A 19ª edição da Copa do Mundo, realizada em 2010, foi um cenário repleto de primeiras vezes: primeira vez que a África sediou o evento, primeira vez que a seleção do país sede foi eliminada ainda na fase de grupos e, principalmente, primeira vez que a seleção da Espanha chegava a uma final de Copa.
Em 11 de julho daquele ano, o confronto com a Holanda atraiu não somente as torcidas dos times, mas, também, apostas e debates furiosos sobre qual seria o resultado daquela última partida. O resultado final foi favorável aos espanhóis, que finalmente conquistaram seu primeiro título no campeonato, mas não fora somente isso que tornou o jogo um marco histórico no mundo do futebol.
Em entrevista ao Arquibancada, Leonardo Miranda, repórter do Globo Esporte e especializado em análise de desempenho pela CBF (Confederação Brasileira de Futebol), realiza uma análise sobre os motivos para esse acontecimento ser tão memorável ainda hoje, dez anos depois.
O caminho do título
Pouco antes da Copa do Mundo, a Fúria, um dos apelidos da seleção espanhola, conquistou, em 2008, o título da Eurocopa ao derrotar a Alemanha por 1 a 0, com gol do atacante Fernando Torres. Após o título europeu, o então treinador Luis Aragonés deixou o comando da seleção e deu lugar a Vicente Del Bosque, que tinha passagem recente pelo Beşiktaş, importante time do futebol turco.
O jornalista Leonardo Miranda comenta sobre o processo de transição do comando da Roja: “O Luis Aragonés é um nome muito menos lembrado do que ele deveria ser na Copa do Mundo, muito porque ele não foi um técnico vencedor. Ele é um técnico que, assim como o Del Bosque, se adequava os jogadores. Não é um técnico como Simeone, por exemplo, que tem um estilo de jogo característico. Seus times poderiam ser defensivos ou ofensivos, pressionar lá na frente ou defender mais no próprio campo”.
Apesar do pequeno abalo sofrido pela derrota para os Estados Unidos, a Espanha certamente tinha um dos elencos mais fortes do Mundial de 2010, se não o mais poderoso. E mesmo com todas peças da equipe, que atuaram em altíssimo nível nos anos anteriores, a conquista do Mundial teve um início um pouco conturbado, com uma derrotada pelo placar mínimo contra a Suíça. A sorte da seleção espanhola foi que no Grupo H não havia grandes times. Assim, a equipe garantiu sua classificação em primeiro lugar após derrotar Honduras e Chile pelos placares de 2 a 0 e 2 a 1, respectivamente.
Na sequência final do Mundial, a equipe de Del Bosque eliminou Portugal, Paraguai e Alemanha – todos pelo placar mínimo – até chegar à decisão contra a Holanda. Ainda que a Espanha caminhasse rumo ao título e tivesse jogadores excepcionais e um estilo de jogo alicerçado, as disputas não eram necessariamente prazerosas de acompanhar.
Trata-se assim, de uma escolha técnica, com o objetivo de arrancar o melhor desempenho nas competições: “A ideia de jogo da Espanha era ter a posse de bola para se defender, não queria tomar riscos. Por isso era um time que não atacava o tempo todo, não fazia faltas, não concedia chances aos adversários”, analisa Leonardo.
O jornalista complementa que a tática não foi utilizada somente para garantir uma eficiência ofensiva: “Para atacar, o time trocava muito os passes até chegar ao gol. Para se defender, procurava fazer isso não com todo mundo lá atrás, queria se defender trocando passes. Se o adversário não tem a bola, ele não consegue fazer gol”.
Tiki-taka e o contexto espanhol
A seleção espanhola estava muito pressionada por um resultado na época. A vitória no Mundial mostra-se como um resultado de um planejamento de longo prazo.
Leonardo concorda que o planejamento espanhol não constitui um caso recente e isolado: “Tanto a Espanha, quanto a Alemanha e a França, além de terem em comum essa mentalidade de um projeto a longo prazo, também souberam se adaptar na Copa do Mundo”. Ele ainda compara a trajetória desses times. “O melhor jogo da Alemanha foi contra o Brasil, ela não fez uma Copa incrível. A França também não fez uma Copa (2018) brilhante, tinha um futebol brilhante antes da Eurocopa. A própria Espanha tinha um time muito mais móvel e ofensivo na Eurocopa”.
Além do pragmatismo e do planejamento organizacional, deve-se apontar também a força contextual em torno da conquista. Além da primazia dos jogadores vindos da escola do Barcelona, como Xavi, Iniesta, Pedro, Puyol e Piqué, o elenco contava com Iker Casillas, melhor goleiro do mundo na época. Vale adicionar que a grande maioria dos jogadores do elenco espanhol encontravam-se também em seu auge físico (dos 25 aos 28 anos).
O campeonato nacional passava por uma fase fortalecida. No intervalo entre 2008, coroação da Espanha na Euro, até 2014, ano que outra seleção foi a campeã mundial, Real Madrid e Barcelona somaram quatro títulos da UEFA Champions League. Dos 23 jogadores que integraram a seleção, apenas três jogavam em times estrangeiros.
Mas certamente o componente mais decisivo para o triunfo espanhol foi o seu esquema tático e proposta de jogo: o tiki-taka. Como mencionado anteriormente, a forma encontrada pela seleção espanhola para se defender e garantir vitórias consistia em manter a posse de bola durante a partida.
No entanto, a estratégia não foi uma prática exclusiva da seleção espanhola, dado que o Barcelona, principal potência do futebol mundial na época, aplicava um sistema semelhante. Leonardo Miranda fala um pouco sobre as formas mistas de aplicação desse esquema: “Em termos de ideia de jogo, eram times bem diferentes. O Barcelona era um time que pressionava muito mais lá na frente, que fazia muito mais gols. Já a Espanha, era time mais paciente, tinha mais posse de bola, mais toque”.
Tratou-se também de uma necessidade da Espanha em adequar seu elenco a uma certa defasagem. Leonardo comenta que “a Espanha não tinha mais um grande atacante. Ela tinha meio-campistas como Iniesta, Xavi, Xabi Alonso, David Silva, que gostavam de passar a bola, então há uma mudança cultural. Ele reforça que a inspiração para esse estilo veio da influência de Aragonés, continuada pelo Del Bosque, e pela capacidade do técnico de fazer com que todos os jogadores se sentissem confortáveis dentro de campo.
Espanha x Holanda
É inegável que a seleção espanhola realizou uma campanha exemplar na temporada de campeonatos que antecederam a Copa do Mundo. No entanto, isso não significava que, na final, o trabalho seria fácil. A Holanda, ao se consagrar finalista daquela edição, era um adversário tão competente em questões físicas e técnicas para a Espanha quanto o contrário.
Ambas as seleções eram compostas por gigantes do futebol. O time holandês levou a campo 11 jogadores sob a técnica de Bert van Marwijk – dentre eles, nomes como Arjen Robben, Wesley Sneijder e Giovanni van Bronckhorst. A Espanha, de Vicente Del Bosque, também estava muito bem composta, com Xavi, Andrés Iniesta e David Villa em sua formação.
Contudo, as trajetórias dos finalistas durante todo o campeonato se divergem muito em relação às estratégias e táticas de jogo. Indubitavelmente, tal questão consolidou tanto na seleção espanhola quanto na holandesa diferentes perfis de jogo. Enquanto a Holanda era tida como um time mais agressivo, a Espanha, que começou o campeonato com a mesma postura, mostrou em campo que os seus métodos já não eram mais os mesmos. Consequentemente, as técnicas adotadas influenciaram em seus desempenhos durante o mundial.
Leonardo conta que a mudança de estratégia da seleção espanhola não foi por acaso. Segundo ele, isso se deve a um planejamento do técnico que, consciente do time que tinha, soube aproveitar os pontos fortes e se certificou que os pontos fracos não interferissem no jogo.
O resultado foi uma performance tímida para um campeão de Copa do Mundo, com poucas faltas e vitórias com o simples placar de 1 a 0, mas era justamente o que Del Bosque havia premeditado. Posteriormente, entrevista para o jornal britânico The Guardian, antes do início da Copa do Mundo de 2014, o técnico conta que o objetivo do time era sempre manter a posse de bola para controlar os jogos, e não para confrontar o adversário.
Diferentemente, a Holanda não escondia a sua fúria nas partidas. A seleção, que chegou invicta ao jogo da final, tinha uma atuação completamente contrária à da Espanha. O time de Bert van Marwijk não ia em busca da posse de bola para sua defesa, mas, sim, para o ataque. Em vista disso, acabou acumulando cerca de 15 cartões amarelos durante a Copa, sendo que destes, sete foram na final, assim como o único cartão vermelho do time.
A respeito dos jogadores, Leonardo elogia: “A Holanda não era um time tão feio quanto falavam, era uma equipe mais pragmática, com uma outra escola mas que tinha grandes talentos: Robben, van Persie, Kuyt, van Bommel, Sneijder. A última grande geração da Holanda foi essa em 2010 e em 2014, já um pouquinho mais envelhecida”. O repórter ainda faz questão de mencionar a atuação do meio-campista Wesley Sneijder que, durante a Copa de 2010, marcou cinco dos 11 gols da seleção no mundial, e em campeonatos anteriores, seu desempenho também foi digno de destaque.
“Sneijder tinha vindo de uma temporada no Inter de Milão excepcional, e foi um dos principais jogadores na vitória de 3 a 1 do Barcelona de Josep Guardiola naquele jogo incrível. Foi um dos principais jogadores junto com Diego Milito no título do Inter de Milão”, lembra Leonardo, destacando que a performance do holandês era muito representativa para ele, torcedor da Holanda em 2010.
A final
Comparando as diferenças entre os perfis de jogo da Espanha e da Holanda, era de se esperar que o último jogo da Copa do Mundo daquele ano seria uma surpresa a todos que a acompanhavam. A conquista da vaga espanhola por si só já havia quebrado muitas expectativas, uma vez que, segundo Leonardo, a mídia esportiva internacional, na época, apontava o Brasil como um dos grandes favoritos ao título.
A agressividade holandesa e a passividade espanhola também estiveram presentes na partida final, mas desta vez, em confronto, o que podia tornar o jogo muito mais difícil para os finalistas. De fato, foi o que aconteceu. A estratégia da Espanha de focar na posse de bola resultou na atração dos ataques da Holanda. Com isso, a partida se caracterizou pela enorme quantidade de faltas cometidas e, principalmente, tentativas frustradas de ambos os times em marcar gols.
“Eu vendo o jogo de novo, considero que a Holanda foi superior, porque a Espanha não fez tanta coisa, não conseguiu atacar tanto. Mas talvez ela tivesse os melhores jogadores, aqueles em melhor fase, e todos os jogos decisão são assim, em que é muito mais importante vencer do que jogar“, comenta Leonardo, ao comparar a atitude dos dois times em campo.
O jornalista considera que isso resultou em um jogo não tão proveitoso: “Foi pouco jogado, teve muitas faltas, foi muito parado. A qualquer momento poderia sair o gol, porque os dois times atacaram bastante, mas vi que quem o fizesse, venceria a Copa, ou iria para os pênaltis, como em 2006. Não queria que isso acontecesse de novo”, opina.
Ainda a respeito dos ataques dos times, é válido notar que eles mais pareciam dificultar a performance do adversário do que efetivar os gols que poderiam ser marcados. Com cinco chutes sem sucesso de cada equipe, o árbitro inglês Howard Webb determinou a prorrogação do jogo após o segundo tempo. Se ainda assim o placar continuasse zerado, a grande decisão seria encaminhada para os pênaltis.
No entanto, a prorrogação foi suficiente. Nos minutos finais do tempo adicional, o meio-campista Andrés Iniesta finalmente marcou o gol da vitória, que logo em seguida foi apitada pelo árbitro. Com o placar de 1 a 0, a Espanha conquistou, em 11 de julho de 2010, seu primeiro título de Copa do Mundo e Iniesta encerrou sua trajetória no campeonato daquele ano com cinco gols em nome de sua seleção.
A vitória espanhola, então, fez jus ao trabalho árduo de Vicente Del Bosque no comando técnico do time e finalmente assegurou a conquista de seu objetivo a longo prazo. O primeiro título foi recebido com felicidade e festa pelos espanhóis. Até mesmo a diversidade étnica presente no país que, até então, era motivo de grandes conflitos devido, dentre outros motivos, a questões identidade cultural, pareceu cessar por um breve momento para aproveitar a comemoração.
Ao que se nota, a trajetória dos campeões saiu como o planejado. A disciplina do time, combinada com a observação sagaz de Del Bosque nos campos, provou ao mundo que a vitória no futebol vai muito mais além dos chutes. “Se a gente pegar esses dois termos, que são ‘vencer jogando bem’ ou ‘perder jogando mal’, na verdade a escolha foi ‘vencer do melhor jeito possível’”, conclui Leonardo, dando ênfase ao combo de técnica, condicionamento físico e estratégia que trouxeram, juntos, a taça da Copa do Mundo de 2010 para as mãos da equipe espanhola.