Por Barbara Monfrinato
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Nick Cave nasceu na Austrália para depois viver por aí, na Alemanha, no Brasil, na Inglaterra, mas nem é mesmo deste mundo. Magro, alto, pálido, do olho azul que intimida debaixo das sobrancelhas grossas. O cabelo preto tingido cai liso até o ombro; já usou mullet, comprido, desgrenhado. Vive de terno e camisa, escreve sem parar. Frontman desde os anos 80 dos Bad Seeds que chamam de sombrio, gótico, garagem, pós-punk – dê play abaixo e decida por você -, mas que é bem maior que tudo isso, como mostra o filme Nick Cave – 20,000 Dias na Terra (20,000 Days on Earth, 2014).
O filme é também ele difícil de definir, num espaço entre ficção e documentário que costumam encaixar no “docudrama”. Durante um dia inventado entre sessões de análise, conversas com o parceiro musical Warren Ellis e momentos de inspiração no escritório, o foco é o processo criativo do não-humano e canibal Nick Cave, como ele mesmo se define nas primeiras cenas: engolindo experiências, relacionamentos, histórias, e vomitando tudo na forma de música.
Em vez de buscar desmistificar seu “personagem” com depoimentos, arquivos e narrativas realistas, como em um documentário convencional, 20,000 Dias na Terra – contagem encontrada em um dos cadernos do músico – vai quase no sentido oposto: a ideia aqui é manter a mitologia em volta de Cave. Ele próprio dá a dica, quando, no carro, entre um colega e outro que leva, diz que astro de rock deve ser visto não como alguém que se compreende totalmente, mas com certo distanciamento, como um deus.
A ideia do documentário partiu de Iain Forsyth e Jane Pollard enquanto filmavam as sessões de gravação do último álbum de Cave com os Bad Seeds, “Push the Sky Away”, de 2013. O resultado deu certo e incentivou ambos a transformar aquilo em algo maior.

Cave de início foi relutante em ser filmado, auto-promovido, ter sua história contada: “documentários de música costumam ser como conhecer um herói, sabe? […] tentam deixar o sujeito do documentário humano, e não é isso que a gente realmente quer ver”. Mas Forsyth e Pollard tinham uma proposta diferente e até a influência de Led Zeppelin: The Song Remains the Same (1976), documentário que mescla shows da grande banda de rock inglesa com elementos fantasiosos de seus integrantes e que, segundo Cave, “faz tudo menos tratar o sujeito como uma pessoa normal”.
Os cenários e as situações em 20,000 Dias na Terra são de certa forma construídas, mas os diálogos, quase todos improvisados. A presença da voz de Cave ao fundo como monólogo ou diário pessoal, suas composições, a câmera “subjetiva”, tudo trabalha para criar a atmosfera de endeusamento e, ao mesmo tempo, intimidade. Bom ver cenas como Cave assistindo Scarface (1983) com os dois filhos, dizendo que seu maior medo é perder a memória e contando sobre sua primeira experiência sexual. Ou então as conversas no carro, imaginação solta, com pessoas que tiveram influência em sua vida: o ator Ray Winstone, o ex-companheiro de banda Blixa Bargel e a cantora Kylie Minogue, com quem gravou a música Where the Wild Roses Grow, de 1995. Ou, ainda, a lembrança de um show da gigante Nina Simone – exemplo máximo que ele tem de performance no palco como algo transformador tanto para a plateia como para o artista.

As cenas musicais, que incluem também aquelas sessões do “Push the Sky Away”, são mais naturais e de uma beleza à parte: materialização de tudo que se diz no filme sobre criação e performance. Para ele, alguma coisa acontece ali no palco, entre o espectador, o músico e a música – espaço inventado e eterno em que ele mistura real e imaginário, amor, fantasia, verdades fundas. E quando se vê no final Nick Cave cantando de verdade, de vermelho, de azul, de todas as câmeras, de agora e de antes, só resta aplaudir.