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A literatura negra como ato de resistência

Condicionados a uma posição inferior, os negros tiveram sua história e cultura negadas e silenciadas por muito tempo. No campo da literatura não foi diferente. A escassa representação na escrita e nos livros, que quando ocorre é marcada por estereótipos, é fruto dessa invisibilização da literatura de autoria negra. A literatura brasileira sempre foi um …

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Condicionados a uma posição inferior, os negros tiveram sua história e cultura negadas e silenciadas por muito tempo. No campo da literatura não foi diferente. A escassa representação na escrita e nos livros, que quando ocorre é marcada por estereótipos, é fruto dessa invisibilização da literatura de autoria negra.

A literatura brasileira sempre foi um espaço restrito ao pequeno grupo daqueles que se encontravam no poder: os brancos da elite. Dessa forma, a literatura feita por negros foi colocada à margem desse universo, evidenciando as linhas que dividiram o lugar do negro e do branco, impostas no regime escravocrata. Tal divisão continua, mas os negros conseguiram, ao longo do tempo, se apropriar da escrita e utilizá-la como instrumento de resistência. Atualmente, com a entrada cada vez maior de negros nas universidades, observa-se um movimento de valorização desta literatura e combate ao silenciamento imposto.

Esquecimento e persistência

Apesar de todo um esforço para impedir a entrada de negros na literatura, diversos escritores publicaram seus livros e textos. Observa-se, inclusive, que o negro adentrou no campo das letras no século XVIII. Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz foi uma mulher negra que deixou, senão o mais, um dos mais antigos textos escritos por um ex-escravizado, ocupando um lugar que era privilégio dos senhores. Mas Fernanda Rodrigues de Miranda, mestra e doutoranda em Letras pela USP, destaca Luis Gama, autor do poema “Bodarrada”, marco da escrita negra do Brasil, como o precursor do texto literário que auto-enuncia o sujeito negro. “Desde Luis Gama até os dias atuais muitos textos e texturas foram compondo essa literatura, em que o negro é sujeito de seus discursos, de sua imaginação e de seu posicionamento no mundo”, acrescenta.

A produção desse esquecimento está na tentativa de manter inalterada as relações de poder entre brancos e negros, presente na sociedade brasileira desde a época da escravidão. É um silenciamento que, de tão enraizado, persiste até os dias de hoje. “Trata-se do epistemicídio como norma, da manutenção perigosa de uma “história única”, para citar as palavras de Chimamanda Adichie. Esse silenciamento ainda existe e é forte. Basta investigar os currículos dos cursos de letras das principais universidades brasileiras para observar sua brancura”, afirma Fernanda.

Segundo a doutoranda, a invisibilização é sustentada pelos mecanismos de validação de conhecimento, como o currículo das escolas e universidades, que ainda deixam de lado a história e os heróis negros; as editoras e livrarias, que ao não publicar ou vender obras escritas por autores negros contribuem para a perpetuação desse esquecimento; e a crítica literária e acadêmica, que possuium papel importante na legitimação dos autores e das obras, influenciando o público ao dizer o que é bom e o que não é.

Lugar de fala

Conceição Evaristo, grande nome da literatura de autoria negra contemporânea

A exclusão do negro da literatura impediu que ele fosse o sujeito da própria história. Ao analisar os personagens negros nas obras clássicas, e escritas por brancos, da literatura brasileira percebe-se a reprodução de imagens depreciativas. A mulher negra ou mulata, por exemplo, é representada carregada de sensualidade e erotismo, onde apenas o corpo importa. Além de serem constantemente retratados como pessoas violentas, também não são raras as obras em que os negros não possuem o dom da linguagem, como se não fossem capazes de aprender a língua dos brancos.

Assim, as produções escritas por negros promovem um resgate de sua história e cultura e rompem com estas representações estereotipadas que reiteram o racismo, presente na obra de autores canônicos como José de Alencar, Gregório de Matos, Monteiro Lobato e Jorge Amado. “Quando os autores negros e as autoras negras se inserem na arquitetura literária, novas paisagens surgem, rasurando a homogeneidade do campo, disputando significações do passado e do presente, pois além de movimentar essa tradição, apontam um devir”, destaca Miranda.

Narrando as próprias experiências, os escritores negros criam uma nova representação para si mesmos e promovem um resgate das memórias que foram silenciadas por séculos. Além disso, contestam o discurso eurocêntrico, apresentando uma visão bem diferente do que usualmente é retratado com relação à caracterização das personagens, observado na valorização da cor da pele e dos traços físicos, e no enredo, que busca contar a real trajetória dos negros no Brasil. De acordo com Fernanda Miranda, apenas quando o negro escreve a partir de seu próprio ponto de vista é que se rompe com a hegemonia da representação tão presente em nossa sociedade. “Quando o negro escreve, ele não informa apenas o leitor negro, ele também forma o branco, esse é um ponto que precisa ser colocado”, acrescenta.

Um maior lugar de destaque na literatura brasileira promove um empoderamento da população negra, que se vê representada, de fato, nos livros. Identificar-se como protagonista, como dono de sua própria história, resulta em uma crescente valorização da cultura afro-brasileira e uma inserção no meio literário, sempre muito branco e elitista.

Resistência e Valorização

Ao longo de toda a história da literatura brasileira observa-se a presença de negros utilizando a escrita como ferramenta de resistência e expressão. Destacam-se Luis Gama; Maria Firmina dos Reis, primeira mulher a publicar um romance abolicionista; Lima Barreto e Carolina Maria de Jesus. De alguma forma, mesmo que não tão explícitos, seus discursos se orientam por uma postura ideológica, algo que é constante nos textos de autoria negra contemporâneos: denunciam a condição do negro, afirmam a cultura africana e afro-brasileira e mostram que as vozes negras, que sempre desejaram falar, estão se manifestando. “Resistir, em um país de estruturas racistas, vai desde a afirmação de si enquanto sujeito, enquanto ser de afeto, até a crítica profunda aos mecanismos eurocêntricos de construção e interpretação da realidade, base do epistemicídio histórico que ainda incide no Brasil”, salienta Fernanda.

Carolina Maria de Jesus, autora negra que teve seu livro traduzido para 14 línguas.

Carolina Maria de Jesus é uma escritora que merece destaque. Mulher negra e de pouca instrução escolar, rompeu com a subordinação e tomou para si o espaço da escrita, indo contra as instituições literárias. Seu livro, “Quarto de Despejo: diário de uma favelada”, publicado na década de 60, ficou conhecido e foi traduzido para mais de 50 países. A doutoranda Fernanda Miranda também destaca o papel das mulheres negras na produção contemporânea da literatura. Citando nomes como Conceição Evaristo, Jenyffer Nascimento, Cristiane Sobral e Ana Maria Gonçalves, ela afirma que estas autoras potencializam a inserção das mulheres negras nesse meio: “São autoras que escrevem de lugares diferentes, constituindo no texto universos epistemológicos diversos, dando corpo às suas experiências sociais e afetivas, contando suas histórias nunca antes narradas, potencializando em cada caractere a força do feminismo negro”.

Atualmente, observa-se um movimento de resgate e valorização da literatura feita por negros. Isto está relacionado à maior entrada de negros nas universidades, ocupando o espaço acadêmico e fomentando pesquisas voltadas para essa literatura. Projetos como o Leia Mulheres Negras também estimulam o reconhecimento destes textos. Fernanda Miranda destaca, ainda, os movimentos nas periferias e o aparecimento de novos selos literários, estimulando um mercado que vai na contramão do mercado editorial tradicional. “Os saraus, nas periferias, são uma fonte importante de formação de público leitor para essa literatura, além de fomentar novos autores. Novos selos literários têm surgido, possibilitando a publicação de autores sem precisar se submeter aos filtros das grandes editoras”, conclui.

A atual valorização da literatura de autoria negra pode ser observada nas mudanças em relação à Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). A edição deste ano não possuía nenhum autor negro em sua programação principal. Na edição de 2017, pelo contrário, um escritor negro será o homenageado da vez: Lima Barreto. Resta saber se os convidados também refletirão uma mudança de atitude.

Por Beatriz Arruda
beatriz.arruda12@gmail.com

1 comentário em “A literatura negra como ato de resistência”

  1. Andrea Sousa Silva

    Excelente análise. Estava procurando um texto base para enriquecer meu projeto de mestrado e esse é de uma visão crítica da realidade da literatura negra como resistência.

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