Maria Luiza Ferreira de Oliveira, palestrante da VII Semana de Fotojornalismo, organizou e escreveu a abertura do livro “Métropole“, coletânea de fotografias de Hildegard Rosenthal. A maior parte das imagens do livro mostra cenas de São Paulo durante o início do século XX, entre elas os retratos de trabalhadores emblemáticos da cidade, como o menino engraxate; o cobrador de ônibus; o carregador de feira; o guarda de trânsito, entre outros. Mas a fotógrafa alemã, que veio para o Brasil acompanhando o namorado judeu, perseguido pelo regime nazista, também retratou as mulheres na cidade, mostrando alguns pedaços ocupados por elas e evidenciando que não se limitavam ao universo doméstico, das compras e dos passeios.
No bate-papo a seguir, Maria Luiza, que é historiadora e professora da Universidade Federal de São Paulo, fala sobre suas experiências acadêmicas com a fotografia, sobre o trabalho na organização do livro Metrópole e sobre a vida e obra de Hildegard Rosenthal.
Blog da Jota: Além de sua formação, quais são suas experiências voltadas com a fotografia? Como você entrou em contato com o trabalho de Hildegard Rosenthal?
Maria Luiza: Sou formada em História. Fiz o bacharelado na USP e a pós-graduação lá também. Fui orientanda da professora Maria Odila Leite da Silva Dias e fiz o doutorado sobre a história da cidade de São Paulo na segunda metade do século XIX. Na graduação, minha pesquisa de iniciação científica foi sobre o fotógrafo Militão, foi quando comecei a pesquisar fotografia e a cidade no século XIX. O Militão Augusto de Azevedo é um fotógrafo que trabalhou em São Paulo nessa metade do século e tem um trabalho muito importante que chama “Álbum Comparativo de Vistas da Cidade de São Paulo“. […] Meu trabalho de pesquisa foi sobre a inserção dele na cidade, a vida de fotógrafo, que não era uma vida fácil, e sobre duas imagens, uma da Rua Alegre e uma da Rua Brigadeiro Tobias, ali perto da estação ferroviária da Luz, [que mostravam a transformação de São Paulo entre 1862 e 1887].
Então, eu tive esse primeiro contato e gosto com as bibliografias, a história da fotografia. No doutorado, voltei para esse estudo sobre o Militão, então a conclusão do meu livro é em cima da trajetória do Militão. Durante a pesquisa do doutorado continuei estudando a cidade e tive o primeiro contato com as fotografia da Hildegard. Aí, terminei o doutorado e fui fazer pós-doc e dar aula. Prestei concurso na UNIFESP para o curso de História. Já na UNIFESP, comecei a dar um curso chamado “Laboratório de Uso de Imagens”, [que mostra] como o historiador pode trabalhar com imagens. Usar imagens como documentos [históricos] para pesquisa. Dando esse curso, eu voltei [a estudar] fotojornalismo em São Paulo. Eu dava para eles [os alunos] o Aurélio Becherini e também a Hildegard [Rosenthal]. Aí eu recebi um convite do Rodrigo do Instituto Moreira Salles, que me ligou e perguntou se eu queria fazer esse trabalho [de selecionar fotografias para editar um livro da Hildegard Rosenthal] e então eu fiquei encantada, porque já gostava muito do trabalho dela.
BJ: E como se fez a organização do livro?
ML: Eles [do Instituto Moreira Salles] têm uma coleção de fotografias. E tinha um padrão a ser seguido [para a elaboração do livro], havia um limite de imagens possíveis com as quais eu podia trabalhar. Esse foi o maior desafio. Porque quando eu cheguei eu conhecia uma parte pequena do trabalho dela. [Conhecia] uma publicação que existia, do próprio acervo Moreira Salles, de uma exposição que tinha tido. E eu via [a obra de Rosenthal] nas referências [bibliográficas], mas conhecia “um décimo” do acervo.
Quando eu cheguei lá e vi aquelas centenas e centenas de imagens, foi o maior desafio fazer a seleção. Mas eles me deram total liberdade. Eu fiquei vários dias indo lá, olhando, olhando, olhando e eles me deram a liberdade pra definir os temas, os olhares, enfim, a forma que eu queria organizar, num limite máximo de imagens, então eu fui fazendo várias seleções.
Eram 400 dessas imagens, […] [selecionei] as [fotografias] que estivessem melhores, porque eu olhava em pequenos negativos, naqueles contatos com várias imagens, algumas eles tinham ampliadas, outras não. Então, às vezes eles falavam: “olha, essa não dá, porque não tá tão boa”.
Algumas fotos eu acabei deixando de lado por já serem muito mais conhecidas, isso também foi um critério, que já que a gente tem um acervo tão rico, privilegiar outras [imagens]. Pensei em pegar um pouco de cada, ter um olhar um pouco geral da obra dela, que pegasse vários temas, vários problemas, que ela gostou de registrar na cidade. […] Enfim, eu fiquei bastante tempo tentando criar uma intimidade com o acervo dela, pra ter um pouco mais de segurança pra fazer a escolha.
E aí, depois de escolher, eu tinha que fazer um texto, que também foi bastante livre. A introdução. Pra fazer a introdução, eu fiz uma pesquisa nos outros trabalhos que publicaram sobre ela. Havia uma série de entrevistas muito interessantes feitas pelo Museu da Imagem e Som (MIS ), que fizeram com fotógrafos. […] E nessa entrevista que fizeram com ela, ela fala bastante e é muito interessante porque conta a história da vida dela.
BJ: E você poderia nos contar um pouco da história da vida dela? Por que ela veio para o Brasil? Como começou a carreira de fotógrafa?
ML: Então, isso é um pouco do que tá lá no texto, mas ela vem atrás do namorado. Ela começa a gostar de fotografia já moça, menina. Vai atrás de fazer cursos. Ela faz o curso que aquela fábrica, Leica, de câmeras, oferecia na Alemanha e fica muito encantada, tanto que – uma particularidade – ela nunca mais consegue usar outra câmera na vida dela. A descoberta da possibilidade da luz, da captação da luz que a Leica dava, a mobilidade, tudo.
E, nesse curso, ela fazia viagens para fotografar, [havia] temas pra fotografar, e a partir daí ela tem certeza que é isso a que ela quer se dedicar. [Até que] ela vem [para o Brasil] pra acompanhar [o namorado judeu perseguido pelos nazistas]. Ele vem primeiro, fugindo, e ela vem em seguida. Eles montam uma fábrica de produtos hospitalares e ela começa a trabalhar contratada pelo Estado de S. Paulo, […], era a primeira mulher contrada pelo Estado como fotojornalista. E, ao mesmo tempo, ela abre um agência [pra vender essas imagens diretamente pra fora], então é muito interessante essa visão, também política, de que ela precisava ter um controle sobre a produção que ela tinha.
Tudo começou da precaridade também, né? E muito esforço. […] Até uma hora que ela perde o marido, assume a fábrica e tem que largar a fotografia, por conta de necessidades da família. Ela passa anos sem fotografar, só fotografando coisas da família, e a filha diz que é bem pouco, que ela nunca gostou de fotografias coloridas. Era interessante, porque a fotografia era muito, muito presente na vida dela e chega uma hora em que ela se afasta, aí, no final, que ela retoma, mas não mais profissionalmente. Ela vai ter exposições sobre a obra dela, começa a ser reconhecida, ela pega isso ainda no final da vida.
BJ: Sobre essa questão de retratar mulheres, das fotografias de mulheres que ela fazia, você considera que tinha um viés feminista, que de alguma forma tentava minimizar a desigualdade entre gêneros, ou apenas mostrava a realidade feminina?
ML: Olha, eu não saberia dizer. Não dá pra falar com toda certeza: “ah, ela era feminista.” Mas, acho que ela tinha, pelo próprio fato de ela sofrer na pele, esse é um tema que ela comenta em entrevista, que ela trabalhava numa loja onde tinha só homens, ela era a única mulher e ela sofre preconceito por conta disso, fica muito brava, e ela era muito baixinha também. Então, ela pequenininha e mulher, naquele ambiente de homens, ela aguenta isso e responde brava às intimações. […] E aí, esse olhar pra mulher na cidade, e registrar isso, acho que revela uma preocupação dela em marcar o espaço da mulher. Mas acho que sim, que há uma preocupação de gênero, no fundo.
BJ: Os autorretratos dela também mostravam uma mulher que não seguia os estereótipos domésticos, né?
ML: Isso, ela com cigarro na boca e [cozinhando, mexendo] com a panela. Ela trabalhando, escrevendo. Sem dúvidas. O jeito que ela retrata a mulher, mesmo aquela com a rede no rosto, tá ressaltanto a individualidade e outros papéis da mulher. Seja a mulher na cidade, seja a mulher subjetiva, a mulher imaginando, não a mulher-objeto, né? Sem dúvida, acho que ela tinha essa questão, essa preocupação. Inclusive, essa militância, nessa coragem de ir fazer evento, também revela uma atitude nesse sentido. Acho que isso ela enfrentou [esses problemas] e não deixou de fazer as coisas por conta disso. Então, acho que é, sim, um ponto importante do olhar dela, essa questão da mulher.
BJ: Ao longo do trabalho da Hildegard Rosenthal, o que que mudou na representação da mulher na fotografia e na própria sociedade em geral?
ML: São muitos anos, a mulher vai mudando, é uma pergunta um pouco ampla. Mas acho que, sem dúvidas, ela está à frente do seu tempo, no sentido de ter que lidar com muitos obstáculos: o preconceito, a mulher fotógrafa. E ter necessidade de ressaltar a questão da mulher no espaço público, da mulher trabalhando, sem dúvidas mostra como ela está querendo dialogar com um paradigma hegemônico, querendo quebrar com isso.
E essa imagem da mulher, também não é só ela que está nessa militância, outras fotógrafas, mulheres, também sentem, mas aqui em São Paulo ela é a única durante um bom tempo. Mas se a gente pensar na Lee Miller, pensar em outras que também enfrentaram preconceitos semelhantes. Ela não foi para a guerra como a Lee Miller, mas é o mesmo tipo de luta, acho.
BJ: A Hildegard não fotografou só mulheres, mas também cenas urbanas, rurais, edifícios, trabalhadores, etc. Qual seria, na sua opinião, a principal marca do trabalho dela?
ML: [Assim] como a geração dela, [Hildegard] tem um olhar específico pra cidade, um olhar pro grafismo, pra luz. Eu acho que é procurar, na cidade, a vida da cidade, as pessoas na cidade. Ela fotografa muito, mas não aquilo que poderia ser cidade-propaganda, cidade-cartão-postal, a cidade sem vida, a cidade da modernidade, que era um outro lado tão forte, um discurso que você quer construir nessa época de maneira muito violenta, não só aqui. Ela vai contra. Ela olha, ela fotografa e tem uma série de fotografias das menininhas, crianças, tomando sorvete na Liberdade. Ou, então, daqueles vendedores que existem até hoje, de tabuleiro, […] enfim, a vida urbana. […] Eu acho que ela tem um olhar para a cidade que é muito original para a cidade de São Paulo naquele momento.
Eu acho difícil [delimitar um aspecto], porque a obra dela é muito vasta e tem muitos aspectos, mas acho que essa questão do trabalho na cidade, do cotidiano na cidade, é forte no trabalho dela. Quando ela viaja também, não é uma fotógrafa de paisagem. Ela pega o sujeito num carro de boi, a outra sentada na beira da estrada, sabe? É esse olhar também, para as pessoas, para a interação das pessoas com aquele ambiente, com o meio, seja na cidade, seja no campo. Então, o trabalhador, a marca no rosto do trabalhador, não é uma fotógrafa de grandes paisagens, monumentos. Ela é uma fotógrafa do indivíduo, da pessoa na cidade, do trabalho.
Conheça mais sobre o trabalho fotográfico de Hildegard Rosenthal do Instituto Moreira Salles.
Entrevista por Breno França e Juliana Costa
brenofranca11@gmail.com e juliana.meres@gmail.com