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 ‘Periféricos’: um livro que continua bagunçando a sua mente

A volta de William Gibson no cyberpunk retrata um universo que só ele é capaz de imaginar
Por Mariana Pontes [mariana.kpontes@usp.br]

Dificilmente conseguimos adentrar em um mundo que não nos é habitual. Especialmente quando esse mundo não é habitual para ninguém. O cenário de Periféricos (lançado em 2014 e adaptado para o formato de série em 2022), parcialmente já presente em Neuromancer, é retomado por William Gibson. Dentro dessa proposta, é necessário um esforço maior por parte do narrador para explicar a trama, os personagens e todos os inimagináveis conceitos criados pelo autor de modo natural e claro.

Essa construção exige atenção e paciência do leitor, que assume o dever de entender as tecnologias futuristas e as diferentes linhas do tempo por meio de diálogos entre os personagens – que, utilizando uma linguagem informal, com conversas curtas e nem sempre relevantes, são humanizados e se tornam de fato genuínos – ao longo de toda a história. Entretanto, é possível que alguns termos precisem ser mantidos em um “post-it mental” por mais páginas do que o ideal, para que sejam explicados com maior nitidez posteriormente.

A inerente confusão e o estranhamento já presente em muitas obras de ficção-científica são reforçados no subgênero cyberpunk, desenvolvido, em meio a outros colaboradores, pelo próprio William Gibson na década de 80. Nesse meio literário, é comum a união de tecnologias extremamente avançadas com preocupações históricas e sociais em um futuro distópico.

A protagonista desse futuro (ou de um dos futuros) é Flynne Fisher, e do segundo, Wilf Netherton. Os capítulos, curtos e dinâmicos, são constituídos na alternância de pontos de vistas, narrados em terceira pessoa. O foco dos fluxos de consciência (pensamentos, sentimentos, medos e incertezas) está sempre em um dos dois.

Futuros, no plural

Flynne vive com seu irmão ex-militar, Burton, e com sua mãe enferma em uma área rural dos Estados Unidos, onde a situação econômica é precária e o condado é governado pelos poderosos construtores (fabricantes de drogas). A sobrevivência é garantida através da ilegalidade. Ainda que pareça cômico, fabricar impressões em 3D e jogar videogames são formas de ganhar dinheiro clandestinamente – sendo esta última o sustento temporário de Burton, até o momento em que precisa ser substituído por sua irmã.

Apesar de monótono, o jogo pagava um bom salário a ela. Hora após hora, fazia as mesmas coisas, mas se entretinha com as pessoas no prédio que protegia e se interessava por suas inexistentes vidas. Havia acompanhado, especialmente, uma mulher, sua festa e seu assassinato – uma cena que julgou mais próxima de uma realidade real do que de uma virtual.

O homicídio presenciado por Flynne lhe parecia mais real do que um mero jogo, porque de fato era. A tela de seu celular revelava, na realidade, uma janela para o futuro – 70 anos adiante, mais precisamente.

“Não era coisa para a qual dava para se preparar. 

Como a vida, talvez, nesse sentido”

 Periféricos,  p. 445

Netherton, habitante desse futuro, se envolve com esse testemunho, pois, entre outras razões, a vítima era irmã de sua ex-”namorada” e colega de trabalho. O principal desentendimento entre o pseudo-casal, após relatado, só volta a ser retomado pontualmente poucas vezes perto do fim do livro, o que dificulta a assimilação de informações futuras.

Náusea e confusão

É importante destacar que o livro aborda a viagem no tempo de uma maneira raramente imaginada. Em primeiro lugar, tudo o que é alterado no passado a partir de intervenções de anos posteriores não modifica o futuro, em vez disso, cria o “toco” – ou seja,  um novo futuro é criado nessa linha do tempo, pois o passado modificado não coincide com o passado do futuro original. Em segundo lugar, as pessoas não viajam fisicamente, mas “desligam” os seus corpos no mundo de origem para acordar em máquinas que dão nome ao livro: os periféricos. Eles são projetados para abrigar esses indivíduos e, assim, permitir que atuem como se fossem eles mesmos por meio de comandos remotos.

trecho do livro falando sobre viagem para o futuro
Além da complexidade de uma quase viagem no tempo,
o enjoo era um dos sintomas na transferência para o periférico [Imagem: Acervo Pessoal/Mariana Pontes]

Para que esse intermédio entre os “presentes” se concretize, conhecimentos do futuro são passados para amigos de Flynne, que se tornam encarregados de trazer à vida tecnologias ainda não inventadas. Não apenas informações são transferidas, mas também, contatos e dinheiro, surgindo a necessidade de encobri-los com a “Milagros Coldiron” (empresa que teria os irmãos Fisher como donos uma de suas sedes nos Estados Unidos) e de torcer para que as interferências notáveis na economia pudessem ser controladas o mais breve possível.

A investigação, junto de todas as consequências que acarreta, transforma permanentemente a vida de todos os envolvidos. O “bem-maior” está sempre à vista, mas o que cada personagem precisa enfrentar no dia a dia transparece ao leitor como um peso e receio a cada palavra lida.

“É estranho, depois é como as coisas são, depois é estranho de novo”, 

Flynne Fisher em Periféricos, p.270

Futuro, no singular

O destrinchar da trama até seu clímax ocorre em cerca de uma semana para os personagens e um pouco mais de 500 páginas para o leitor. Homes, Lucas 4:5, remendadores, hápticas, trajes-lulas, são aspectos importantes para a história, mas rapidamente mencionados e de difícil compreensão para o leitor não-habituado ao universo de Gibson. Ainda assim, há uma aceitação quase automática, e a leitura prossegue. Até mesmo após terminar o livro é difícil encontrar uma amarração concreta entre tudo o que foi mencionado, o que reforça o sentimento de que nada foi concluído, de tão repentina que a conclusão se deu.

Além disso, a revelação do assassino e a conexão de seu plano com os episódios prévios se dá nas últimas páginas do livro, onde a gana do leitor de engolir as palavras e descobrir o que irá acontecer desaparece depois de poucas páginas – momento em que o desfecho é concluído de maneira simplista.

Apesar dos pontos mencionados, a grande quantidade de capítulos proporciona o famoso “gostinho” do próximo. É comum encontrar, rabiscada a lápis, uma marginália com uma suposição que se concretiza na próxima página. Então, reviravoltas e descobertas inesperadas enchem o livro e ampliam a vontade de descobrir o que ocorrerá a seguir.

Destaca-se, ainda, o ódio que os personagens demonstram pelos seus respectivos presentes – independentemente de qual seja – e as ações humanas que levaram à eventual destruição da sociedade, pois são assuntos que provocam a reflexão sobre nossas próprias ações e sobre qual inevitável futuro que estamos construindo hoje.

*Imagem de capa: Reprodução/Editora Aleph

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