Jornalismo Júnior

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Reflexões do fantasma

A morte chegou durante a noite e, junto a ela, as deteriorações do corpo em conflito com as reflexões da alma
Paisagem de um cemitério nebuloso
Por Lorenzo Souza (lorenzosouza@usp.br)

Um homem entrou durante a noite e me matou. Não vi rosto, mas vi as manchas vermelhas pelo edredom — uma faca perfurou meu abdômen. Busquei por ar, mas não tive forças para terminar a respiração. Ofegante, procurei pelo telefone, por alguma luz acesa, qualquer tipo de ajuda. Não vi nada. Só sobrou os sons dele vasculhando pela casa, os pratos quebrados e o medo que me tomou.

Levantei procurando pelo telefone. O quarto estava revirado, com roupas por todos os cantos e pequenas manchas de sangue começando a respingar na madeira do chão. As gotas caíam pelos entalhes. Mesclavam com o tempo de vida daquela tábua. O destino daquilo que fora uma árvore era o mesmo que o meu. Tanto vermelho nas roupas de cama… O chão já era uma poça infinita de cor carmim. A dor impedia que eu me movimentasse, a visão começava a turvar com a falta de sangue no corpo.

Me deitei por completo, não tinha mais força nas pernas. Pensava em ligar, ligar, ligar. Queria um contato, mandar uma única mensagem. Não conseguia gritar e muito menos alcançava a janela. Me arrastava somente com os braços, procurando uma saída desse labirinto. Mal consegui chegar até a porta do quarto.

Por fim, sobrou apenas meu coração e cérebro funcionando, tentando até o último fio de sangue me manter neste mundo. Logo, o coração também parou. Não havia mais batimentos. Tudo se esgotou. Sem oxigênio sendo levado para o cérebro, logo ele também deu seu ultimato. Passaram pelos meus olhos, esses já sem cor, cenas do meu passado. Antigas memórias de infância, brincadeiras na rua, amigos há anos não vistos, minhas primeiras festas de aniversário, o primeiro amor, dias de chuva e tristeza. Sobraram só emoções, uma atrás da outra como raios iluminando os últimos espaços da cabeça. Logo tudo também parou. Era a última cena da ópera. Eu estava morto.

Contrário ao meu temor humano, não passei por um julgamento imediato. Senti de início uma paz sem sentido e abrangente. Era algo muito abstrato. Não vale a pena tentar dar palavras àquilo que não existe definição na linguagem dos homens. Só sei que, por um curto período de tempo, me sentei na cabeceira da cama e observei com atenção o processo de decomposição de meu corpo abandonado no chão do quarto.

Senti primeiro um gosto estranhíssimo na boca e entendi o que estava acontecendo. Sem o sangue levando oxigênio para os tecidos, os subprodutos das reações químicas restantes vão se tornando ácidos, fazendo com que todas as pequenas células do meu corpo morressem com o tempo. Elas, numa tentativa desesperada de sobreviver com orgulho, acabam devorando a si mesmas. É aí que ocorpo fica pálido, os olhos se tornam brancos e o sangue que não vazou se instala nos cantos mais baixos da pele por conta da gravidade. Aos pouquinhos, as partes vivas se decompõem, como linhas de um tecido velho que, com o tempo, rasgam por completo. Por dentro, os órgãos  se desmancham em pedaços.

Meu corpo foi se tornando cada vez mais frio e parei por um momento para refletir. Por que ainda estou escorado no chão, de ferida aberta? Não há ninguém no apartamento? Não causei receio para ninguém, já que não apareci no trabalho hoje? Olhei de relance o telefone. Apenas uma ligação do meu superior. Uma notificação de mensagem: “por favor, avise quando for faltar.” Faz poucas horas que fui morto. Ainda há tempo para me procurarem.

A temperatura cai a um nível extremo para alguém antes vivo. Um corpo que antes chegara a 36ºC, agora mal passa da temperatura ambiente. Sem a energia do corpo, as proteínas que moviam meus músculos param de trabalhar. Começa pelas pálpebras, que endurecem e não permitem mais que as moscas pousem sobre a superfície dos olhos. Desce para o queixo e pescoço, seguindo logo para todos os outros músculos do corpo. Rigor mortis. É esse o nome que os legistas dão a esse processo. Como se realmente parassemos no tempo, nos tornamos tão irredutíveis quanto uma estátua. Ainda não há chamada perdida no celular. Será que minha mãe já pensou em mim hoje? Gostaria que ela ligasse, gostaria de poder falar uma última vez com ela.

As bactérias dentro do intestino, agora que morri, começam a se multiplicar mais e mais. Moscas botaram ovos pelo meu corpo, formigas estão andando e procurando espaços para se esconder. A maior parte dos micróbios e insetos já deixou uma mordida em minha carne. Meu estômago começa a estufar com os gases que esses seres minúsculos liberam, que não conseguem sair facilmente. Em todo o corpo, os tecidos estão cheios como um balão. Por causa do mau cheiro, outros pequenos animais vão entrando de maneira mágica e fazendo dos meus restos seu jantar. A primeira larva sai por uma de minhas narinas. Nas próximas horas, milhares delas vão se degladiando por espaço nas aberturas e tecidos do corpo em decomposição.

Elas comem, comem e comem. Minhas peles e músculos viraram um banquete: está pronta a maior refeição de suas vidas. Passam dias lutando por um pedaço da orelha. Duas larvas brigam com um mosquito pelo direito de procriar entre os dentes já podres da minha boca.  Gerações inteiras de insetos rastejam pelas veias do meu corpo como rotas de trânsito. Permanecem no cérebro entre os córtices, procuram restos de proteínas, tentam achar energia em qualquer lugar.  Do interior dos pés, passando pela ferida de faca aberta até os olhos carcomidos: devoram sem parar o que estiver pela frente.

Uma das larvas sai aos poucos, está satisfeita. Nas próximas horas, todas as outras morrem ou se deslocam para outros corpos mortos pela cidade. Já não tenho mais valor, não há mais alimento. Sobraram apenas os ossos, demonstrando que ali, muitas semanas atrás, existia um homem.

O tempo continuou passando e, com sinceridade, não há mais motivo para narrar o que acontece biologicamente com os restos do meu corpo. O processo é simples: se ficarem assim, à mostra, meus ossos irão se decompor em cerca de dois anos. Os restos da decomposição estarão enraizados nas vincas da madeira do chão. Quimicamente, as mais simples composições do que antes formara meu corpo ficarão espalhadas por todas as ruas, quadras, bairros… Toda a energia que formou por 24 anos meu corpo se transformará eternamente em outra. Nenhuma energia pode ser perdida, somente modificada. Em muito, muito tempo o que poderia ser chamado de “eu” estará até na água que corre nos canos. Irá se espalhar e cair em todos os cantos. Se houver gente até lá, todas as pessoas do mundo terão um pedaço de mim passando pelos seus corpos e elas nem vão saber. Estarei eternamente vivo nas plantas que nascerão advindas dos meus restos e elas também não estarão cientes de que, um dia, eu estive ali.

A essa altura, o corpo já sumiu. A sociedade evoluiu, o prédio nem existe mais. A humanidade acabou e só restou a natureza, que tomou conta de todo e pequeno canto que sobrou pelas estradas. Enfim, depois de uma quantidade imensurável de tempo, nem mais a própria natureza existe. Todas as plantas já morreram e a última flor que nasceu já perdeu seu néctar. Sobrou um chão craquelado e sem vida, no qual rochas empilhadas umas sobre as outras mal sobrevivem. Não há mais homem, não há mais nada. Não existe mais emoção ou amor.

Volto ao momento do meu corpo estirado pelo chão. Vi tudo que era necessário, não preciso mais observar. O sangue continua escorrendo e meus olhos continuam entreabertos. O telefone permanece silencioso. Me levanto da cabeceira e passo pela porta do quarto. Sinto, por fim, todas as pequenas raízes fincadas em cada grão de terra do planeta. Tudo se apaga e a roda eterna continua girando. Agora, faço parte de absolutamente tudo que existe, neste exato momento, neste exato local. Estou aqui, e estou existindo.

Imagem de capa: Scott Rodgerson/ Unsplash

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