues, recebeu a bola no meio de campo, aproveitou o espaço cedido pela marcação — ou a falta dela —, e avançou até a entrada da área para o chute em direção ao gol. Mesmo que facilitado pelas falhas da defesa e de Courtois, o lateral marcou um golaço, o que deixou o placar em 3 a 1 e acabou com o psicológico do adversário.
Para encerrar, no último lance do jogo, Cristiano Ronaldo protegeu a bola dentro da área adversária e, por destempero da zaga colchonera, sofreu um pênalti. Godín, que ficou próximo de ser o herói do título, foi expulso ao levar um segundo amarelo por reclamação.
Ronaldo chamou a responsabilidade e converteu o chute. 17 vezes Cristiano! Recorde de gols em uma única Champions League. Durante a comemoração, Simeone e Varane se estranharam, após o zagueiro jogar uma bola no banco de reservas do Atlético. Mas não havia mais jogo… 4 a 1 para o Real! “La Décima” foi conquistada!
Embora tenha marcado na final, Cristiano não fez uma boa partida [Reprodução/X: @ChampionsLeague]
Com o final da partida e título do Real Madrid, o time se consagrou como o primeiro na história a possuir dez títulos da maior competição de clubes do mundo, a Champions League.
PÓS JOGO E ANOS SEGUINTES
Em entrevista pós-jogo ao site oficial da Uefa, Casillas comentou: “Quando alguém sofre um gol absurdo como aquele, é claro que acusa o golpe. Comecei a pensar no time, no esforço que estão fazendo para não perder e me senti como o único responsável. Felizmente, conseguimos levar a partida para a prorrogação e, no final, terminamos como campeões de maneira justa”.
A “La Décima” ficou eternizada para a história do futebol, mas esta partida definiu o futuro e marcou o passado das equipes. Leonardo Bertozzi conta que, a partir deste título, o Real Madrid se reestabelece como um time temido e dominante.
A base do time tricampeão consecutivo da Champions nos anos seguintes vem desta campanha do Real Madrid, com trocas de Casillas por Navas, a adição de Casemiro e Kross ao meio campo para saídas de Khedira e Di María, além de Bale e Isco dividindo protagonismo em certos momentos. “É o primeiro a conquistar dez vezes e isso devolve uma confiança, tanto que anos depois, com Zidane, conquistou três títulos consecutivos, algo incomum neste formato de Champions”, afirma Leonardo Bertozzi. Após dez anos, ainda vemos o Real Madrid no topo e confiante: chegaram a cinco finais, com quatro já conquistadas e uma a ser decidida no dia 1 de junho, contra o Borussia Dortmund.
Para o Atlético, foi a chance de conquistar a sonhada taça da Champions e evitar o título de um rival, que se sobressaiu perante eles desde o início do século passado. Tanto em campo, quanto em questões políticas, era a oportunidade de construir uma nova era na Europa. Apesar da “Era Simeone” mudar o clube e trazê-lo de volta aos holofotes, o título da Champions, que não veio em 2013/14, seria evitado novamente pelo rival anos depois, em 2015/16, nos pênaltis.Nos últimos dez anos, o Atleti não voltou a mais uma final da competição, e conquistou apenas uma Supercopa Europeia — contra o próprio Real — uma Europa League, uma La Liga e uma Supercopa da Espanha.
Emocionante esta viagem nostálgica