Esse filme faz parte da 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Para mais resenhas do festival, clique na tag no final do texto.
Josep (2020), animação co-produzida por França, Espanha e Bélgica, é homenagem fascinante a um ilustrador dirigida por outro ilustrador. Combinação que deu muito certo e retrata desde uma Europa em guerra a um México no interior da casa de Frida Khalo.
Se fosse para fazer comparações, assistir a Josep seria algo como visitar um grande museu de ilustrações e de história. Só que com o diferencial de ter obras constantemente mutáveis. A cada segundo, ou mesmo milissegundos, vão surgindo novas cenas, corpos e contornos nessa interessante narrativa que resgata, sempre de forma tenra, vidas cruzadas em tempos totalitários.
A escolha do diretor e cartunista francês Aurel para o desenvolvimento de seu primeiro longa-metragem, foi inspirada na história do desenhista, pintor e ilustrador catalão Josep Bartoli. E tem mais. Narrada em 2D, os próprios contornos e imagens esboçados por Bartoli ajudam a dar vida à sua trajetória. Com muita maestria, isso também aparece em Com Amor, Van Gogh (Loving Vincent, 2017), exibido na 41ª Mostra — ainda que com abordagens e técnicas diferentes.
Tudo começa com um Bartoli de 1939, republicano, espanhol, vivendo em plena ditadura de Franco. Ele foi um, dos centenas de milhares de espanhóis, que fugiram para França para escapar do totalitarismo. Porém… faltou no país vizinho espaços de liberdade, igualdade ou fraternidade. Na verdade, o governo francês construiu campos de concentração, confinando ali os refugiados em um ambiente inóspito, onde Bartoli, com um lápis na mão, esboçou os horrores vividos ali. Não era ficção.
O longa retrata essa realidade de crueldade, indiferença e solidão com cores amarronzadas e traços sombrios mesmo à luz do dia. Mas há também um espaço construído delicadamente para a apresentação de uma humanidade ainda latente, que resguardava a possibilidade da existência de risadas. A textura da trilha sonora feita por Sílvia Pérez Cruz, a exemplo de “Todas las madres del mundo”, oferece também um respiro frente à realidade aprisionada.
“Se as belas ideias não encontram uma bela pessoa, então a morte a encontra”, talvez uma das passagens mais tocantes de Josep. Para escapar da morte, ou resistir ao arame farpado, os cantos, a dança e os desenhos eram os propagadores das belas ideias defendidas pelos refugiados. Era a arte como um meio de sobrevivência, que alavancou inclusive o surgimento de uma amizade inesperada entre Josep e um soldado francês, Serge. Este, já velhinho, é o responsável por guiar a história a partir de suas lembranças.
Com o passar dos minutos, a narrativa vai tomando cor, quando essa página na vida de Josep é virada. Ele ainda não conquistaria a liberdade, mas passa de um refugiado a um exilado no México. Nesse país, começa uma relação inusitada e cheia de paixão com ninguém mais, ninguém menos, que Frida Kahlo. De fato, Bartoli e Frida foram amantes e trocaram muitas correspondências clamorosas. As cenas coloridas, que retratam a fachada azulada da casa de Frida e Diego, são extremamente acalentadoras em relação às anteriores.
Essa mudança de local marca a guinada do filme: “O dia em que finalmente deixar a cor entrar, terá domado seu medo”. O medo de Josep, a fome por liberdade e a expressão por meio de contornos para expressar e denunciar tudo isso marcam essa animação cheia de fatos e poesia. Mostrando a arte como uma necessidade primeira que acompanha Josep e os espectadores do início ao fim.
Além de compor o grupo dos filmes de animação na Mostra Internacional de SP de 2020, o longa integrou também a seleção oficial do Festival de Cannes e foi exibido no Festival de Annecy (ambos na França). Confira aqui o trailer, com legendas em inglês:
*Capa: [Imagem: Divulgação/Les Films D’Ici]