A pandemia do coronavírus está afetando mais do que a saúde mundial: o cinema e a produção cultural já estão entre os mais abalados pela crise. O Festival de Cannes, uma das principais mostras e premiações do cinema internacional, foi adiado indefinidamente no último dia 14.
Tanto filmagens quanto estreias de filmes foram adiadas pelo mundo afora, além de eventos importantes, como a Comic Con de Seattle, a WonderCon, na Califórnia, a PerifaCon e a Virada Cultural, ambas em São Paulo. Outros chegaram a ser cancelados, como a San Diego Comic Con, a CinemaCon, em Las Vegas, e o festival South By Southwest (SXSW), no Texas. A lista dos cancelamentos é grande e continua crescendo a cada dia. Nesse cenário fica uma pergunta — como vão ficar as coisas no universo cinematográfico em 2020 e que consequências isso trará para o cinema?
Por mais que a produção cultural esteja sendo muito consumida durante o isolamento social, vários trabalhos na área estão sendo suspensos, e, como consequência, todo o circuito em torno das obras é afetado. O Festival de Cannes é uma das mais importantes vitrines de produções audiovisuais no mundo, servindo tanto como porta de entrada para filmes que aparecem depois em outras premiações quanto como pontapé inicial da temporada anual de cinema. Tradicionalmente situado no primeiro semestre do ano, o festival francês já havia sido remarcado para o final de junho ou o começo de julho, até que os organizadores do evento se pronunciaram adiando novamente o evento, agora sem data prevista.
Com a extensão da quarentena pelo presidente da França Emmanuel Macron, a organização do evento entendeu que não seria possível cumprir com a data anteriormente estipulada. Em comunicado, ressaltou que o “Festival de Cannes, um pilar da indústria cinematográfica, precisa explorar todas as medidas que permitam o apoio ao ano do cinema, tornando Cannes 2020 uma realidade, de uma forma ou de outra”.
Aproximadamente 50 longas e 30 curta-metragens são exibidos no Festival de Cannes a cada edição, englobando produções de diversos tipos, origens e temáticas. Sua principal característica é servir como oportunidade para iniciantes e revelar as grandes apostas para o cinema. Filmes como Parasita (Parasite, 2019), vencedor de quatro Oscars, e o brasileiro Bacurau (2019), que ganhou destaque internacional em 2019, foram alguns dos premiados na edição passada, levando a Palma de Ouro, maior prêmio do festival, e o Prêmio do Júri, respectivamente.
Como citado anteriormente, o festival de cinema, música e tecnologia SXSW (South by Southwest), que ocorreria entre os dias 13 e 22 de março, também foi cancelado, prejudicando a economia local de Austin, Texas, cidade em que o evento ocorre normalmente. A Netflix, por exemplo, iria exibir cinco novos filmes no festival, isso sem contar as pessoas que exerceriam alguma função no evento, e perderam seus empregos. Para se ter uma ideia, o SXSW relatou a participação de mais de 400 mil participantes em 2019, e seu cancelamento causou um prejuízo financeiro imenso, além de prejudicar artistas que buscam uma chance de ascender através de um evento de grande proporção.
Os organizadores inclusive citam que não havia no seguro uma cláusula que cobrisse cancelamentos por infecções bacterianas, doenças contagiosas, vírus e pandemias. O poder do coronavírus será capaz de mudar até questões contratuais que não eram imaginadas anteriormente.
Infelizmente, o desemprego envolvendo funcionários de produção é outro fator preocupante diante do cenário atual do mundo cinematográfico, já que muitos desses trabalhadores ganham por hora, e devido à ausência de eventos e festivais, não estarão exercendo suas funções. Esses trabalhadores são considerados a base estrutural da indústria e medidas assistenciais devem ser analisadas e adotadas na tentativa de remediar essa situação mais precária.
O mundo do entretenimento terá que se adaptar a esses novos tempos, e uma das maneiras de se fazer isso é recorrer ao meio virtual. Profissionais da indústria internacional de Berlim, por exemplo, decidiram criar o Corona – 1.º Festival Internacional de Curtas-Metragens em Autoisolamento Pandêmico. Esse festival é uma competição online que busca superar a questão do isolamento e premiar os trabalhos realizados durante a pandemia. Os curtas-metragens podem abranger qualquer gênero cinematográfico e o vencedor pode levar um prêmio de 1.500 euros, além de ter seu curta apresentando no site oficial do festival.
Esse tipo de iniciativa pode se transformar em algo usual nesse momento, e a Alemanha foi um dos primeiros países a oferecer ajuda financeira para artistas prejudicados. Monika Grütters, ministra da Cultura, explicitou que “a cultura não é apenas um luxo que se entrega durante os bons tempos”, mostrando a preocupação do país em manter a indústria o mais estável possível diante do cenário atual.
Ao pensar no Brasil, o panorama se agrava mais, pois o setor audiovisual já estava passando por momentos de crise. Nesse contexto, ganham destaque os cortes propostos pelo governo Bolsonaro, algo como uma diminuição de aproximadamente 43% do Fundo Setorial do Audiovisual, isso sem contar situações de conflito entre o governo e a Agência Nacional do Cinema (Ancine).
De qualquer forma, um dos festivais mais famosos do Brasil, o de Gramado, ainda está confirmado para as datas anunciadas previamente, 14 a 22 de agosto. “Mesmo considerando a redução de orçamento, que certamente irá nos impactar, e de não termos ainda patrocinadores confirmados, Gramado entende o significado do Festival para a cultura audiovisual do país e que sua realização é importante quando começar a retomada plena das atividades”, comenta Edson Néspolo, presidente da autarquia responsável pelo evento, Gramadotur.
A função de festivais de cinema é movimentar a indústria, e o impacto da Covid-19 permanecerá vivo para além de 2020. Mesmo longe do início de apresentação dos filmes candidatos ao Oscar, os cancelamentos/adiamentos de festivais como o SXSW e Cannes prejudicam seu funcionamento, pois esses festivais servem como termômetro ao exibir os grandes filmes do ano — um destaque de Cannes aparece no Globo de Ouro, que vai para Toronto e é premiado no Oscar, por exemplo. Com os adiamentos e cancelamentos, é gerado um efeito dominó onde um evento impacta no outro. Além disso, sem as mostras e premiações, os filmes adiam suas estreias, e vice-versa.
O processo do Oscar, por exemplo, envolve algumas etapas. Primeiro, os produtores que almejam ter um filme indicado precisam preencher um documento, o Official Screen Credits. Nele são indicadas para quais categorias a produção deseja ser considerada. Além disso, precisa seguir alguns critérios, como duração mínima de 40 minutos (para longa-metragem), ter ficado em cartaz por pelo menos 7 dias e ter sido exibido, com cobrança de ingressos, no Condado de Los Angeles (EUA).
Então, começa o complexo processo de votação da Academia, grupo seleto de membros da indústria cinematográfica que faz as indicações e, posteriormente, escolhe os vencedores das muitas categorias da premiação, ainda reputada como a mais importante do circuito.
Para o Oscar 2021, estariam aptos a participar os filmes lançados entre 1 de janeiro e 31 de dezembro de 2020 que cumprissem as demais regras. No cenário atual, com adiamentos e cancelamentos, a premiação fica comprometida, tendo que vista que muitos filmes que poderiam competir podem nem ter sido lançados no prazo.
É complicado definir qual vai ser o impacto completo da pandemia no meio cinematográfico e nos festivais/premiações. Além da incerteza referente a quando o vírus vai ser contido, é impossível mensurar o impacto econômico que produtores e organizadores terão, implicando em futuros cancelamentos e adiamentos. O coronavírus marcará uma mudança no mundo, e consequentemente no cinema. A criatividade, tão necessária na hora de pensar em roteiros, atuações e ideias, será indispensável para superar esse momento, mantendo o mundo do cinema estável, e quem sabe, o fazendo evoluir.
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