Por Maria Eduarda Nogueira (mariaeduardanogueira@usp.br)
Citando o recente documentário da Netflix, One Strange Rock: habitamos em uma estranha pedra. Milhões de seres vivos de espécies diferentes, diversas condições climáticas, culturas das mais variadas. Se apenas uma palavra pudesse descrever o planeta Terra, seria pluralidade.
Em meio a um espectro de climas, faunas e floras, os extremos são aqueles que captam o interesse. Pelo menos nessa reportagem.
Uma dúvida começou todo o processo de pesquisa: como os animais conseguem sobreviver em condições tão extremas? Seres humanos não aguentam variações de temperatura interna maiores do que cinco graus Celsius sem sofrerem duras consequências fisiológicas. De que modo, então, ursos polares, camelos, raposas-do-ártico e tantos outros animais aguentam desertos e polos?
Desertos
Diferente da noção do senso comum, um deserto não é caracterizado pela sua alta temperatura. Até porque existem desertos frios, tal como o da Groenlândia. Segundo a explicação do professor Carlos Arturo, do Instituto de Biociências da USP (IB-USP), “aquilo que é comum mesmo não é um regime de temperatura, é muito mais a questão da água que, num deserto absoluto, basicamente não chega na forma de chuva”.
Nossa amostra brasileira, a Caatinga, não é um deserto absoluto. Na verdade, é um bioma pertencente ao clima semiárido, o que significa que há uma estação muito chuvosa, ainda que esta seja irregular.
Em geral, há duas opções para sobreviver aos períodos mais críticos (aqueles de seca severa): migrar ou adaptar o metabolismo. A primeira opção geralmente é típica de espécies de maior porte. A segunda, por sua vez, costuma ser a opção das espécies menores. “O mais típico é encontrar situações que são de torpor, como uma depressão do metabolismo, que faz com que os animais consigam passar vários meses relativamente ou completamente inativos”, explica o professor do IB.
Mas nem todos os animais se limitam a essas duas opções. Existem espécies que conseguem manter as atividades usuais em época de seca, dada a sua extrema adaptabilidade ao ambiente desértico.
O exemplo mais clássico — digno de livros didáticos — é o dos camelos e dromedários. Por serem animais de grande porte, precisam de adaptações fisiológicas eficientes. Esquilos do deserto, por exemplo, podem simplesmente cavar um buraco para fugir das temperaturas exorbitantes. O que certamente é mais complicado para um camelo.
Fábio Luiz Teixeira, docente do Instituto de Astronomia, Geofísicas e Ciências Atmosféricas da USP (IAG-USP), cita algumas das adaptações dos animais de gênero Camelus:
Os ambientes polares
As diferenças entre os dois pólos são sempre alvo de muita dúvida. Mas calma, não é algo impossível de entender. O Ártico é basicamente uma camada de gelo, cercada por continentes. A Antártica é um continente propriamente dito, coberto por uma espessa camada de gelo, e cercado pelo mar. E é, inclusive, onde se localiza a maior quantidade de gelo do planeta.
A característica definidora do continente antártico é definitivamente seu clima — mais frio que o Ártico, que afeta todo o ecossistema. Como o interior é ainda mais frio, a vida animal se resume basicamente às regiões costeiras, como explica o professor Vicente Gomes, do Instituto Oceanográfico da USP (IO-USP): “A fauna terrestre e a flora são muito pobres e estão restritas principalmente às zonas costeiras, então, de uma certa forma, são relacionadas com o mar.”
Os animais que vemos tipicamente em fotos e vídeos da Antártica, como aves, focas e leões marinhos, na verdade são organismos marinhos, que utilizam a terra na época de reprodução. Durante os períodos mais severos do inverno, há uma intensa migração.
No entanto, mesmo que as estações do ano exerçam certa influência nesse ecossistema, não há uma amplitude térmica tão considerável. O animal antártico, portanto, é acostumado a viver numa temperatura baixa e relativamente estável, para a qual ele desenvolveu adaptações específicas. Dentre elas, o professor do IO cita o metabolismo lento, a reprodução tardia e a maior longevidade.
Desse modo, há um alto grau de endemismo, ou seja, o número de espécies que só são capazes de viver na própria Antártica. Isso ocorre principalmente com os organismos marinhos, pecilotérmicos (ou “de sangue frio”, segundo a denominação mais popular). “Eles não tem condição de suportar grandes variações da temperatura, porque já estão adaptados a uma temperatura baixa e constante”, explica Vicente.
Carlos, do IB, cita alguns exemplos: “dentro dos répteis e anfíbios, existem algumas espécies que conseguem hibernar em ambientes muito frios. Alguns lagartos e tartarugas podem tolerar o congelamento parcial do corpo.”
Outras adaptações de animais podem ser vistas aqui.
Além da hibernação, há também outras adaptações, tais como a vasoconstrição e a hipotermia regional. Isso significa que, no frio, o sangue prefere as partes mais quentes do corpo, evitando as periferias (nariz, orelha, dedos). Consequentemente, essas regiões ficam com temperaturas extremamente baixas, o que gera o fenômeno da hipotermia regional.
Ele é exclusivo dos animais. Após séculos de adaptações, os aborígenes australianos são os únicos seres humanos que conseguem aguentar, também, essa forma de hipotermia, como explica Fábio Luiz, do IAG-USP.
As grossas camadas de pelo e gordura também não podem ser ignoradas. Elas servem como isolantes térmicos, o que é essencial em condições climáticas nas quais se evita a perda de umidade e calor.
Mesmos animais, diferentes adaptações
É interessante notar que animais do mesmo gênero podem ser extremamente diferentes. E essa diferença muitas vezes se justifica pelo clima.
Um exemplo clássico é a raposa, espécie presente em climas desérticos, amenos e polares.
A raposa-do-ártico possui um formato mais esférico, para garantir pouca superfície de contato e, portanto, menos chances de perda de vapor e calor.
A raposa-do-deserto é o extremo oposto. Suas orelhas e seu rabo grande facilitam a perda de calor, o que ajuda na termorregulação em ambientes áridos.
De modo intermediário em relação ao corpo, orelhas e rabos, há a raposa-vermelha, uma espécie comum em biomas de clima temperado.
E o aquecimento global?
As mudanças climáticas afetam todos os biomas e todos os seres vivos pertencentes a eles. Mas é de se imaginar que regiões com condições de temperatura específicas podem ser ainda mais afetadas, dadas as sua maiores sensibilidades.
No caso da Antártica, o professor Vicente, do Instituto Oceanográfico, explica: “A região da península antártica é a região do globo que mais sofreu aquecimento”. No caso do mar, há um certo isolamento térmico, devido ao alto calor específico da água (mais resistente a variações de temperatura). No entanto, a duração e a extensão do gelo está diminuindo, o que pode afetar o krill — conjunto de animais invertebrados semelhantes ao camarão, um elemento essencial para a fauna e flora antárticas.
O aumento da temperatura não é o principal problema, enfatiza Carlos, do Instituto de Biociências. A ocorrência de eventos extremos também pode aumentar, por exemplo, a duração da seca nas regiões desérticas. “O desafio fisiológico sobre toda a fauna que está na região acaba sendo cada vez maior. Esses eventos extremos têm potencial nocivo muito grande sobre os animais”.
Um exemplo emblemático é o urso polar, que está mudando até seu padrão de comportamento a fim de garantir a sobrevivência. Não é raro ver fotos desses animais submetidos a uma minúscula camada de gelo e esqueléticos por causa da fome.
Não há como negar o aquecimento global, ainda que esta seja uma tendência bem atual. Os dados não mentem, e nem as condições da fauna e flora dos biomas.