Por Fernanda Zibordi (fernanda.zpaulo@usp.br)
O romance A Cidade e as Estrelas (Editora Aleph, 2021) é um dos tesouros escondidos do renomado autor de ficção científica Arthur C. Clarke. O livro, publicado pela primeira vez em 1956, não possui tanto destaque quanto outras obras do escritor, como 2001: Uma odisseia no espaço e O Fim da Infância, considerados eternos clássicos do gênero. Mesmo assim, A Cidade e as Estrelas não fica nem um pouco atrás dessas outras histórias em questão de qualidade, sendo, inclusive, um expoente na abordagem dos seres humanos como criaturas definidas pelo pensamento e pelo sentimento.
A narrativa, situada um bilhão de anos no futuro, já se inicia apresentando a localidade, que é uma personagem por si só: Diaspar. Sendo a última civilização humana de uma Terra sem oceanos e completamente dominada por desertos, a cidade é autossustentável e projetada tanto para satisfazer qualquer desejo de seus habitantes quanto evitar possíveis variáveis que levem esse mundo à decadência.
Isso é possível porque cada átomo presente em Diaspar já está programado no Banco de Memórias da cidade há milhões de anos, ou seja, todas as coisas e pessoas que existem lá, na verdade, estão neste banco de dados controlado pelo chamado Computador Central. Clarke se utiliza dessa ideia para criar uma ambientação criativa e detalhada, de forma que tecnologias hoje inconcebíveis, como materialização de sonhos e renascimento de consciências em novos corpos, sejam críveis em um futuro longínquo.
Porém, o principal uso desses “uploads de mentes”, chamados de Circuitos de Eternidade, na obra é para que os moradores de Diaspar – os mesmos desde a sua fundação – tenham em seus “códigos de criação” um pavor patológico de sair da cidade. A justificativa seria evitar que a humanidade retornasse ao seu imperialismo interestelar, já que ele teria sido responsável pela chegada dos Invasores, seres alienígenas que condenaram a raça humana a ter a Terra como último refúgio. É um tabu quase instintivo falar sobre o que existe além dos muros de Diaspar, e toda a sociedade se contenta em viver a eternidade dentro deles. Com exceção de Alvin, o protagonista do livro.
“Nenhuma nave entrara no Sistema Solar por incontáveis eras; lá fora, entre as estrelas, os descendentes do Homem talvez ainda estivessem construindo impérios e destruindo sóis… a Terra não sabia nem se importava. A Terra não se importava. Mas Alvin, sim.”
Alvin é o único que tem o desejo de ir para o lado de fora da cidade e, para isso, Clarke oferece uma explicação. No começo da história, é revelado que o jovem é um Singular, designação atribuída às pessoas que nunca tiveram seus dados do Banco de Memórias utilizados, ou seja, nunca viveram nem possuem memórias de vidas passadas em Diaspar.
Por ser a primeira pessoa a realmente nascer na Terra em dez milhões de anos, Alvin pensa diferente dos demais e se sente sufocado pela inércia de uma cidade fechada ao resto do Universo. É a partir de sua ambição de encontrar respostas e motivações para viver que a narrativa se desenvolve.
Como em muitas outras histórias, a jornada em A Cidade e as Estrelas se mostra bem mais importante que o destino final. O personagem principal entra em contato com realidades tão extraordinárias que são, inicialmente, difíceis de conceber pelo leitor. Mas isso não é um ponto para se preocupar: a ambientação de Clarke é impecável, pensada em todos os detalhes para retratar o bizarro desenvolvimento da raça humana a um futuro em que ela desconhece sua própria humanidade.
Diaspar foi construída para ser o mais perfeito exemplo de eficiência. Curiosidade, cansaço e até o amor foram extintos há milênios, pois seriam ameaças à sobrevivência da cidade. Acontece que, sem isso, por qual razão valeria a pena viver eternamente? A descoberta do que é ser e se sentir humano é o ponto de virada na jornada de Alvin e o principal questionamento abordado no livro.
“Na cidade imortal, haviam morrido as emoções verdadeiras e as paixões profundas. Talvez essas coisas só prosperassem por serem efêmeras, porque não podiam durar para sempre e jaziam sempre sob a sombra que Diaspar banira.”
Além disso, uma característica consagrada do estilo de escrita de Clarke se encontra presente na obra: a ideia de que a humanidade é insignificante e apenas espectadora de coisas muito maiores. É uma abordagem, ao mesmo tempo, intrigante e assustadora. Porém, há falhas: certas conveniências não combinam com a aura de solidão do ser humano no Universo que é construída na narrativa. O enredo, que em certos momentos se torna devagar, utiliza-se de coincidências e encontros repentinos de personagens – não tão explicados quanto outros elementos do livro – para avançar na história.
Existem, também, passagens em que a representação feminina, já escassa no livro, fica tão presa aos valores da época em que foi escrita que não segue a lógica do próprio mundo criado por Clarke. É mencionado, mais de uma vez e sem explicações, que nem um bilhão de anos foram capazes de apagar o caráter emotivo do gênero feminino. Trechos como esses podem gerar certo incômodo e quebrar a imersão durante a leitura.
Apesar de seus defeitos, é claro o porquê de A Cidade e as Estrelas ser uma jóia da era de ouro da ficção científica. Passear pelas ruas do que seria a última cidade da Terra e desvendar segredos de ruínas futurísticas da raça humana se tornam tarefas prazerosas na leitura de fácil entendimento – e de forte reflexão – que Arthur C. Clarke sempre consegue proporcionar. O livro é uma boa pedida para os interessados em viajar tanto para fora do Sistema Solar quanto para dentro da mente do ser humano.
*Imagem de capa: Reprodução/Editora Aleph.