Este filme faz parte do 22º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade. Para mais resenhas do festival, clique aqui.
“Um poeta morto não escreve. Daí a importância de permanecer vivo.”
— Michel Houellebecq
Poucas figuras do mundo da música foram tão emblemáticas quanto Iggy Pop. Apesar de evidentemente ter marcado a história devido à sua música, sua presença de palco e persona artística são o que mais ressoam de fato: as apresentações elétricas, a postura clássica de rockstar doido (não nos esqueçamos que a invenção do stage diving é atribuída a ele), e a voz grossa e rouca que mais recita do que canta suas letras.
Em Permanecer vivo: Um Método (To Stay Alive: A Method, 2016), o artista decide refletir sobre sua própria vida com base no ensaio de mesmo nome do autor francês Michel Houellebecq. O texto — e, consequentemente, o filme — é autobiográfico e trata da condição do poeta, sendo repleto de reflexões sobre a função do sofrimento para executar essa função e traçando comparações entre a criação artística e a morte. Ainda que o filme seja tecnicamente um documentário, ele absorve a característica metalinguisticamente poética do ensaio, servindo antes como uma reflexão do lugar que a arte ocupa na vida de todos e, apesar de ultimamente provir do sofrimento, é a maneira principal de impedir que este nos enlouqueça. No trailer, o filme se auto-define como “um filme feel good sobre sofrimento”.
Mas o ensaio não é só sobre Iggy. Apesar de identificar sua experiência particular nos escritos de Houellebecq, ele universaliza o texto para que este abranja a vida de todo e qualquer artista — e particularmente daqueles que, assim como Pop, diagnosticado como bipolar em 1975, lutam com distúrbios psicológicos e utilizam sua arte como vazão para esse conflito. Conhecemos Anne Claire, que é igualmente bipolar, tem um grau leve de esquizofrenia e escreve poemas; Jerôme, esquizofrênico e poeta; Robert, artista plástico não diagnosticado. Temos acesso às suas produções e a um breve resumo de suas batalhas, intercaladas por trechos do ensaio original de Houellebecq que servem quase como mantras: “todo sofrimento é bom. Todo sofrimento é útil. Todo sofrimento dá frutos. Todo sofrimento é um universo”, “a vida é uma série de testes de destruição. Passe no primeiro deles, falhe todos os outros.”
A construção do documentário, dirigido pelos holandeses Erik Lieshout, Arno Hagers e Reinier van Brummelen, é difusa tal qual um poema. Ela segue a estrutura do ensaio — Sofrer, Articular, Sobreviver e Atacar — mas o conteúdo de cada um desses blocos não parece ter muito motivo de fato para ter sido colocado ali. A todo momento, parecemos assistir a uma obra de ficção altamente calculada ao invés de um documentário: a sensação se torna particularmente forte na cena final, que mostra Iggy, Houellebecq, Robert, Anne Claire e Jerome caminhando juntos e alinhados por uma rua vazia parisiense. Mas essa talvez seja justamente a ideia do documentário: fazer sentido daquelas vidas de forma poética, transformando-as em algo belo, que transcende e que conta com uma indeterminação suficiente para que seja apropriada por qualquer outro artista que precise daquelas reflexões.
E se o objetivo de um documentário é buscar a verdade, é necessário se ater àquilo que Houellebecq descreve como a verdade de um poeta: “Tudo aquilo que não provém diretamente da emoção é, em poesia, sem valor. Emoção acaba com a corrente causal. Sozinha, é capaz de possibilitar a percepção das coisas pelo que elas são. A transmissão dessa percepção é o objeto de toda poesia. (…) A poesia deve descobrir a realidade em suas próprias e intuitivas maneiras, sem passar pelo filtro de uma reconstrução intelectual do mundo.”
Trailer em inglês:
por Bárbara Reis
barbara.rrreis@gmail.com