Em 1 de junho de 2023, a sequência de Homem-Aranha no Aranhaverso (Spider-Man: Into the Spider-Verse, 2019) chegou aos cinemas. Além de trazer uma narrativa que agradou os fãs e os críticos, o primeiro filme animado do herói, dirigido por Bob Persichetti, Peter Ramsey e Rodney Rothman, conta com um visual revolucionário que não apenas rendeu um Oscar, mas também um marco na história da animação.
Uma breve contextualização
Antes de aterrissar no multiverso de Homens-Aranhas, a animação passou por vários formatos e evoluções ao longo da trajetória da humanidade, com a pré-história como palco de seus primeiros indícios. Apesar de desconhecerem as técnicas de hoje, os neandertais já desenhavam sequências de imagens que simulavam o movimento nas paredes de cavernas.
Milhares de anos depois, inventores do século XIX se basearam no princípio sequencial para criar dispositivos capazes de movimentar desenhos. Criações como o fenacistoscópio de Joseph Plateau e o zootrópio de William George Horner simulavam o movimento com a rápida sucessão de desenhos. Outro fator importante para o funcionamento dessas tecnologias é a persistência da visão humana, que garante que o olho humano retenha a imagem vista por aproximadamente 1/24 segundos, mesmo depois dela ter desaparecido. Esse momento de memória visual permitiu que não apenas Plateau e Horner animassem suas figuras, mas todos os outros entusiastas da animação.
No século XX, O Desenho Encantado (The Enchanted Drawing, 1900) de J. Stuart Blackton, Frases Cômicas de Caras Engraçadas (Humorous Phases of Funny Faces, 1906) e Fantasmagorie (1908), de Émile Cohl, pioneiros da animação, já revelavam uma evolução do desenho animado. A arte ganhou força e grandes nomes se consolidaram no ramo, como o estúdio Sullivan e o gato Félix, mas foi Walt Disney que elevou as ilustrações em movimento ao patamar cinematográfico. Com Branca de Neve e os Sete Anões (Snow White and the Seven Dwarfs, 1937), Walt Disney produziu seu primeiro longa-metragem animado e estreou a animação em cores na história do cinema. O filme não apenas foi um sucesso de bilheteria, como também ganhou um Oscar honorário e serviu de inspiração para a indústria da animação, que ainda estava em desenvolvimento.
Outro filme que revolucionou a técnica da animação foi Akira (1988). Dirigido por Katsuhiro Otomo, o longa prezou pelos detalhes artísticos feitos à mão, mas esse não foi seu único diferencial. Os 24 frames por segundo (FPS) garantiram um aspecto nunca antes visto nas produções. Antes da trama, as animações também eram feitas em 24 FPS, ou seja, a cada segundo, 24 imagens eram utilizadas. No entanto, elas eram repetidas em dois frames e, no resultado final, apenas 12 imagens diferentes apareciam por segundo. Em Akira, por outro lado, os 24 frames são utilizados por completo, o que resultou em uma fluidez nunca antes reproduzida nas telas.
Ainda no século XX, o uso do computador entrou em cena na produção das animações. Em 1958, John Whitney Sr. e Saul Bass animaram os créditos de abertura de Um Corpo que Cai (Vertigo, 1958), de Alfred Hitchcock. Apesar de parecer simples no início, a animação em computadores, chamada de Computer Graphics (CG), evoluiu e ainda é utilizada para a produção de filmes atualmente.
A década de 1990 proporcionou ao público do cinema uma inovação: a animação 3D. Toy Story (1995) é considerado o primeiro filme inteiramente produzido em um computador, seguido por inúmeras produções que utilizaram a técnica, como Vida de Inseto (Bug ‘s Life, 1998), Shrek (2001) e A Era do Gelo (Ice Age, 2002). Apesar do sucesso de muitos desses filmes e da consolidação de estúdios como Pixar, Disney Animation, Dreamworks e Illumination com as animações tridimensionais, uma padronização das produções também pode ser observada ao longo dos anos.
O herói da vizinhança
Com um aspecto estagnado da animação 3D de ampla divulgação, em 2018, Homem-Aranha no Aranhaverso, da Sony Pictures Animation, mudou o rumo das produções. Enquanto Miles Morales, o protagonista do filme, salvava o multiverso dentro das telas, fora delas, os animadores e desenvolvedores do longa foram os verdadeiros heróis ao trazerem inovações para o universo das animações na indústria cinematográfica.
Com um visual original, as referências do longa-metragem misturaram a tridimensionalidade com as histórias em quadrinhos. Em entrevista à Wired, o supervisor de efeitos visuais do longa, Danny Dimian, compartilhou: “Quando começamos o longa, não sabíamos exatamente como queríamos que o filme parecesse. Mas nós sabíamos qual era nossa inspiração: os quadrinhos”.
Com essa direção, o filme ganhou um aspecto singular. Ao invés de uma iluminação enfraquecendo enquanto se distancia da câmera, a luz é apresentadas com bolinhas de diferentes tamanhos. O movimento não utiliza o motion blur, ou seja, ao invés de um borrão quando algo se movimenta, os cineastas optaram por mostrar a sequência de imagens que geram a sensação de movimentação, assim como as antigas invenções de Plateau e Horner. Os erros de impressão das HQs, que deslocavam as cores para fora dos contornos, também são utilizados como parte do cenário.
Renato Sena, animador de Homem-Aranha no Aranhaverso, comentou a direção do filme em entrevista ao Cinéfilos: “A gente era bem direcionado para ter essa visão de quadrinhos. O diretor estava sempre olhando o filme como um todo e falava: ‘Aqui nessa cena, em específico, dá para a gente deixar com cara de quadrinho’”. Essa orientação se torna nítida na animação, que conta com estilizações de quadrinhos em fragmentos de cena, o que torna a dinâmica do filme visualmente chamativa.
Outro aspecto de Homem-Aranha no Aranhaverso é a animação em twos, isto é, diferente do estilo criado em Akira, o filme repete os frames, o que gera um aspecto mais travado nos personagens. A questão não foi um problema para os animadores, e sim uma escolha criativa, como explicou Sena: “Geralmente um filme é animado a 24 quadros por segundo, você faz 24 poses para dar um segundo; no Aranhaverso, a gente pulava um frame e fazia outro, ou seja, eram 12 quadros por segundo. Isso deixava a animação com mais cara de gibi, que era a proposta que eles tinham”.
No longa, quando o novato Homem-Aranha, Miles Morales, está aprendendo a usar as teias de aranha com Peter Parker, cada um está em um frame rate (quantidade de frames por segundo). Miles, que está aprendendo, está em twos, portanto, mais lento, a 12 FPS. Já o herói mais experiente está em ones, logo, mais veloz, a 24 FPS. Gradualmente, os dois entram em sincronia e o efeito técnico também se equivale, o que leva os dois a mesma velocidade em cena e em FPS.
Mais um detalhe que remonta ao aspecto dos quadrinhos é o uso das onomatopeias e linhas de expressão 2D na animação. Assim como nos gibis, efeitos sonoros são representados por palavras estilizadas, como o freio de um carro ou o lançamento de teias. Também são incluídos desenhos bidimensionais que enriquecem a linguagem cartunizada do filme como, por exemplo, nas linhas de expressões nos rostos dos personagens quando os diferentes heróis se encontram.
Com tantas inovações, que também se inspiram na tradicionalidade das técnicas, Homem-Aranha no Aranhaverso pode ser considerado um marco na história da animação. “A gente veio de muitos anos com essa animação padronizada, não se trata de história ou de animação. Os filmes da Disney e da Pixar sempre tiveram uma qualidade absurda, mas visualmente eles eram uma coisa meio parecida. O Aranhaverso veio para dar uma balançada”, concluiu Sena.
Impactos na indústria
Apesar do pouco tempo desde o seu lançamento, a visão do filme vencedor do Oscar de Melhor Animação em 2019 já impactou a indústria das animações. A técnica que mistura 3D e 2D pode ser vista em filmes como A Família Mitchell e a Revolução das Máquinas (The Mitchells vs. the Machines, 2021) e Gato de Botas 2: O Último Pedido (Puss in the Boots: The Last Wish, 2022). Os traços rústicos não representam a realidade perfeitamente, mas criam uma identidade visual original para cada produção.
Outros futuros lançamentos, como As Tartarugas Ninja: Caos Mutante (Teenage Mutant Ninja Turtles: Mutant Mayhem, 2023) e Elementos (Elemental, 2023), também apresentam texturas influenciadas por Homem-Aranha no Aranhaverso, como explicou Sena: “Vai sair o filme das Tartarugas Ninjas jovens que também tem a mesma pegada de linha 2D. Até o próprio filme da Pixar, Elementos, já vem com uma cara diferente. Acho que tudo isso é influência do Aranhaverso e do sucesso que foi.”
Com tantas inovações, visuais chamativos e uma narrativa bem construída, mesmo com influências e universos diferentes, Homem-Aranha no Aranhaverso conquistou o público e a crítica, o que garantiu um Oscar, um BAFTA, um Annie Awards e uma sequência para a história. Em cartaz nos cinemas, a continuação das aventuras de Miles Morales e seus amigos da vizinhança de outros multiversos chega com grandes expectativas para sua história, como também sua animação.