Você acorda e decide comer no café da manhã uma maçã e uma banana. Mais tarde, almoça uma salada com alface e tomate. Para finalizar o seu dia, decide jantar uma sopa de legumes. Muito provavelmente, a maior parte dos alimentos que você ingeriu em três simples refeições do seu dia a dia foram produzidos pela agricultura familiar, fundamental para abastecer o mercado interno brasileiro. Infelizmente, essa prática milenar sofre com o descaso governamental, correndo o risco de acabar e deixar inúmeros pequenos proprietários sem futuro.
É justamente esse cenário de insegurança na existência da agricultura familiar parecido com o cenário brasileiro que o drama espanhol Alcarràs (2022) vem abordar. Tendo recebido um grande reconhecimento internacional após ganhar o prêmio do Festival de Berlim, o filme se concentra na história da família Solé, pequenos agricultores há gerações, mas que correm o risco de perder seu sustento após os donos daquela terra decidirem acabar com a plantação para instalar painéis solares. Isso faz com que surja um embate entre os membros dessa família para decidir o futuro deles e da própria terra.
Mostrando como o cinema possui um papel fundamental para dar voz a pessoas e situações pouco conhecidas, o filme possui a habilidade de conseguir transmitir ao público internacional as dificuldades que os agricultores enfrentam. Durante 120 minutos, os telespectadores acompanham o descaso governamental com os pequenos proprietários, visto na falta de salários dignos, de direitos, ou no risco de perder uma terra de gerações num piscar de olhos.
O filme também mostra que, para uma pessoa que passou a vida trabalhando com a plantação, perder a terra é também perder seu propósito de vida. E essa perda da existência conversa diretamente com um dos temas centrais do drama espanhol: o medo da mudança, exemplificado pela figura do patriarca da família Quimet Solé. O personagem sofre com um dilema interno o longa inteiro, sempre se perguntando se ele deve se adaptar às novas tecnologias e virar um “cuidador de painéis solares” ou lutar para que não destruam as suas memórias da terra, um lugar que ele conhece e ama desde que se entende como pessoa.
Para mostrar que as mudanças afetam a família como um todo e não só seu patriarca, o filme aposta em criar diversos “protagonistas” e desenvolver todos os membros da família apresentados em poucas horas. Vindo de uma família de agricultores muito grande, a roteirista e diretora Carla Simón consegue dar voz para todos os seus personagens, desde às crianças da família até aos membros mais idosos, sempre mostrando como cada fala e decisão de um personagem afeta tantos ao seu redor.
Similar ao movimento do neorrealismo italiano, Simón procurou utilizar atores não-profissionais e locais da cidade de Alcarràs. Com isso, ela conseguiu deixar a interação entre os membros da família mais natural possível, sempre demonstrando a importância da terra para eles. O que foi necessário para um filme de 2h que constrói toda sua narrativa através de cenas dos membros da família interagindo entre si. Sem grandes reviravoltas ou explosões e lutas intensas, o drama do filme está em cenas “pequenas” e “normais”, como crianças brincando em um trator ou uma colheita de pêssegos.
Mas todo um filme baseado em cenas de familiares apenas existindo e sem nenhuma cena dramática por duas horas pode cansar um telespectador que não está acostumado com um cinema existencialista. E aqui está um defeito em Alcarràs: o seu ritmo extremamente lento. Acostumados com filmes acelerados e cenas grandiosas a cada 5 minutos, o público pode estranhar e até mesmo se incomodar com um filme que busca ser um longo relato do dia a dia de uma família.
Caso você não seja vencido pelo cansaço e consiga assistir às duas horas do filme escolhido para representar a Espanha no Oscar 2023, Alcarràs te proporcionará um divertido relato do dia a dia das interações entre uma família de agricultores e uma importante lição sobre a importância e as dificuldades da agricultura familiar.
Esse filme faz parte da 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Para mais resenhas do festival, clique na tag no final do texto.
O filme estreou na 46° Mostra Internacional de São Paulo e, em breve, estará disponível para quem quiser assistir nos cinemas e na Mubi. Confira o trailer:
*Imagem de Capa: Divulgação/Berlinale