Foto: Ronaldo Gutierrez/Divulgação
Escolher adaptar 1984, de George Orwell, para um teatro foi um ato ousado. A representação, em si, da peça foi ainda mais do que isso.
São poucas as palavras que podem ser usadas para definir a experiência de se assistir a um espetáculo como esse, realizado no Sesc Consolação. Ousada é uma delas, e talvez a que mais se encaixe. Ao final, depois de 120 minutos de agonia milimetricamente dosada, a plateia estava atônita. As palmas foram fervorosas e não parecia haver ninguém que se recusasse a levantar. E com razão.
A peça já começa deixando claro seu principal motivo: incomodar. Enquanto os espectadores vão entrando na sala, o personagem principal já está em cena. Imóvel. Parece um manequim ou parte inerte do cenário. Em um ato quase instintivo, a produção levanta um dos principais questionamentos da história sem ter dito uma única palavra: “aquele ser é ser ou máquina?”. Antes de tocado o terceiro sinal e iniciada, realmente, a apresentação, a agonia já está no ar.
Quando efetivamente começa, vemos um monólogo. Nos primeiros minutos, são mostrados os efeitos técnicos dos quais a produção se valerá durante todo o decorrer da peça. Para aqueles que, por conhecerem a história por meio do livro, se perguntaram “como será feita essa adaptação?”, pode-se dizer que a resposta surgiu de forma bem clara: por meio dos jogos de luzes e som. Com várias luzes móveis e projeções no próprio cenário, além dos efeitos sonoros que parecem entrar na mente ao perfurar as orelhas, é impossível contestar o fato de que o Grande Irmão está te observando. Dentro de uma sala relativamente pequena, num ambiente no qual todos sabem que está acontecendo uma encenação, a imersão é tão forte que é inevitável se questionar sobre a própria existência e realidade. 1984 não é um espetáculo para se assistir pacífica ou passivamente. E é nesse fato que mora grande parte de seu potencial.
O enredo também inova. É apresentada uma dicotomia entre os anos de 1984 e 2084. No primeiro, se passa a história escrita por Orwell. No segundo, seis pessoas lêem e analisam como ela ainda é tão atual. Por mais que datada, ambas as partes poderiam se passar em qualquer tempo, em qualquer lugar. Orwell criou uma trama tão elaborada e cheia de alegorias que se encaixa em qualquer futuro. E a peça, além de adaptar, exalta esse fato.
Outra característica que pode ser considerada uma das grandes qualidades daquela encenação é a presença frequente da surpresa. São diversos os momentos nos quais o espectador é surpreendido e, mesmo que isso aconteça algumas vezes, ele nunca está preparado. Depois de construída a sensação de uma constante observação, a iminente explosão de uma surpresa, a todo instante, contribui para transportar a plateia para dentro da história de forma quase concreta. Até mesmo o cenário, que parecia fixo e único ao início da peça, se mostrou com mobilidade semelhante aos feixes de luz.
Toda a produção é impecável. O cenário, que começa como uma pequena sala, se desdobra em refeitório, quarto, corredor, floresta. O figurino é sóbrio e cabe perfeitamente em todas as cenas.
No que diz respeito aos atores, tudo também são somente elogios. A atuação foi tão profunda e fiel que estar ali parecia invadir a privacidade dos representados. Rodrigo Caetano, que interpreta o principal Winston Smith, traz uma performance visceral, com muito uso da expressão corporal, arrebatando o espectador a cada cena. Carmo Dalla Vechia, ator já conhecido das telenovelas, mostra toda a sua intensidade e o seu talento no misterioso O’Brien. Algumas cenas foram tão simples e reais, e outras tão fortes e inacreditáveis, que os 120 minutos de peça foram capazes de resumir os altos e baixos da vida humana com perfeição. Em cena, estava o grande embate entre o ser e a política, entre amor e engajamento. E os atores o transmitiram de forma íntima e real.
O roteiro também é primoroso. Diálogos significativos, cheios de metáforas e situações políticas, mostram que a distopia de Orwell não está tão distante assim da nossa modernidade. Conforme o clima de opressão aumenta no enredo, o próprio público presente se sente oprimido e incomodado com a situação, querendo, por vezes, quebrar o silêncio, se levantar, gritar, interferir ou qualquer coisa que quebre aquela agonia. Frases como “eles não conseguem sair de suas telas” e “onde você acha que está, Winston?” marcam todo o espetáculo aproximando encenação de realidade.
É impossível sair idêntico de quando se entra em 1984. O espetáculo muda o espectador. O espetáculo toca o espectador. O espetáculo engole o espectador de tal forma que, ao entrar no teatro do Sesc Consolação e sair duas horas depois, é impossível ser o mesmo. Uma parte de quem assiste fica ali, naquela sala, ainda boquiaberta com a experiência que acabou de presenciar. Outra parte sai pelas ruas de São Paulo em um efeito catártico analisando toda sua vida até aquele momento e o que poderá ser dela depois. O diretor Zé Henrique de Paula conduz uma apresentação mediúnica que impregna em todos os poros de quem está presente. Espectador e espetáculo se fundem e formam uma outra massa ainda sem nome, mas que, com toda certeza, teve toda a sua percepção alterada.
1984 está em cartaz no SESC Consolação até o dia 08/07, toda sexta-feira às 21h, sábado às 21h e domingo às 18h.
Por Laura Scofield e Maria Carolina Soares
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