Durante diversas eras históricas, um padrão de beleza foi responsável por definir o que seria considerado bonito e atraente em cada época. No século 19, num contexto de neocolonialismo de grandes potências em relação a países africanos, surge a ideia de raça. Na visão de Lia Vainer Schucman, doutora em psicologia social pela Universidade de São Paulo (USP) e professora na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), uma pseudociência imperialista inventou a ideia de raça, que carregava consigo ideais de características físicas e civilização mais evoluídas. Estudiosos europeus e brancos formularam teorias raciais que, além de servirem como justificativa para a exploração de países colonizados, reproduziam um pensamento de que a civilização e a cor da pele europeias eram mais evoluídas. Isso se estendia para além do campo social. No campo estético, o padrão de beleza já consolidado no mundo Ocidental passou a se embasar em teorias (pseudo)científicas e se estendeu para o Oriente.
Lia destaca que, apesar dessa criação do conceito racial no século 19, a sexualização dos corpos negros iniciou-se antes, ainda na época do início da escravidão africana. No Brasil colonizado e em outras sociedades escravistas, o controle do útero da mulher negra pelos senhores de fazenda era uma demonstração de poder. Enquanto a esposa branca do senhor era casta e submissa à família, a negra da senzala era hiperssexualizada. O senhor mantinha relações sexuais com as duas figuras, mas apenas uma era assumida para a sociedade. Assim desenvolveu-se a construção do imaginário social brasileiro, alicerçado no racismo e no patriarcalismo.
Lia comenta que o racismo no Brasil é estrutural e influencia relacionamentos sociais das mais variadas formas. O gosto, aparentemente pessoal e individual, é construído nesse contexto. Geralmente, a sociedade cria um ideal de que a beleza é desenvolvida como opinião pessoal de cada um. Mas essa ideia é construída numa sociedade racializada, que acaba por refletir essas facetas no imaginário da população. Diversas vivências negras são os principais alvos desse processo histórico.
Solidão versus preterimento
Antes de tratar das experiências vividas pelos negros entrevistados por essa matéria, é preciso ressaltar um ponto destacado por Lia: a diferença entre solidão e preterimento. O termo ‘solidão afetiva’ é comumente utilizado para tratar de grupos que são excluídos do padrão de beleza imposto e, consequentemente, acabam sendo mais rejeitados afetivamente. Oposta ao uso do termo, a especialista aponta que preterimento não necessariamente resulta na solidão.
Preterimento é oposto de preferência, ou seja, grupos preteridos são aqueles menos aceitos e desejados, afetivamente e sexualmente, dentro de determinada sociedade. Solidão, de acordo com o dicionário Michaelis, é “estado ou condição de pessoa que se sente ou está só; isolamento. Sensação ou condição de pessoa que vive isolada do seu grupo.” A psicóloga aponta que pessoas negras são preteridas numa sociedade racializada como a brasileira, mas isso difere de solidão psíquica. Diferentes formas de resistência podem ser desenvolvidas em prol de ir contra esse preterimento. Ela cita o envolvimento em coletivos negros como uma dessas opções, por se tratarem – majoritariamente – de meios em que não há a padronização de beleza e o racismo escancarados.
O preterimento afetivo que afeta indivíduos negros no Brasil se apresenta de diversos modos, a depender do contexto vivido por cada um. Nas entrevistas aqui presentes, foram feitos recortes de gênero e sexualidade, para mostrar experiências derivadas de um mesmo ponto, mas ramificadas para diferentes caminhos e debates.
“Essa padronização é crucial para LGBTs que não seguem o padrão”
Juliana*, de 26 anos, se identifica como uma mulher cis bissexual. Ela afirma que foi alvo de racismo desde seus oito anos, quando desenvolveu síndrome do pânico em razão disso. Dentro do próprio meio LGBTQI+, sofreu discriminação por parte de homens gays de maior poder aquisitivo e comenta que há machismo e racismo dentro do meio. Segundo ela, a padronização estética afeta diversas pessoas dentro e fora do grupo, que, além de serem excluídas do meio social – historicamente opressor – também passam a ser rejeitadas dentro de outras comunidades. “Eu vejo que essa padronização é crucial para LGBTs que não seguem o padrão: gays gordos, afeminados, negros, indígenas, lésbicas e bis negras, gordas, ‘bofinhos’. Eles são colocados em escanteio nos mais variados espaços, sejam eles com muitos lgbts ou héteros”. Ao ser perguntada sobre o significado termo, explica que ‘bofinho’ se refere a uma denominação usada para mulheres de aparência mais ‘masculinizada’.
Sobre a sexualização de corpos negros, acredita que ainda existe, no Brasil, uma hiperssexualização, a qual os trata “como se fossem apenas objetos de prazer”. Ela destaca que homens negros são vistos como viris e dotados de órgãos sexuais avantajados, e mulheres negras como “fogosas, que topam tudo na cama”. Quando perguntada se já sentiu alguma experiência de sexualização para com seu próprio corpo dentro ou fora do meio LGBTQI+, aponta: “eu vejo mais [sexualização] quando me envolvo com homens héteros que sabem que sou bi. Já perdi as contas das vezes que fui convidada para ménage ou quando só queriam ficar comigo no sigilo”. Dentro do meio, afirma sentir esse processo de forma mais elevada quando se envolve afetivamente com outras meninas – geralmente brancas ou negras de pele mais clara que a dela – e essas passam a se relacionar com outras, mesmo após demonstrarem que queriam algo mais estável com Juliana. “É ruim ver a pessoa passando na sua frente fazendo pouco caso, como se seu sentimento não fosse relevante.”
Racismo versus preterimento
Até o racismo em si pode se desenvolver e afetar negros de diferentes formas. Lia Schucman também destaca a diferença entre racismo e sofrimento. O senso comum costuma reproduzir um ideal de que os dois são sinônimos, ou que têm o mesmo efeito. Ela pontua que todos os indivíduos negros, no Brasil, perdem oportunidades ao longo da vida devido à raça, mas isso não necessariamente significa que eles vão sofrer por isso. De acordo com ela, se todos sofressem as opressões raciais – no sentido psicológico do sentimento –, o racismo teria “atingido seu maior patamar. Teria dado certo”. Assim como na questão solidão versus preterimento, comenta que o envolvimento em coletivos negros é uma das alternativas de ir a um caminho contrário ao sofrimento psíquico que o racismo pode provocar, e até serve como uma forma de empoderamento.
“A comunicação ainda é muito branca”
Na vida de Laura*, mulher cis heterossexual de 26 anos, o racismo foi presente desde que era pequena. Logo nos primeiros anos de escola, passou por experiências de bullying e preconceitos relacionados à sua raça. Foi só durante a adolescência que iniciou o processo de entender-se enquanto mulher negra e diferente de muitas pessoas com quem convivia. Afirma que as experiências vividas por ela e a padronização de beleza são cruéis para corpos e personalidades que não estão inseridos no padrão imposto pela sociedade. Para ela, isso afeta a auto-estima e, desde crianças, essas pessoas passam a se sentir excluídas. Num momento da entrevista, pontuou que se sentia à parte perto dos amigos quando pequena: “não estar [inserida nos grupos de amigos], por conta das suas características físicas, machuca bastante”.
Laura já tentou se encaixar no padrão social e isso se deu, principalmente, por meio de tratamentos em seu próprio cabelo, que – por vezes – foi danificado devido às fortes químicas. Por ser educada de que cabelo crespo não era bonito, usou variados produtos para ‘relaxar’ seu cabelo crespo e torná-lo liso. Em uma das ocasiões, relata que foi fazer uma escova com um produto formado por aminoácidos e isso acabou por gerar uma alergia em seu couro cabeludo. Assim, somado à força do produto, seu cabelo queimou e criou feridas em sua cabeça, o que provocou um sangramento quando ainda estava no salão de beleza.
Outro ponto comentado por ela é sobre as peculiaridades da rejeição sofrida por indivíduos negros e como isso pode afetar suas auto-estimas. Em certas festas que foi, conta que alguns grupos zombavam entre si ao falar para alguém do grupo ‘ficar’ com uma pessoa negra. Esses grupos consideravam que algumas pessoas “não eram tão bonitas, as quais no caso eram negras.” Laura pontua que se sentia mais feia e preterida nas escolhas afetivas que passou durante a vida, não só em festas mas na vida social no geral, o que gerou um bloqueio dela para com relacionamentos e passou a se sentir inferiorizada.
O empoderamento em sua vida só chegou anos depois. Segundo ela, uma das formas de não se deixar abalar por essas opressões é por meio do contato com amigos ou familiares, para que possa haver um compartilhamento de experiências. Ela não teve essas figuras durante sua infância e adolescência, o que acarretou na interiorização de seus sentimentos. Afirma: “É doloroso né?!”. Apenas anos depois, é que foi introduzida mais fortemente a ideias emancipadoras e libertárias, o que foi associado à sua entrada na faculdade, onde conheceu amigos que a ajudavam na troca de experiências.
Apesar disso, Laura se mostra otimista em relação ao futuro. De acordo com ela, as conversas de empoderamento que se instauraram na mídia são recentes, as quais introduziram, por exemplo, o caso do boom atual de cremes de pentear destinados a cabelos cacheados e crespos. Para combater o racismo e a padronização de beleza, ela entende a mídia como uma figura forte nesse processo. Para ela, a representatividade se faz essencial, pois – ainda hoje – “a comunicação é muito branca”. A educação também tem importante papel em sua visão. Comenta sobre debater temas como diversidade e sexualidade em sala de aula e tratar com afeto crianças mais ‘fragilizadas’ ou propensas a isso (integrante de minorias). Destaca que o trabalho educativo é capaz de mudar a situação atual.
Padrão de beleza universalizador
O ideal de beleza é constituído de forma a privilegiar pessoas brancas numa sociedade marcada pelo racismo. Segundo Lia Schucman, a branquitude universaliza o que é particular em questões estéticas. Ela dá um exemplo: ao pesquisar ‘mulher bonita’ no Google, os principais resultados serão de imagens de mulheres brancas. Enquanto isso, somente se for pesquisado – no mesmo site – ‘mulher negra bonita’ é que aparecerão fotografias de mulheres negras. Sendo assim, algo que deveria ser particular, como a beleza, passa a ser vista de forma universal ao se tratar de indivíduos brancos, e particular apenas para negros.
Esse ideal afeta praticamente todos os meios da sociedade, dentre eles o meio gay. Não o meio LGBTQI+, mas o gay especificamente. Em 2018, o tema ganhou holofotes nas redes sociais, devido a um vídeo no youtube, que hoje conta com mais de 200 mil visualizações. O dono do canal Spartakus postou um vídeo que serve como uma forma de desabafo sobre a maneira como gays negros são tratados dentro de um meio ainda padronizado. A produção se chama ‘A solidão do gay negro: Desabafo e mensagem pras bichas pretas’. Um ano depois, em 2019, ele fez um vídeo resposta para o que ele mesmo tinha feito um ano atrás, trazendo uma nova abordagem para o assunto. Na segunda produção, ele trata sobre a solitude e como não estar dentro do padrão não significa solidão necessariamente.
“Se você não é branco, você perde 2 pontos. Se você é negro e não é malhado, você perde mais 4 pontos”
Esses assuntos foram abordados numa entrevista com Leandro Neves, de 22 anos. Ele se considera um homem cis gay e debateu sobre o racismo e a padronização estética dentro e fora do meio gay. Começou contando sobre o caso mais escancarado de injúria racial sofrido em contexto de relacionamentos. Isso se deu num aplicativo de namoro gay, chamado grindr, em que um garoto que sempre o encontrava lá proferia frases como: “e aí bicha preta?”, “e essa boca aí?! e esse nariz?!”, “menino, sai daqui. Tu tá poluindo o ambiente”.
Enquanto seu descobrimento enquanto homossexual foi “natural como a luz do dia”, seu entendimento da identidade afro demorou mais tempo. Ele comenta que esse processo está acontecendo atualmente. Foi a partir de poucos anos atrás que começou a entrar em contato com discussões do movimento negro e pessoas engajadas dentro da comunidade, que despertaram nele um sentimento de orgulho da própria identidade. São novas discussões na vida do jovem, que abriram portas em seu processo de auto-conhecimento.
Leandro também destaca o preconceito duplo que pode acontecer quando se é um gay negro. “Você é atacado pelas 2 vias”. Para ele, é um ataque maior que um gay branco estaria propício a receber, por exemplo.
Sobre a padronização da beleza, comenta que ela existe e é muito grande, principalmente no meio gay. “Se você não é branco, você perde 2 pontos. Se você é negro e não é malhado, você perde mais 4 pontos. Você não vai conseguir ser notado nem dentro da comunidade negra, nem fora. É muito complicado. É muito doloroso.” Até para corpos que não estão inseridos no padrão imposto, há uma espécie de conduta a ser seguida para que sejam aceitos. Leandro também pontua que já tentou modificar sua própria aparência para se encaixar no que seria considerado atraente. “Já tentei me encaixar muito no padrão, no que diz respeito ao físico. Mais pelos outros do que por mim. Não sou o tipo de pessoa que tem o biotipo magro. Por mais que eu tente controlar minha alimentação, não é algo fácil de mudar.”
O ponto destacado por Leandro se reflete na sexualização de corpos negros, citado até pelas outras entrevistadas. Indivíduos negros, até no meio gay, acabam por ser desejados apenas em função do corpo e da aparência física. Leandro afirma que essa sexualização é mais evidente e visível em meios heterossexuais, em que mulheres acabam por ser o principal alvo, mas destaca que o debate não se limita a essa fronteira. Ele também discute sobre a visão do homem negro como viril e de pênis grande, e relata que algumas pessoas que tiveram algum tipo de relacionamento com ele acabaram por reproduzir essa expectativa.
Por fim, Leandro comenta sobre a comparação com outros amigos. Amigos brancos ou de pele mais clara acabam por ser mais desejados em saídas que eles fazem em conjunto. “Você acaba se comparando, querendo ou não, com outras pessoas.” Ele também afirma que a rejeição se torna algo diário, seja por meio de flertes na rua ou em aplicativos da internet. Ao ser perguntado sobre como reverter esse panorama, ele aposta na visibilidade: “a maioria da população brasileira é negra, descendente de afro. Sendo gay ou não, a visibilidade é importante para mudar a percepção que o geral, inclusive pessoas negras, tem de si.”
Os relatos retratam singularidades de cada um dos indivíduos a respeito de uma temática social e histórica. Ainda que haja muitos pontos semelhantes em seus discursos, as diferenças são presentes. Isso ratifica o amplo debate sobre o tema. Como combatê-lo ainda permanece uma incógnita, mas vários caminhos foram propostos pelos entrevistados. Apenas o fato de existir a discussão já se mostra uma alternativa enriquecedora e capaz de mudar – por mínimo que seja – o panorama atual.
*Juliana e Laura são nomes fictícios usados para preservar a identidade das pessoas entrevistadas, que não quiseram se identificar.