Este filme faz parte da 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Para mais resenhas do festival, clique aqui.
Dirigido pelo espanhol Adrían Orr, Niñato (2017) já conquistou o prêmio “Regard Neuf” no festival suíço Visions du Réel e o prêmio de Melhor Filme no Festival Internacional de Cine Independiente de Buenos Aires (BAFICI).
Inscrito no gênero documental, o longa promove a imersão do público em um cenário essencialmente doméstico. David – apelidado de Niñato pelo hip-hop – é um homem branco de 32 anos, desempregado e com três filhos pequenos para criar, Oro, Mia e Luna. Morando no apartamento em frente ao dos seus pais, ele tenta conjugar a paternidade com a produção musical. A sensibilidade do cotidiano familiar é cuidadosamente explorada, com a sobreposição das expressões faciais e gestuais sobre a linguagem falada.
O desenrolar da rotina matinal da família compreende as cenas mais extensas da obra. Despir-se dos pijamas para vestir trajes casuais revela-se como um verdadeiro desafio às crianças – o som dos bocejos, os semblantes de sonolência e a troca de roupas integram a exposição cuidadosa da intimidade das personagens. David estimula a autonomia dos filhos enfatizando com voz imperativa que o ato de vestir-se sozinho é uma responsabilidade pertinente a eles, caracterizando a família como um “time” com responsabilidades individuais e coletivas. O café da manhã traduz uma série de vínculos familiares, que vão desde o preparo do leite para as crianças, até Oro – o mais novo – cantarolando trechos das músicas do pai que estão tocando ao fundo.
David leva os filhos até a escola todos os dias e o caminho, percorrido a pé, é enriquecido por sons habituais, como o da chuva e o das rodinhas das mochilas sendo arrastadas no chão. O ambiente interno da escola não é explorado, o que parece extensão do foco majoritário da narrativa sobre o cotidiano doméstico das personagens. As crianças realizam as tarefas escolares com a ajuda do pai ou da avó. Dentre os pequeninos, Oro parece apresentar maior dificuldade com a habilidade da concentração.
Em determinada cena, Luna – filha mais velha, inteligente e de cabelos ruivos encaracolados – realiza o dever escolar na sala, junto a Oro e a avó das crianças. Sendo provocado pela menina, Oro – pequenino, de cabelos lisos e ruivos –, aparentemente indefeso e frágil, se enraivece e expressa indignação com o contexto. A avó, por sua vez, decide separar as crianças, colocando-as em cômodos distintos. Ao final do filme, encontramos os pequenos obtendo êxito com a realização das tarefas escolares, um em cada canto da casa. Nesse ponto, o longa, que valoriza sobretudo a união familiar, parece expressar a relevância do singelo isolamento familiar em contextos específicos, como este no qual o afastamento das crianças acaba sendo positivo para ambas e instiga a realização autônoma das tarefas pelas mesmas.
A incorporação das letras e batidas de rap criadas por Niñato no cotidiano dos pequenos é um tema marcante, caracterizado pela espontaneidade. Eles tomam o café da manhã ao som de rap, Oro e Mia – filha do meio, de cabelos lisos pretos e a que mais demora em levantar da cama pela manhã – cantarolam juntos e, durante o banho, Oro entona com doçura as rimas do pai. Os vestígios da cultura underground são expressos também nas paredes da casa, preenchidas por ilustrações, rabiscos, cartazes com desenhos das crianças e tintas de cores diferentes. O espanhol, quase sempre com um cigarro em mãos, deixa traços de sua paixão pelo rap nos pequenos e parece sustentar o sonho aparentemente inviável de sobreviver da música.
Em nenhum momento são reveladas informações ou pistas sobre a mãe dos pequenos, o que não prejudica o desenvolvimento da obra. Da mesma forma, não ficam evidenciadas as possíveis relações entre as letras das músicas compostas por David e a sua vida pessoal.
Uma marca importante do longa é que Adrían Orr gravou a maior parte das cenas com a câmera em mãos, favorecendo o estreitamento da relação entre o espectador e a narrativa exibida. Nas ocasiões de diálogo, nota-se o predomínio do foco da fotografia em uma das personagens, com as reações da outra sendo deixadas em aberto e à disposição da capacidade imaginativa do público, como na cena em que David chama a atenção de Mia – que insiste em permanecer dormindo enquanto as outras crianças trocam as vestes – e a câmera foca nas expressões gestuais do menino Oro.
Veja o trailer:
Por Camila Mazzotto
camila.mazzotto@usp.br