Por Iolanda Paz (iolanda.rpaz@gmail.com)
A Lei 12.764, de 27 de dezembro de 2012, instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. Ela foi essencial em muitos aspectos, dentre eles a garantia do acesso à educação e ao ensino profissionalizante. Com a sua implementação, todos os indivíduos com TEA têm o direito de serem inseridos nas salas de aula do ensino regular, com o respaldo de um acompanhante especializado se for comprovada a necessidade.
Segundo o artigo 7º da lei, “o gestor escolar, ou autoridade competente, que recusar a matrícula de aluno com transtorno do espectro autista, ou qualquer outro tipo de deficiência, será punido com multa de 3 a 20 salários-mínimos”. Em caso de reincidência, ele deve perder o cargo. Dessa maneira, todas as escolas hoje têm de possuir um projeto de inclusão. Mesmo assim, ainda há resquícios da época em que as dificuldades enfrentadas por famílias de autistas eram muito grandes.
Maria Aparecida da Costa conta sobre o preconceito que presenciou ao tentar matricular Lucas, hoje com 32 anos, em uma escola regular perto de sua residência. Depois de muitos esforços para a matrícula ser aceita, ela o levou para a aula. Horas depois, ao voltar para sua casa, teve a surpresa de encontrá-lo lá. “O que foi dito para mim?”, ela conta. “Os pais das crianças, na época, não aceitaram [o Lucas] por ele emitir som, por ele gritar, por ele mexer com a mão, por ele pular.” Após o episódio, ele foi para um segundo colégio, mas ficou excluído na sala. Estava presente apenas fisicamente, sem interação com o professor.
Foi na terceira escola que Maria Aparecida encontrou a inclusão. Nela, Lucas ficou por mais tempo, até os dez anos de idade, e fez amizades com crianças deficientes e não deficientes. Quando se mudou para Taubaté, a família passou a levá-lo a uma clínica da Sinapse, da Associação de Profissionais e Amigos de Autistas (APACDA), de segunda a sexta-feira, no período da tarde. Ali era realizado um trabalho individual, com profissionais especializados. “Houve uma melhora muito grande no Lucas. Trabalhos com psicóloga, com terapia ocupacional, com pintura”, diz a mãe. “Nessa clínica, ele aprendeu a fazer tudo: reciclado, bijuterias, pintura, tapete, crochê.”
Shandra Oliveira, mãe de Caio Henrique, de 7 anos, contou à reportagem que seu filho, após o diagnóstico, continuou no mesmo colégio particular em que estudava antes. No entanto, chegada a hora da alfabetização, os pais tiveram uma surpresa desagradável: mesmo após terem conversado com a diretora da escola, explicando-lhe a necessidade de um acompanhante para Caio, o único aluno com TEA de lá, a exigência não foi cumprida. “Uma pessoa de dentro da escola, não concordando com a situação, me procurou anonimamente e me contou que, na verdade, ele não estava com mediadora”, ela revela. “A mediadora era o quebra-galho da escola, por assim dizer, cada hora estava num lugar.” Inconformada, Shandra tirou os três filhos do colégio e colocou-os em um que fizesse a inclusão de maneira efetiva.
Agora, a mãe comemora: “Não tive resistência nenhuma, muito pelo contrário. A escola está super empenhada em ajudar a gente”. No novo colégio, há uma coordenadora de educação especial, que avalia cada criança admitida e traça um material já adaptado. “Não é questão de espaço, mas sim da cabeça do administrador. Acho que a inclusão depende mesmo da conscientização”, completa.
Ex-coordenadora do Núcleo de Educação Inclusiva da Secretaria Municipal de Educação de Votuporanga, a professora Elizabete Moraes conta que a função do acompanhante é estar ao lado da criança com autismo, auxiliando-a na interação com a sala. “Um acompanhante, um tutor mesmo, que ajude ela”, complementa Camilla Mazetto, neuropsicóloga e doutora em Psicologia da Aprendizagem e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (USP). Seu trabalho, por exemplo, é o de dialogar com a criança: “Olha, você veio brincar no cantinho, mas veja os amigos estão lendo o livro! Vamos lá ver?”. É importante ter em mente que ele não se responsabiliza pelo suporte pedagógico, que cabe apenas ao professor.
Elizabete fala também sobre o atendimento educacional especializado, ensino complementar oferecido por municípios como Votuporanga. Ele acontece em período contrário ao regular; assim, se a criança frequenta as aulas pela manhã, os trabalhos complementares são realizados pela tarde, e vice-versa. O atendimento é conduzido por um professor especialista, pós-graduado em atendimento educacional especializado, que desenvolve com os autistas habilidades para aperfeiçoar a experiência em sala. “O professor do atendimento especializado tem muito contato com o da sala regular”, diz Elizabete. As atividades propostas, ligadas à interação social e à coordenação motora, têm o objetivo de aproximar os assuntos ensinados da compreensão das crianças. Para isso, há um planejamento individualizado: o professor analisa o que funciona melhor para o aprendizado de cada aluno em específico.
A expressão pela arte
Outra peça importante para a inclusão social são as manifestações artísticas. Rejane Calife conta que seu filho, Diogo, de 18 anos, está no primeiro ano do ensino médio e, às sextas-feiras, faz um curso de computação gráfica, onde aprende técnicas e as utiliza para fazer ilustrações. Ela lembra que, nas sessões com a psicóloga, Diogo, que começou a falar aos cinco anos, usava o desenho como forma de expressar sentimentos e se comunicar. Depois, iniciou um curso de arte. Seus pais achavam que ele ia pintar telas, mas, “dos papéis, passou direto para o computador”.
“Quando ele está desenhando, ele faz uns diálogos dos personagens”, Rejane diz. Segundo ela, Diogo fala com uma clareza e com um português impecável em suas ilustrações. A psicóloga conta que isso é esperado, uma vez que, desenhando, ele estaria em seu “universo”: um mundo que ele domina, sentindo-se, portanto, muito mais confortável. “Os desenhos são para ele estruturantes, dão a ele a possibilidade de fazer e vivenciar coisas que no mundo real ele não consegue ainda”, afirma.
Como Diogo tem um lado artístico e trabalha facilmente com o mundo digital, a família investe para essa ser a sua futura profissão. Maria Aparecida Campos também é mãe de um artista: Lucas pinta telas e faz exposições pelo Vale do Paraíba. “Ali [na arte] ele consegue transmitir as emoções dele, o estado que ele está”, ela diz. “Ele se realiza através da pintura, [e em] expor os quadros dele.” Rejane Calife sintetiza a dimensão disso: “a arte é muito importante para a inclusão dos autistas, aliás, é estruturante para todo mundo, mas para eles, é uma alternativa de comunicação”.
Inclusão escolar: desafiadora
Apesar de fundamental, a inclusão escolar ainda enfrenta desafios. “O professor da sala de aula regular, normalmente, vai se sentir inseguro num primeiro momento”, pensando não estar preparado, diz Elizabete. Uma forma simples de ajudar uma criança com TEA a acompanhar a aula, por exemplo, é a antecipação das atividades diárias, já que os autistas conseguem se situar melhor dentro de rotinas. “Cada autista é único”, ela recorda, e é o educador quem deve perceber se há a necessidade de uma adaptação curricular (garantida por normativa do MEC).
No geral, as maiores dificuldades encaradas pelos professores regulares estão relacionadas à preocupação em querer que seus alunos demonstrem aprendizado em momentos específicos — algo que se encaixa numa lógica muito imediata e capitalista do modelo que seguimos de educação. Nele, as crianças são incentivadas a decorar conteúdos para a realização de provas, sem a busca por um aprendizado efetivo e ligado ao universo dos estudantes. “O professor ainda é muito tradicional; quer que demonstre [o conteúdo] naquele dia, naquela atividade, e o autista tem um pouco de dificuldade nisso, de demonstrar aquilo que o outro quer”, diz Elizabete. “No caso do TEA, não é que ele não faz, que ele não consegue, que ele não aprende um conteúdo, mas ele não demonstra na hora que o professor quer.” A solução, portanto, é a realização de uma avaliação diária e contínua, com foco na aquisição progressiva das habilidades.
Mesmo que haja ressalvas ao modelo educacional antiquado, “a criança autista tem que estar na escola”, ela afirma. “É um direito dela.” Além disso, a professora ressalta os benefícios da educação regular às pessoas com TEA: segundo Elizabete, são visíveis as diferenças de desenvolvimento das habilidades comunicacionais entre uma criança autista que cursa o ensino regular e outra frequentadora da educação especial. É verdade que crianças com níveis mais severos de TEA podem não conseguir ser incluídas em salas regulares de modo satisfatório — embora isso ainda não tenha acontecido em Votuporanga; no entanto, a busca pela educação especial, uma opção dos pais, já foi mais comum. “Hoje em dia, temos os pais tirando da escola especial e colocando na escola regular”, diz.
A família de Thenille, de 18 anos, optou por matriculá-la na educação especial. Thiago Castro, seu irmão, conta tê-la acompanhado na mesma escola pública da primeira à quarta série; hoje, no entanto, ela está num colégio cujo foco é o autismo. Thenille estuda o dia inteiro: tem aula de manhã e, de tarde, faz oficinas de teatro, música e dança, as quais são de extrema importância para o domínio da linguagem.
“É bastante complicado esse negócio de inclusão, porque no papel é uma ideia ótima, parece que funciona bem, mas não é assim a realidade”, diz Thiago. “Você precisa que a escola esteja preparada para isso, precisa de um professor a mais na sala de aula, precisa atender às deficiências dessa criança… Por exemplo, se essa criança for cega, você precisa ter um material em braile. Pensa numa escola do Estado: não tem nem professor para dar aula, você acha que vão conseguir incluir direito uma criança deficiente? É complicado. Talvez por isso que a minha irmã tenha se encontrado numa escola especial, porque ela tem amigos que têm limitações que nem ela, professores que entendem, e o ambiente que acolhe.”
Para Elizabete, uma atmosfera acolhedora só pode ser proporcionada aos alunos pela administração escolar. A inclusão efetiva, na verdade, parte da gestão, reconhece. Ela é encarregada por mobilizar o colégio, inclusive os docentes, responsáveis por conversar com as crianças e impedir que preconceitos e a exclusão sejam perpetuados.
“Nós precisávamos de mais formação para os nossos profissionais e mais informação [sobre o transtorno]”, diz a professora, quando questionada sobre os modos de alcançar a inclusão efetiva. Camilla Mazetto complementa: “[A inclusão escolar] é possível, mas os contextos escolares têm de estar preparados, tem que ter o conhecimento específico sobre o autismo”.